"As chances de sobrevivência do euro encolhem a cada dia"
Martial Trezzini/AP Photo/Keystone
Flassbeck, economista-chefe da Unctad: saída da crise do euro não está em apertar as finanças de
países mediterrâneos
Qualquer solução duradoura para a preservação da zona do euro tem que trazer de volta níveis sustentáveis de competitividade para todos os países envolvidos. "As chances de sobrevivência do euro encolhem a cada dia", diz o economista-chefe da Agência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad), Heiner Flassbeck, ex-vice-ministro de finanças da Alemanha.
"As divergências de salários e preços na zona do euro estão no centro da crise. Mas mesmo entre os líderes europeus não há uma compreensão sobre as causas da crise e assim não dá para surgir plano consistente", diz ele.
Relatório anual da Unctad vai insistir na importância de retomada dos reajustes salariais nos Estados Unidos, na Europa e no Japão para reativar o consumo e evitar o que Flassbeck chama de "a era das expectativas diminuídas".
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Valor: O que se esperar da zona do euro?
Heiner Flassbeck: Estou cada vez mais pessimista. Temos o cenário de deflação. O único jeito para sair desse ambiente é estímulo fiscal. Mas todo mundo só fala de crise de dívida soberana, ninguém fala de estímulo. É a repetição do problema japonês, em que o governo não foi capaz politicamente de fazer o tipo de estímulo para tirar a economia dessa situação.
Valor: Como se desenvolverá a crise da dívida soberana europeia?
Flassbeck: A zona do euro sofre uma séria crise sistêmica. Os alemães acusam os outros países de não estarem fazendo as coisas corretas. A Alemanha e a Comissão Europeia, ao tratarem dos desequilíbrios macroeconômicos, insistem que não há relação entre os países deficitários e os países superavitários na Europa. Você acredita nisso? É como dizer que entre a cabeça e o estômago não há nenhuma relação. É assim que cada dia as autoridades europeias fazem reunião de crise e não tomam decisão, os rumores se propagam sobre default da Grécia, a especulação cresce e o problema aumenta. A Itália está no radar, mas depois pode ser a França, porque também tem déficit.
Valor: Por que o sr. diz que o euro é uma história de mal-entendidos?
Flassbeck: As divergências de salários e preços na zona do euro estão no centro da crise. Mas mesmo entre os líderes europeus não há uma compreensão sobre as causas da crise e assim não dá para surgir plano consistente. A chanceler Angela Merkel recentemente falou sobre a impossibilidade de se ter diferentes durações de férias entre os países membros da zona do euro. Ora, o núcleo de um união monetária é o acordo de todos os membros sobre uma meta de inflação e nada mais. Não é uma harmonização de orçamentos públicos ou da duração das férias.
Valor: Qual a chance de saída da crise?
Flassbeck: A chance para o futuro da zona do euro, se é que existe, é para ser encontrada em ajustamentos externos em todos os países-membros e não em aperto nas finanças dos países mediterrâneos. A persistente divergência nas taxas de inflação dentro da união monetária é fatal. A diferença de custo e nível de preço entre os países, acumulada durante o tempo, produz níveis insustentáveis de valorização e desvalorização para moedas que não existem mais.
Valor: Qual o tamanho dessa divergência na zona do euro?
Flassbeck: Desde o começo da união monetária em 1999, a Alemanha, o maior país, testou novas maneiras de lutar contra o desemprego. Implicitamente a Alemanha se desvinculou da meta comum de inflação colocando pressão sobre os sindicatos para restringir o crescimento nominal e real dos salários, que ficaram bem abaixo do ritmo esperado pelos parceiros e pelos mercados. No outro lado, na maioria dos países do sul da Europa, a expansão do salário nominal excedeu o crescimento da produtividade nacional e a meta de inflação de 2%. A França foi o único país que manteve um ritmo perfeitamente em linha com o desempenho da produtividade nacional e a meta de inflação. A dinâmica dessa divergência anual produziu dramáticos 'gaps' ao longo do tempo. No final da primeira década da zona do euro, o 'gap' no custo e preço entre a Alemanha e os países do sul da Europa chegou a 25%, e entre a Alemanha e a França, a 15%. Ou seja, a taxa real de câmbio da Alemanha se desvalorizou fortemente, apesar da ausência de moedas nacionais.
Valor: Ou seja, o superávit da Alemanha é o déficit dos parceiros.
Flassbeck: A política de ajuste alemã funcionou tão bem somente porque seus parceiros na zona do euro não podem mais desvalorizar a moeda. A acumulação dessa divergência resultou em vantagem absoluta no comércio internacional para a Alemanha e em desvantagem para os outros países da zona do euro. Um produto comparável, vendido pelo mesmo preço na Europa e no mercado global em 1999, podia ser vendido em 2010 pela Alemanha por 25% a menos do que por outros países da zona do euro, sem tocar na margem de lucro.
Valor: O fato também é que os países periféricos descontrolaram suas finanças.
Flassbeck: Veja, uma meta de inflação de 2% só é compatível com 2% de alta no custo unitário do trabalho. Uma alta salarial de 2,7% na Grécia significa que os gregos viviam acima de seus meios, mas violaram as regras da união monetária num grau bem menor do que a Alemanha, vivendo abaixo de seus meios com alta de somente 0,4% e muito abaixo da produtividade. A Alemanha violou a meta comum quando seu governo começou a impor pressão sobre as negociações salariais para melhorar a competitividade do país dentro e fora da união monetária.
