sexta-feira, 22 de julho de 2011

A genealogia da ficção científica

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 A mostra traz itens como edição de 1928 da revista "Amazing Stories", a primeira dedicada à ficção científica, e imagem inspirada em "A Guerra dos Mundos" (1898), de H.G. Wells"Nós vivemos em um mundo de ficção científica", afirma o escritor britânico Mike Ashley. "Já estamos acostumados a coisas que foram sonhadas por alguns poucos visionários há apenas uma ou duas gerações - computadores pessoais, transplantes de órgãos, telefones móveis, viagens espaciais, realidade virtual. Tudo isso melhorou as nossas vidas." Ele considera que a humanidade pode ter assistido com alguma surpresa à incorporação cotidiana dessas novidades e de seus efeitos colaterais, como as mudanças climáticas, o risco de acidentes nucleares e as mutações genéticas, mas não alguns dos "visionários" a que se refere - autores de um gênero que, não por acaso, vem ganhando prestígio e respeitabilidade nas últimas décadas.
Um dos muitos indícios desse novo status está no fato de a veneranda British Library (a biblioteca nacional britânica), em Londres, hospedar até 25 de setembro a exposição "Out of This World - Science Fiction But Not as You Know It" (fora deste mundo - ficção científica, mas não como você a conhece, em tradução livre). Ashley, pesquisador especializado em fantasia e ficção científica, assina o catálogo da mostra, que tem parte de seu material acessível também pela internet (www.bl.uk/sciencefiction). Para apreciar com atenção o volume de material reunido ali, é preciso dedicar algumas horas a esse universo de especulação que transforma premissas como "E se..." ou "Suponha que..." em pontos de partida para obras que ajudam a entender o mundo no qual vivemos - e para onde ele pode caminhar.
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Página da revista "Amazing Stories"

"Quando a primeira bomba atômica foi detonada, em 1945, houve quem dissesse que os únicos a não estar surpresos eram os fãs de ficção científica", observa Ashley. Livros, filmes, quadros, objetos, atividades interativas e depoimentos reunidos pela British Library se propõem justamente a demonstrar, de maneira lúdica, o caráter de antecipação do gênero. O amplo recorte de autores e obras tem ainda o objetivo de lembrar que os traços característicos da ficção científica são mais antigos do que muitos supõem, chegando até a Grécia antiga, e envolvem um espectro de temas que não se limita, como imaginam os desinformados, a histórias sobre monstros alienígenas.
"Existe uma percepção estreita de que o gênero se destina primordialmente a um leitor jovem, e se concentra em aventuras no tempo e no espaço", critica Ashley. A distorção teria ajudado a construir, segundo ele, um "julgamento seletivo" que identificaria a ficção científica pelos seus piores exemplos, enquanto os melhores seriam vistos como "literatura". "Admirável Mundo Novo" (1932), de Aldous Huxley (1894-1963), "1984" (1949), de George Orwell (1903-1950), e "O Conto da Aia" (1985), de Margaret Atwood, são usados por Ashley como exemplos notáveis de romances cuja qualidade os tornaria, de acordo com esse preconceito, incompatíveis com o que se esperaria do gênero.
Como estabelecer o seu território? Uma das definições mais concisas: é o que propõe realidades paralelas à nossa, com o uso de plausibilidade científica. Para tentar diferenciá-lo de um gênero aparentado com o qual muitas vezes se confunde, a fantasia, a exposição da British Library destaca uma frase de Rod Serling (1924-1975), criador da série de TV "Além da Imaginação". Fantasia, de acordo com ele, seria "o impossível transformado em provável", enquanto a ficção científica corresponderia ao "improvável transformado em possível". Ali, "a imaginação frequentemente nos levará a mundos que nunca vão existir", segundo o astrônomo e astrofísico Carl Sagan (1934-1996). "Mas, sem ela, não vamos a lugar nenhum."
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Com obras como a série "The March of the Intellect" (1829), do artista britânico
William Heath, a exposição reúne diferentes
 visões sobre mundos do futuro

A exposição divide-se em seis espaços interligados, cada um deles dedicado ao que estabelece como "temas primários" do gênero: mundos alienígenas, tempo e mundos paralelos, mundos virtuais, mundos futuros, o fim do mundo e mundos perfeitos. Entre os escritores apresentados como referenciais, estão Jonathan Swift (1667-1745), de "As Viagens de Gulliver" (1726), originalmente publicado como "Viagens para Diversas Nações Remotas do Mundo"; Julio Verne (1828-1905), de "Paris no Século XX" (escrito na década de 1860, mas só publicado em 1994), "Da Terra à Lua" (1865) e "20 Mil Léguas Submarinas" (1870); e H. G. Wells (1866-1946), de "A Máquina do Tempo" (1895), "O Homem Invisível" (1897) e "A Guerra dos Mundos" (1898).
"Hoje, precisamos da ficção científica mais do que nunca", afirmam Mark L. Brake e Neil Hook, autores de "Future World - Where Science Fiction Becomes Science" (mundo do futuro - onde a ficção científica se torna ciência), publicado pelo Science Museum (o museu da ciência britânico), também de Londres, e que a exposição da British Library considera bibliografia referencial no tema. "Ela pode atuar como um fórum vital para pensar no desenho do que virá, amostra vertiginosa de como os futuros possíveis vão nos ocupar e nos atormentar." Para Brake e Hook, o gênero "tem nos ajudado a construir o futuro em que vivemos". Apologia que lembra uma frase do filme "Os 12 Macacos" (1995), de Terry Gilliam, refilmagem de "La Jetée" (1962), de Chris Marker: "O futuro é história".
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Reportagem por Sérgio Rizzo Para o Valor, de Londres
Fonte: Valor Econômico, 22/07/2011 Impresso › EU& Fim de semana › Cultura

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