Reportagem de capa:
No mundo todo, cidades crescem em velocidade nunca vista,
problemas se multiplicam, mas esse parece
ser o preço do progresso.
Na China, o adensamento urbano se reflete no ritmo intenso
das construções (como em Pequim, na foto) e
consequente aumento dos danos ao ambiente
Londres levou um século para se transformar numa metrópole de 10 milhões de habitantes. Hoje, a cada hora, 11 pessoas escolhem morar em São Paulo. A cada hora, Mumbai, na Índia, ganha 44 novos habitantes. Lagos, na Nigéria, recebe 300 mil pessoas por ano. Nesse ritmo, o que os países desenvolvidos levaram cem anos para fazer o mundo está vendo acontecer agora em menos de 35 anos. São números e cálculos do estudo "Living in the Endless City", (vivendo na cidade sem fim), publicado pela London School of Economics.
O futuro superurbano que se avizinha é inevitável e ninguém mais duvida que quase 70% da população mundial (68%, segundo projeções da ONU) estarão nas cidades em 2050. A discussão entre os pesquisadores - o Valor conversou com sete deles - trata de como lidar com os inúmeros e imensos efeitos colaterais desse crescimento urbano acelerado e inédito.
Sem as cidades, os estudiosos têm certeza de que seríamos mais pobres, menos desenvolvidos, em suma, e até menos propensos ao casamento. O economista Edward Glaeser, professor em Harvard, um dos mais provocativos pesquisadores da vida urbana, diz que, nos países onde mais da metade da população se concentra em cidades, a renda é cinco vezes maior e a taxa de mortalidade infantil é mais de um terço inferior ao mesmo indicador em países predominantemente rurais. O trabalhador de uma metrópole é 50% mais produtivo, em média, ganha 30% mais e se diz mais feliz do que quem mora em áreas rurais. As chances de se encontrar um parceiro nas cidades são muito maiores, por causa da concentração de jovens solteiros. Em 2008, eles eram metade da população adulta em Nova York, sem contar os 139 mil divorciados.
"As pessoas só aturam trânsito, violência, poluição, todas as desvantagens das cidades, por causa das oportunidades", explica o professor Elliott Sclar, diretor do Centro de Desenvolvimento Urbano Sustentável da Universidade Columbia. "É da diversidade e heterogeneidade urbana que nascem novas ideias, e novas tecnologias são criadas e disseminadas."
"O modelo básico de desenvolvimento urbano brasileiro não mudou, estamos fazendo casas sem fazer cidades", diz Raquel Rolnik
Glaeser conta que foi na Paris do fim do século XVIII que Mathuin Roze de Chantoise "inventou" o restaurante, ao criar um lugar onde se serviam sopas revigorantes a pessoas sentadas em mesas individuais, que escolhiam seu prato e pagavam contas também diferenciadas. Em seu livro "Os Centros Urbanos: A Maior Invenção da Humanidade" (Campus, 2011), Glaeser mostra como o teatro, a invenção da escrita, a Reforma Protestante, o Facebook e até os gastos de uma família com sapatos têm a ver com as cidades. (Ver entrevista na página 7)
A primeira onda de urbanização no mundo aconteceu entre 1750 e 1950, quando a América do Norte e a Europa construíram suas cidades. É quando Nova York se enche de indústrias e Chicago aproveita a localização privilegiada para vender para o interior dos Estados Unidos. É a época dos canais, dos barcos a vapor, das ferrovias e do automóvel. Dito de maneira simplificada, é um período em que as cidades são pontos importantes de produção e a proximidade a uma rede de transporte define muito de seu sucesso.
Agora o foco mudou. É a vez da Ásia e da África, onde a Organização das Nações Unidas estima que a população urbana vá dobrar entre 2000 e 2030. "A migração rural está ocorrendo sem que as cidades tenham condições de gerar empregos" diz o professor Andrea Colantonio, da London School of Economics, sobre a urbanização na África. "Isso tem aumentado os bolsões de pobreza urbana nas periferias, assentamentos ilegais e favelas."