Valor: Há sinal de algum re-equilíbrio?
Flassbeck: Não. Mesmo depois do choque da crise financeira e seus efeitos devastadores no comércio mundial, que são visíveis na balança comercial alemã, a tendência não mudou. A conta corrente da Alemanha em 2010 voltou a crescer e baterá novo recorde em 2011. Por outro lado, a profunda recessão e os programas de austeridade para os países deficitários tendem a reduzir o déficit visível. No entanto, sem uma melhora fundamental da competitividade, uma recuperação rápida é muito menos provável porque esses países não têm nenhum programa de estímulo. Mesmo se houver uma retomada da demanda, isso vai trazer déficits rapidamente nas contas correntes, se não tiver ganho de competitividade.
Valor: Como fazer isso?
Flassbeck: Os salários na Alemanha têm que aumentar por um bom tempo, acima da tradicional regra de crescimento da produtividade nacional mais a meta de inflação. E os países do sul, deficitários, devem ir na outra direção, reduzir os salários. Só que aí o efeito é claramente deflacionário e traz uma ameaça para a recuperação econômica, ainda mais num ambiente de demanda fraca generalizada. Mesmo nesse cenário, o ajuste duraria os próximos dez anos. A vantagem absoluta da Alemanha e seus ganhos de fatias de mercado não desapareceriam antes de 2022.
Valor: Até que ponto tudo isso é plausível?
Flassbeck: Numa situação em que os líderes europeus não entenderam as vantagens fundamentais do euro, argumentos em favor da moeda comum não são fáceis de vender. Mas qualquer solução duradoura tem que trazer de volta níveis sustentáveis de competitividade para todos os países da zona do euro. As chances de sobrevivência do euro encolhem a cada dia.
Valor: O que a crise da dívida soberana muda no mundo?
Flassbeck: Estamos numa fase crítica da economia mundial. As três economias avançadas - os Estados Unidos, a Europa e o Japão - estão tomando o rumo da estagnação. É 70% da economia global na direção da estagnação. Todos têm uma mesma razão, e essa é a mensagem que vamos dar no nosso Relatório sobre Comércio e Desenvolvimento em setembro: é que os salários não estão aumentando nessas economias. E aí a demanda doméstica não cresce. Os últimos dados sobre mercado de trabalho nos EUA, na semana passada, deixam claro que não há nenhuma alta nas horas trabalhadas e nos salários. Isso é um desastre.
Valor: As políticas de estímulo para sair da crise não deram resultado?
Flassbeck: Novos estudos nos EUA mostram que mais de 90% da renda está indo para os lucros. Quer dizer, o governo estimula a economia, aumenta o déficit, o dinheiro vai para os lucros e desaparece em algum lugar nos mercados de capitais. Estamos entrando numa era de expectativas diminuídas, em que as pessoas no mundo industrializado não esperam mais que o salário e a renda aumentem. E, se essa é a expectativa, realmente acontece porque as pessoas consomem menos e a estagnação se propaga. É o que tem acontecido no Japão nos últimos vinte anos, nos EUA nos últimos anos mais do que nunca e agora na Europa. Na Alemanha, os salários não têm aumentado nos últimos 15 anos. Países que aumentaram estão em dificuldades porque elevaram os salários, mas a Alemanha não. Agora estão tendo de cortá-los e terão estagnação.
Valor: Por quanto tempo durará essa estagnação?
Flassbeck: O problema é que isso pode durar vinte anos, como no Japão. É muito difícil sair dessa situação. Quando se entra num ambiente de estagnação, todo mundo espera que a renda congele e freia o consumo. A maneira de sair disso é com uma exportação gigantesca, mas não é o que pode acontecer. Para as exportações globais, o aumento é de 8%. O grande perigo é que estamos entrando exatamente agora nesse ambiente de estagnação.
Valor: O modelo de superendividamento atingiu seus limites?
Flassbeck: As pessoas no mundo industrializado não estão fazendo mais isso, não têm mais confiança de que sua renda vai melhorar. Veja a Alemanha, motor da economia europeia. As famílias poupam 10% de sua renda em média, a Constituição proíbe o governo de se endividar no futuro e o interessante é que as companhias alemãs também poupam 2% do que ganham, ao invés de investir mais. Todo mundo poupa na Alemanha, é uma loucura. Quem vai investir e consumir?
Valor: O que fazer?
Flassbeck: A única solução na Alemanha ou nos EUA é taxar mais as companhias, cortar os lucros do setor privado e aumentar os salários. Mas é evidente que não há nenhuma vontade política para isso. Então caminhamos para o desastre.
Valor: Já nos emergentes fala-se de bolha dos salários.
Flassbeck: Sim, é o outro lado da moeda. Na China os salários estão subindo um pouco e no Brasil bem mais do que a produtividade. Esses países têm que conter o salário nominal, não real, para não ter choques inflacionários mais tarde. Essa é a situação da economia mundial: restrição no lado monetário nos emergentes e corrida para estagnação nos avançados.
Valor: Os emergentes têm fôlego para continuar sustentando a expansão mundial?
Flassbeck: Eles continuarão sendo um motor, mas não é suficiente, são 20% da economia mundial. Estou muito pessimista.
----------------------- Reportagem por Assis Moreira De Genebra
Fonte: Valor Econômico on line, 18/07/2011
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