MARCELO NERI*
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Quando sobem de classe, as pessoas
mudam tanto os produtos que compram
como os locais de compra
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Se a China é a fábrica do mundo, o Brasil é a fazenda. A agricultura brasileira floresce e dá frutos. No social, vai de Josué de Castro, com o seu "Geografia da Fome", nos anos 40, a José Graziano, recém-eleito à presidência da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação).
A bandeira inicial levantada por Lula no seu discurso da vitória foi "Fome Zero", e não o "Tolerância Zero" aplicado à violência em Nova York, por exemplo.
Em 2007, na alta global do preço dos alimentos, que, a rigor, beneficia macroeconomicamente o Brasil, mas prejudica pobres de todas as partes, o governo reajustou o Bolsa Família de forma a compensar a perda de renda na base.
Dilma repete a receita ao eleger como meta principal a erradicação da miséria (tecnicamente, o miserável é aquele que não consegue suprir suas necessidades calóricas básicas). O lema geral de governo é "Um país rico é um país sem pobreza", e o Brasil sem Miséria, a sua principal inovação.
A recente tentativa de compra do Carrefour veio adicionar um tempero global ao comércio local de alimentos. Se o Cristo Redentor decolando na capa da "The Economist" como uma espécie de super-homem virou ícone do momento brasileiro, Abilio Diniz tentou fazer o mesmo com o Pão de Açúcar.
Agora, pelos dados de compras mostrados pela POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares), do IBGE, fica difícil entender todo esse interesse pelo setor varejista de alimentos do país, uma vez que a despesa em alimentação por família caiu 0,34% em termos reais no boom entre 2003 e 2009, quando 36 milhões de pessoas foram incorporadas às classes A, B e C tupiniquins.
Isso significa mais dinheiro no bolso e menos alimento na boca?
O paradoxo aumenta se levarmos em conta a diferença entre a alimentação feita fora do lar, que cresce 29%, e aquela feita em casa, esta vendida pelos supermercados, que cai ainda mais: 9,7%.
Os próprios dados qualitativos da POF contradizem essa ideia: a parcela da população para quem a quantidade não é suficiente cai 34,3%, enquanto a parcela daqueles aos quais a qualidade do alimento é sempre do tipo que querem sobe 33,1%.
Se pensarmos a POF como uma suculenta iguaria, entre o garfo e a boca existem vários percalços. A queda da despesa com comida por família não implica que a despesa por brasileiro também caiu, pois as famílias estão ficando menores à luz da transição demográfica em curso. Em 1992, cada domicílio tinha cinco pessoas e, agora, menos de quatro --esse é o segredo da receita. O problema afeta os desavisados, que usam as tabulações do IBGE como se fossem "junk food".
Na verdade, a despesa de alimentação em casa por brasileiro não caiu. Agora, a gente não quer só comida, se forem incluídas as despesas com bebida, material de limpeza, produtos de higiene pessoal e outros agregados. Quando sobem de classe, as pessoas mudam tanto os produtos que compram como os locais de compra. Esse é o pomo da discórdia franco-brasileira. Alguém da classe E faz 28% dessas despesas em supermercados, enquanto as classes A e B fazem 63%.
Se medirmos onde o custo da sola de sapato de Milton Friedman é gasto, as classes A e B, que crescem mais que todas as demais, compram em supermercados quatro vezes o que a classe E compra e fazem 30% menos compras em outros estabelecimentos.
À medida que a sociedade fica mais rica, especialmente se sai da base da pirâmide -como aqui, mas não alhures-, gasta mais tempo nesses locais com ar condicionado, tanto pelo leque de escolhas e praticidade, incluindo estacionamento e, agora, as vias da internet, como pela segurança. Se aplicarmos a projeção de composição de classes do CPS (Centro de Políticas Sociais) para 2014, fruto do efeito renda, as despesas em supermercado crescerão de 47% para 52% como parcela do agregado de despesas.
Alfred Marshall dedicou atenção a lições do mercado de peixes. Os leitores da Folha talvez achem que, se estivesse vivo, Marshall usaria agora como inspiração o mercado financeiro. Discordo: o super, ou melhor, o hipermercado de agora é o próprio. Nenhum outro descreve melhor o nosso dia a dia.
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* MARCELO NERI, 48, é economista-chefe do Centro de Políticas Sociais e professor da EPGE, na Fundação Getulio Vargas.
Fonte: Folha on line, 31/07/2011
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