Índia e China representam o outro grande movimento de pessoas no planeta. Nos dois países, o crescimento econômico puxa a migração, num processo parecido com o que já se viu em outras partes do mundo: industrialização, criação de uma classe média e a exacerbação de desigualdades espaciais e de renda.
Mas as semelhanças param aí. O governo chinês conduz um processo planejado de construção, remoção de populações e adensamento urbano. A oferta de infraestrutura aumenta junto com os danos ambientais, visíveis bem no centro de Pequim quando a fumaça, não raramente, encobre a imagem de Mao Tsé-tung na Praça da Paz Celestial.
"O modelo básico de desenvolvimento
urbano brasileiro não se transformou.
Continuamos dando mais para quem já tem.
Os programas recentes conseguiram
avanços significativos, mas estamos fazendo
casas sem fazer cidades",
diz Raquel Rolnik."
Na Índia, a extrema pobreza e a falta de infraestrutura estão criando cidades disfuncionais. O "New York Times" descreve Gurgaon, a 25 quilômetros de Nova Déli, capital do país: a vila rural de duas décadas atrás tem hoje 26 shopping centers, sete campos de golfe, lojas Chanel, Louis Vuitton e BMWs. Mas não tem rede de esgoto, falta energia e a água vem de cisternas. O sistema de transporte coletivo consiste nas frotas que cada empresa contrata para levar e buscar seus funcionários.
"Na África e nas partes pobres da Ásia, o ritmo da urbanização é mais rápido do que as respostas de políticas públicas", avalia o urbanista e professor Ricky Burdett, um dos organizadores do recém-publicado "Living in the Endless City", que analisa a situação urbana em São Paulo, Istambul e Mumbai.
O Brasil e outras partes da América Latina já passaram pela época mais aguda dos problemas da urbanização, em que as cidades incharam, a pobreza explodiu e a infraestrutura urbana não conseguiu acomodar a demanda. Os dados do censo de 2010 mostram um país urbano, onde 84,4% da população vivem em cidades. Entre 2000 e 2010, as cidades brasileiras ganharam 23 milhões de moradores, mas a população do país como um todo cresce à menor taxa da história.
Nas últimas décadas, o Brasil conseguiu melhorar a qualidade de vida nas cidades. Os professores Raquel Rolnik (Universidade de São Paulo) e Jeroen Klink (Universidade Federal do ABC) calcularam que, em 1991, menos de 23% dos domicílios brasileiros podiam ser considerados adequados - com acesso a todos os serviços urbanos básicos, entre os quais água, esgoto, coleta de lixo, eletricidade e casa com banheiro. Em 2000, a proporção de residências totalmente adequadas aumentou para 33%. Outra mudança ocorreu nos municípios que antes não ofereciam nenhum serviço básico. Em 1991, representavam quase 52,6% dos domicílios brasileiros. Em 2000, a proporção havia caído para 16,58%. Nesse período, a maior oferta de água tratada - quase universal no país, atualmente - e a ampliação da rede elétrica rural explicam a redução da precariedade dos serviços urbanos.
O retrato do país em 2010 ainda depende de dados que o IBGE vai divulgar, mas as melhores indicações são de que a precariedade urbana continua crescendo, embora a intensidade seja menor. "Uma maior proporção dos assentamentos precários dispõe de água, luz, algum ou até vários tipos de infraestrutura", explica o pesquisador Eduardo Marques, do Centro de Estudos da Metrópole. "Mas o estoque de precariedades é muito grande e vamos conviver com isso num grau elevado por muito tempo".
