Paulo Ghiraldelli Jr*
Hitler não cometeu apenas um pecado moral. Ele cometeu também um pecado contra a inteligência. O que fez foi tão cruel, que ele quase nos impediu de pensar de um modo menos simplório. Pois, depois dele, e começando exatamente por ele, ficamos atados quando queremos fazer descrições não dualísticas. Nas descrições dualísticas morais, por exemplo, se consideramos a figura de Hitler, o mal cai para um lado só, deixando o bem todo do outro lado. Podemos intuir que Hitler, sendo uma pessoa comum muito má, não era só maldade, uma vez que, exatamente por seu um entre nós, convivia com várias outras pessoas e formou laços com elas. Além disso, sabemos que foi um líder que inspirou muitos que não eram, em princípio, maus e nem de todo estúpidos. Por isso mesmo, deveríamos rejeitar a tese de Hitler como o sugadouro de toda a maldade do mundo, concentradamente, de modo a não ter nenhum ato de bondade. Todavia, ainda que saibamos disso, nenhum de nós consegue ir adiante nessa descrição. Hitler foi tão realmente maligno que parece ser um imperativo moral aceitarmos que, ao menos no caso dele, temos de pensar de modo dual: ele era o mal, os outros, o bem. Com isso, deixamos viva uma forma ruim de descrição, a forma dualística que, rapidamente, cai no maniqueísmo. Assim, Hitler fez mais um ato ruim: ajudou-nos a ficar menos sofisticados quando de nossas descrições.
Mas, antes dele, estávamos conseguindo elaborar descrições de nós e do mundo mais sofisticadas, menos duais e, portanto, mais resguardadas quanto ao deslize para a caricatura do dualismo, ou seja, o maniqueísmo?
Começamos a pensar de modo dual com Platão. Por isso mesmo, Nietzsche acabou dizendo que Platão era antes o criador de nosso senso comum que o advogado da filosofia como um salto para fora do senso comum. Nietzsche cansou-se do pensamento dual de tal maneira que chegou mesmo a desejar que fôssemos além daquele que pensa par excellence, o homem. Mas, é certo, houve aqueles que quiseram escapar do pensamento dual com menos fúria que Nietzsche. Hegel quis deixar de lado as dualidades, mas sem se enraivecer contra o próprio pensamento ou contra o homem, aquele que pensa. Inventou uma maneira diferente de ultrapassar os dualismos da filosofia, postos por Platão e reiterados por Descartes e Kant. Hegel inventou uma maneira de contar a nossa história e a história do mundo: a dialética positiva.
Hegel imaginou que para cada peça dualística ele poderia fornecer um dispositivo que fizesse com que essa dualidade produzisse um terceiro elemento que, ao nascer, imediatamente fizesse desaparecer seus progenitores e mostrar-se como uma “superação” desses elementos. Ele chamou a isso de dialética. A palavra já existia antes, mas não com essa função de matar os próprios pais e ainda por cima se proclamar como melhor que eles, como Hegel a instituiu. Assim, Hegel tentou fazer desaparecer do vocabulário filosófico a dicotomia espírito-matéria, sujeito-objeto, etc. Mas não conseguiu evitar que os filhos surgidos após a morte dessas dualidades, ainda que assassinos dos pais, não levassem o sobrenome do pai. De modo que a dialética produziu da dualidade espírito-matéria o Espírito, da dualidade sujeito-objeto o Sujeito e assim por diante. Marx pegou esse dispositivo. E fez o inverso: fez o filho surgido de cada dualidade, após matar os pais pelo seu próprio parto, ficar com o nome da mãe. Marx chamou o filho da principal dualidade, espírito-matéria, de matéria. Quando aplicou esse dispositivo de descrição, chamado dialética, ao mundo histórico-social, fez a dicotomia burguesia-proletariado morrer em nome do filho proletariado. No entanto, percebeu que Hegel tinha uma falha perigosa, a de que o filho trazia algo dos pais que poderia contaminá-lo e, então, tratou de dizer que o proletariado, ao nascer, não poderia ficar com o nome da mãe ou do pai, que tinha de ter um nome próprio que apagasse o passado dual. Chamou o proletariado de nova classe universal e, enfim, de classe nenhuma, de humanidade.
Mas, na esteira da disposição de Hegel de terminar com as dualidades, a filosofia não trouxe ao mundo somente Marx. Quando Marx publicou na Europa a Introdução à Crítica da Economia Política, em 1859, nascia na América aquele que absorver Hegel de um modo diferente: John Dewey.
Dewey leu Hegel e não tardou em se entusiasmar com a ideia de poder produzir descrições mais sofisticadas, menos dóceis ao dualismo e, portanto, mas longe da ladeira escorregadia da caricatura, o maniqueísmo. Mas, por razões difíceis de conjecturar, ele não deu tanta atenção quanto os europeus, à dialética. Talvez os idealistas ingleses que ele leu na universidade americana do século XIX tenham sido responsáveis por essa sua forma inusitada de aproveitar-se de Hegel. Talvez o peso de Darwin na sua formação já mais madura tenha também criado caminhos novos. Ora, mas também há a possibilidade de pensarmos que ele tenha absorvido o clima intelectual da época, na qual Nietzsche estava presente. Isso pode tê-lo feito acreditar que polos opostos não lutam para se destruírem e produzirem superações dialéticas. Penso que não seria errado dizer que Dewey aprendeu de Nietzsche a noção de que um mal pode surgir de coisas boas e coisas boníssimas também trazem à luz desgraças. Dewey preferiu livrar-se do pensamento dual, então, alimentando antes uma filosofia cosmológica, aliás, como Nietzsche, do que propriamente uma metafísica. Ele passou a ver o cosmos como feixes de relações. Nesse seu relacionismo, ele tomou como centro a experiência, essa atividade que por si só descarta dualidades, pois a experiência de pessoas, povos, nações, planetas, fenômenos naturais etc. é alguma coisa unitária e que é posta por si. Descrever as experiências permitiria descrever a nós e ao mundo de uma maneira não dualística e, ao mesmo tempo, desprovida de “superação dialética”, uma expressão altamente contaminada por um juízo de valor interno, ele próprio, talvez, acrítico. Afinal, por qual razão haveríamos de achar que uma síntese, após teses e antíteses, são necessariamente algo tão valoroso quanto o nome que valoramos muito, pela tradição positivista, o progresso? Dewey nunca conferiu à experiência nenhum valor interno, a não ser o valor que cada um de nós pode fazer, a posteriori, ao descrever a experiência, segundo nossos objetivos.
