“O aluno não deve ter vergonha da
língua que ele traz de casa”
Por Cecília Luedemann*
“Todos os linguistas, mesmo sabendo que a sua ciência é explicativa, dizem que a norma culta é um fato histórico e precisa ser ensinada na escola. É preciso deixar isso muito claro para que não se diga que os linguistas são os ‘talibãs acadêmicos’ ou que os linguistas são os ‘trombadinhas acadêmicos.” José Luiz Fiorin, pesquisador e professor do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em entrevista à Caros Amigos, discute os problemas do ensino de português e explica o papel da Lingüística nesse campo.
Convidado a explicar os avanços da ciência linguística e suas contribuições para a compreensão da língua real, viva e na qual todo ser humano pode se desenvolver plenamente, Fiorin discutiu as principais questões para o fim do medo e da vergonha na sala de aula.
Caros Amigos - Quais são as principais questões que se colocam, atualmente, no campo da linguística que nos auxiliam a superar o senso comum e o preconceito linguístico?
José Luiz Fiorin - Vamos começar com esta pergunta: Por que é que se discute tanto a questão de que para o linguista vale tudo? Nós precisamos estabelecer, primeiramente, uma distinção entre uma visão prescritiva da língua e uma visão descritiva da língua. Uma visão prescritiva da língua é aquela que determina o que pode ou o que não pode dizer na língua. Uma visão descritiva da língua é aquela que levanta todos os fatos de língua, independentemente de serem considerados certos ou errados, e procura descrever e explicar esses fatos de língua. Nós poderíamos dizer que a linguística é uma ciência descritiva e não uma ciência prescritiva. O linguista precisa descrever e explicar os fatos da língua e não se preocupar se é certo ou errado.
Vamos dar um exemplo: tradicionalmente se disse que o verbo namorar é um verbo transitivo direto, portanto o correto é: “Maria namora Pedro. Pedro namora Maria.” E, portanto, estaria errado dizer: “Pedro namora com Maria. Maria namora com Pedro.” Porém, se você observar todas as pessoas, mesmo as que empregam a norma culta, todas vão dizer: “Maria namora com Pedro. Pedro namora com Maria.” Ora, um linguista tem que explicar como esse com apareceu aí. Ele vai notar, então, que o verbo namorar adquiriu um sentido novo em português, além de ter relações afetivas com alguém, o verbo namorar significa, também, desejar ardentemente. Então, um linguista vai explicar fatos de língua. Esse é um fato trivial. Há outros muito mais importantes. Por que nós estamos usando o lhe, por exemplo, na posição de objeto direto? As pessoas, ao invés de dizerem “Eu a amo”, estão dizendo “Eu lhe amo, eu lhe adoro, eu lhe venero”. Então, são fatos muito mais complicados. Segunda questão: a norma culta. Nenhum linguista disse que não existe uma norma escolhida pela sociedade para escrever os textos que circulam em determinadas esferas de circulação. Por exemplo: o discurso jornalístico, o discurso acadêmico devem ser escritos na norma culta. O discurso literário não precisa ser escrito na norma culta, principalmente depois do modernismo, porque a linguagem depende da personagem que eu estou enfocando. Então, o erro depende da esfera de circulação na qual o texto está inserido. Ora, todos os linguistas, mesmo sabendo que a sua ciência é explicativa, dizem que a norma culta é um fato histórico, e, portanto, devemos respeitar essa norma culta. E essa norma culta precisa ser ensinada na escola. Isso é preciso deixar muito claro para que não se diga que os linguistas são os talibãs acadêmicos ou que os linguistas são os trombadinhas acadêmicos.
A terceira pergunta que nos interessa é a seguinte: Essa norma não varia nunca? Há duas coisas que é preciso levar em conta na língua: a língua é variável e a língua muda. Uma língua varia de região para região, de grupo social para grupo social, de situação de comunicação para situação de comunicação, porque não é a mesma coisa eu conversar num bar com um amigo e fazer uma conferência, que exige um nível de linguagem muito mais elaborado do que a linguagem utilizada no bar em que eu posso me permitir uma linguagem mais “relaxada”. E varia, também, de geração para geração.