Numa análise de curto prazo, a principal mudança nas políticas urbanas brasileiras se chama dinheiro. Em 2005, todos os programas, fundos e financiamentos somavam R$ 13,8 bilhões, segundo dados do Ministério das Cidades. Em 2010, passavam dos R$ 70 bilhões - crescimento superior a 400%. Segundo Marques, programas como o PAC têm permitido urbanizar favelas em ritmo acelerado. Os subsídios do Minha Casa, Minha Vida aumentaram a oferta de moradia para a faixa da população entre três e cinco salários mínimos. Mas há críticas.
"O modelo básico de desenvolvimento urbano brasileiro não se transformou. Continuamos dando mais para quem já tem. Os programas recentes conseguiram avanços significativos, mas estamos fazendo casas sem fazer cidades", diz Raquel Rolnik. "O Minha Casa, Minha Vida é uma política genial para a produção industrial de casas, mas não tem componente de política urbana."
A Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada de 2016 serão como dois grandes e potentes holofotes sobre as cidades brasileiras. Mas nenhum dos seis especialistas ouvidos pelo Valor acredita que sejam capazes de provocar grandes mudanças. Os termos "oportunidade", "catalisador", " ganhos de infraestrutura" vêm acompanhados de "planejamento", "visão de longo prazo para as cidades", "custos futuros de manutenção", "expulsão dos mais pobres dessas áreas" e "integração ao resto do espaço urbano".
"A tarefa de organizar os jogos é tão grande, que será sempre o foco. É preciso ter alguém pensando e se preocupando com o que vai acontecer", diz Richard Brown, da London Legacy Company, agência criada pelo governo inglês para gerenciar o parque olímpico após 2012.
"As ostras só produzem a pérola
porque são irritadas pelo grão de areia.
As cidades fazem o mesmo e
é por isso que são importantes,
é por isso que as pessoas
vão para lá".
- Professor Elliott Sclar -
A pressão criada pela velocidade do processo de urbanização atual não permite comparações históricas muito precisas. Afinal, ninguém imagina que seja possível colocar abaixo metade dos prédios de uma cidade, como fez o barão Haussmann ao remodelar Paris no fim do século XIX. Ou que seja possível ignorar danos ambientais, como fizeram os Estados Unidos quando passaram a investir nos subúrbios movidos a carros. Mas a experiência acumulada lá e na Europa mostra que a expansão urbana e toda sua problemática constituem talvez uma das poucas áreas em que o papel do Estado e a interferência direta dos governos ainda são bem-vindos.
Quando Nova York tentou privatizar o fornecimento de água, no século XVIII, a corrupção quebrou a empresa e a cidade continuou sem água limpa. A privatização do transporte coletivo na década de 70 no Chile levou à concentração de ônibus de Santiago numa única avenida. As favelas no Rio são outro retrato de como o governo, ou sua ausência, define o espaço urbano. Nas cidades de agora, o Estado não tem como fugir de investimentos maciços em infraestrutura básica, mas precisa, talvez na mesma magnitude, de competência administrativa para regular contratos e supervisionar os prestadores de serviços. Pesquisas indicam que políticas urbanas eficazes têm como princípio conter o crescimento desordenado das periferias, estimular cidades compactas, não deixar que áreas ricas se cerquem em condomínios fechados e desestimular o uso do automóvel. Na globalização, as cidades também estão deixando de ser centros de produção e a principal explicação para o sucesso de umas e a decadência de outras são as diferenças no nível de educação dos moradores.
Não são questões simples ou fáceis de resolver, mas as soluções não virão de outro lugar que não das próprias cidades, porque, como diz o professor Elliott Sclar "se você vive isolado, continua pensando hoje o que pensava ontem. Se está numa cidade e a pessoa ao seu lado o irrita, você é obrigado a pensar. É como a ostra e a pérola. As ostras só produzem a pérola porque são irritadas pelo grão de areia. As cidades fazem o mesmo e é por isso que são importantes, é por isso que as pessoas vão para lá".
---------------------------REPORTAGEM por: Leandra Peres Para o Valor, de Washington
FONTE: Valor Econômico › EU& Fim de semana › Cultura - 15/07/2011
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