Quando Rorty deixou de lado seu platonismo temperado com certa filosofia analítica, para readotar a filosofia de seus pais, ou seja, o pragmatismo de William James e John Dewey, ele concentrou-se também na eliminação dos dualismos. Toda a filosofia de Rorty se fez como um combate ao dualismo epistemológico verdade/justificação e ao dualismo moral justiça/lealdade. Rorty acreditou que a experiência não permite ser vista por polos e, sim, em espectros. Desse modo, traduziu a verdade como sendo apenas um estágio da atividade de justificação e fez o mesmo com a justiça, que qualificou como uma ampliação da lealdade.
Rorty entendeu sua tarefa na filosofia como a de um forte artífice da redescrição. Empunhando o que leu de Davidson, ele discutiu longamente com Habermas e outros, em quarenta anos de debate, insistindo para o alemão que este não deveria se tornar apenas um proto-deweyano, mas efetivamente um quase-rortiano. Ou seja, para Rorty, Habermas faria melhor se pudesse fazer como ele próprio: tratar a verdade não como o “justificado para toda e qualquer plateia”, presente ou futura, informada ou desinformada, mas como o que é “o mais bem justificado aqui e agora, para esta plateia que é a mais bem informada no momento”. E Rorty achou que essa sua conclusão no campo da discussão do conhecimento poderia vir a se enfiar no campo da moral e da política também. Empunhando o que ele leu de Annette Baier, ele fez uma defesa de Rawls, contra Habermas, dizendo que o melhor não seria tratar outros povos como não racionais perante as soluções postas pelo Ocidente, de modo a chama-los de incapazes de ter princípios válidos de justiça. O melhor seria dizer que os outros povos estavam sendo leais para consigo mesmos e, portanto, justos consigo mesmos, e que poderíamos convencê-los de ampliar essa lealdade para com grupos maiores, por afinidades específicas, até todos nós pudermos ser leais a um grande grupo chamado humanidade ou, mesmo, seres vivos etc.
Assim, diferente de Hegel, Marx e até mesmo Dewey, Rorty preferiu abandonar vocabulários dualísticos em função de vocabulários espectrais. Rorty nos ensinou a ver as melhores palavras como sendo aquelas que pudessem falar em espectros, não em pontos duais, polarizados. Essa tendência rortiana é uma tendência dos nossos tempos, adotada, por exemplo, na medicina psiquiátrica. Os médicos atuais redescreveram várias patologias em termos de espectro, e não mais de pontos fixos, com fronteiras bem definidas. Portanto, hoje ninguém mais é “neurótico maníaco depressivo”, as pessoas hoje são tratadas com sendo portadoras de transtorno bipolar. E o grau desse transtorno é bem variável e maleável segundo o tempo e o tratamento. Do mesmo modo tende a desaparecer, em outros ramos, posições nítidas, pois outras fronteiras são borradas: ninguém é “deficiente” físico ou mental. As pessoas possuem capacidades físicas diferenciadas e, portanto, necessidades diferenciadas. Ninguém pode ser deficiente. Pois se estamos em interação com o mundo, qual a razão de dizer que o mundo, tendo maçanetas em determinados lugares, é o correto enquanto que alguém que não alcança a maçaneta é o errado? Não seria melhor todas as portas ficarem livres de maçanetas?
Essas redescrições rortianas são diferentes das redescrições de Marx, Hegel e Dewey? Diferentes porque se reconhecem como descrições. Ao passo que Marx e Hegel, e talvez até Dewey às vezes, imaginaram que não estavam redescrevendo o mundo e, portanto, mudando o mundo do modo que pode ser mudado, ou seja, interpretando e reinterpretando. Eles imaginaram estar expressando a própria voz do mundo. Eles não falariam, apenas seriam os porta-vozes da mobília do mundo, que estaria se mostrando a eles e se deslocando para eles. Talvez Marx não tenha, de fato, imaginado que ao chamar o burguês de “proprietário de meios de produção” e não apenas de “habitante do burgo” estivesse mudando de nomes por conta de sua inventividade e militância política. Talvez ele tenha acreditado que não trabalhava com a linguagem e, sim, como um enviado de uma missão dada pela própria realidade ontológica. Mas isso, hoje, importa menos. O que importa, hoje, é ver que Rorty se auto-descreveu como aquele que redescrevia – e que isso poderia ser encarado como a atividade da filosofia. No caso, uma atividade de redescrever tudo em termos espectrais, cumprindo uma etapa da guerra de Nietzsche contra Platão.
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* Filósofo, escritor e professor da UFRRJ
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