Então, todas as línguas do mundo variam, não é o português que varia, porque as pessoas não sabem falar direito, não têm cuidado com a língua. Todas as línguas do mundo variam. Tanto é verdade que havia no latim uma variação entre o que se chama o latim clássico e o latim vulgar. Na verdade, a própria norma culta vai se modificando e a escola, de certa forma, não precisa incorporar qualquer mudança, mas as mudanças que se sedimentaram devem ser incorporadas pela escola. Eu posso ficar ensinando duas, três aulas que se deve usar “namorar alguém”, mas saindo fora da sala de aula os alunos vão falar “namorar com alguém”, porque essa é a forma sedimentada.
A quarta questão que nos interessa: a mudança da norma significa uma perda? Eu tenho ouvido, com muita frequência, pessoas dizerem que a mudança da norma significa uma perda. Disseram mesmo que a passagem do latim clássico para o latim vulgar significou uma perda. Ora, o que subjaz a esta concepção é que a história é decadência. No entanto, eu preciso refletir: será que a história é realmente decadência, em termos linguísticos? Se eu considerar que a passagem do latim clássico para o latim vulgar significou uma perda, o que nem é verdade, porque o latim clássico convivia com o latim vulgar, eram variações dentro de uma mesma época, esse mesmo latim vulgar foi levado à península ibérica e daí vieram o português, o espanhol, etc. Se eu disser que isso representa uma decadência, posso considerar que o português inteiro é um erro, é uma decadência. Então, todos os autores de língua portuguesa serão considerados uma decadência. Ora, eu não posso aceitar isso. Na verdade, as línguas têm um mecanismo de autorregulação notável. A língua é, eu diria, um “instrumento” notável, porque a língua se regula para as necessidades de comunicação. Portanto, as línguas não decaem, não progridem, as línguas mudam e adquirem outros elementos.
"O trabalho maior da escola não é
ensinar a ortografia, que é relativamente simples,
ou ensinar a concordância, também simples,
mas sim ensinar a textualizar.
Ou seja, ensinar a produzir um texto
que tenha conteúdo adequado, coerência,
coesão, clareza. Todas as teorias linguísticas
foram criadas para entender como construir
a coerência de um texto,
o sentido do texto.
O nosso desafio é melhorar o ensino
de português, não é liquidar
o ensino de português."
O senhor poderia explicar essa concepção de que todo ser humano para exercer plenamente a sua capacidade linguística deve ser um “poliglota” da sua própria língua?
Essa formulação de que um bom falante é um “poliglota” na própria língua é de Eugenio Coseriu, um linguista romeno, e foi difundida no Brasil pelo professor Evanildo Bechara. Um bom falante é aquele que se adapta ao seu auditório, e, portanto, é aquele que é capaz de transitar pelos diferentes registros da língua. A variedade linguística que eu falo marca a minha identidade. Por isso, ridicularizar a falar de uma pessoa é atingir a própria identidade de uma pessoa. E quanto mais eu for capaz de perceber todas as variedades de vocabulário, mas rico será meu domínio da língua. Quanto mais eu for capaz de perceber isso, estarei ampliando a minha capacidade de linguagem. Por isso, eu dizia que um professor de português é um professor que amplia a consciência dos seu alunos, na medida em que ele amplia a capacidade de linguagem dos seus alunos. Ampliar a capacidade de linguagem é ampliar a consciência, o que nos mostra a poeta Cecília Meireles, no Romance LIII, ou Das Palavras Aéreas, do Romanceiro da Inconfidência: “Ai, palavras, ai palavras/ que estranha potência a vossa/ (...) A liberdade das almas/ Ai, com letras se elabora...” É ampliar a liberdade das almas. E, portanto, ensinar português, é, na verdade, ampliar a capacidade de linguagem que o aluno tem, ensinar a escrita, porque a escola é a agência encarregada do ensino da escrita, e ensinar, ao mesmo tempo, a norma culta, porque o aluno vai operar com textos na mora culta. Mas, não é, digamos, só ensinar a norma culta. É também ensinar a norma culta. Mas, ampliar a capacidade de linguagem é uma tarefa do professor de português.
Por isso, uma quinta questão que nos interessa: O ensino de português tem sido bem sucedido no Brasil? Acho que não. Ora, os linguistas estão procurando a maneira de tornar o ensino de português mais eficaz, ao contrário do que estão dizendo, que os linguistas querem acabar com o ensino de português. E para tornar o ensino mais eficaz, o professor precisa ter duas atitudes. A primeira: não pode ridicularizar a linguagem que o aluno traz para a escola, porque ridicularizar a linguagem é atingir a identidade do aluno, e, portanto, reduzir o aluno ao silêncio. Esse aluno vai ter mais dificuldade para falar, para escrever, para aprender, para ampliar a capacidade de linguagem. A segunda atitude: o professor deve partir da linguagem trazida pelo aluno para ampliar essa capacidade de linguagem. A escola está apresentando as coisas de modo que a língua que a escola ensina não é significativa para o aluno. Para o aluno, a língua portuguesa aprendida na escola não tem nada a ver com a língua que ele fala. E aí é preciso, portanto, ressignificar o ensino de língua portuguesa. É preciso que o aluno perceba que aquela língua aprendida na escola tem a ver com a língua que ele fala. Muitos professores dizem: “Eu não posso mais dar Camões para o meu aluno, porque ele vai rejeitar.” No entanto, Renato Russo apresentou: “Amor é fogo que arde sem ver; / É ferida que dói e não se sente;/ É um contentamento descontente; É dor que desatina sem doer” (...)” E as pessoas gostam. Então, a forma como a escola está apresentando o seu ensino de português parece que está um pouco inadequado. Os linguistas não estão construindo o ensino de português, eles estão procurando uma eficácia maior do ensino de português, porque nós não podemos continuar com uma escola cujas avaliações mostram que ela não está sendo eficaz em termos do ensino de português. Não é possível que um aluno saia do terceiro ano do ensino médio sem que ele saiba produzir um texto com coerência, coesão, clareza, no nível linguístico adequado à esfera de circulação. Portanto, se ele tiver que usar a norma culta, é preciso que ele saiba usar a norma culta.
O senhor tem um estudo no campo da linguística e também na didática do ensino da língua. Como a escola poderia avançar para um ensino eficaz da língua portuguesa:
Precisamos entender que a fala e a escrita são completamente diferentes. Um texto falado é um texto “se fazendo” e um texto escrito é “feito”. Isso faz toda a diferença entre língua escrita e língua falada. A escola pode operar sobre a língua falada, embora o principal trabalho da escola seja sobre a língua escrita, uma vez que a escola é a agência de letramento da nossa sociedade. Isto posto, na verdade, o trabalho maior da escola não é ensinar a ortografia, que é relativamente simples, ou ensinar a concordância, também simples, mas sim ensinar a textualizar. Ou seja, ensinar a produzir um texto que tenha conteúdo adequado, coerência, coesão, clareza. Todas as teorias linguísticas foram criadas para entender como construir a coerência de um texto, o sentido do texto. O nosso desafio é melhorar o ensino de português, não é liquidar o ensino de português.
O aluno deve, então, aprender a ver esses mecanismos como instrumento a serem utilizados, consultando a norma culta, sem medo?
Sim, sem medo. O problema não é o medo, é a vergonha. O aluno não deve ter vergonha da língua que ele traz de casa, que ele sinta que isto não é uma vergonha e que pode ampliar essa língua que ele traz. Porque, às vezes, a escola reduz o aluno ao silêncio por vergonha. São dois mecanismos de imposição que as sociedades utilizam: o medo e a vergonha. A vergonha é mais eficiente que o medo. Eu acho que a escola, ao ridicularizar a língua do aluno, deixa esse aluno com vergonha da língua que os pais falam. O professor não pode deixar o aluno com vergonha, mas não vai permanecer naquela língua que o aluno traz.
Nós temos condições de avançar no ensino do português, no Brasil?
Sim. Eu acho que nós estamos avançando. Os verdadeiros professores de português têm um mal-estar, quando conversamos com eles, porque estão a busca de caminhos, porque estão vendo que o caminho seguido que parecia ser o certo durante muito tempo, já não está mais dando certo. Eu vejo um conjunto de colegas do ensino fundamental e médio muito angustiados, buscando caminhos. E não é fácil buscar novos caminhos, construir o novo nunca é fácil. E as pessoas estão buscando caminhos novos para dar uma eficácia maior ao ensino de português.
Como os linguistas têm contribuído para a construção dessa nova concepção de ensino da língua portuguesa?
Há muitas parcerias entre as universidades e as secretarias de educação, que pela constituição brasileira são encarregadas do ensino fundamental e médio, e entre as universidades e o Ministério da Educação, que tem apenas a função supletiva de dar as diretrizes gerais. No Ministério, por exemplo, existe uma comissão nacional de língua portuguesa que faz um aconselhamento sobre as diretrizes gerais do ensino de português.
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*Jornalista
Fonte: Revista CAROS AMIGOS impressa, nº 172/junho-2011, pp.22-23.
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