segunda-feira, 13 de maio de 2019

Papa Francisco, herético?

Anselmo Borges*

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1. Numa longa carta aberta de 20 páginas, publicada no LifeSiteNews em tempo de Páscoa, mais concretamente no dia 30 de Abril passado, um grupo de académicos, teólogos e padres católicos dirige-se ao colégio dos bispos da Igreja Católica invocando duas razões: acusar o Papa Francisco do "delito canónico de heresia" e requerer que os bispos façam o que é preciso para que ele renuncie publicamente a essas heresias ou se lhe aplique o estabelecido canonicamente, incluindo a remoção do cargo papal. E os bispos têm o dever de agir porque "a acumulação de danos causados pelas palavras e actos do Papa Francisco ao longo de anos foi causa de uma das piores crises da história da Igreja Católica."

2. Quais são essas heresias por palavras e actos?
Em síntese, Francisco é acusado de aceitar que católicos divorciados e recasados civilmente possam ser admitidos, em certas circunstâncias, à comunhão; acusado de não se opor de forma mais contundente ao aborto; acusado de, no diálogo ecuménico com os luteranos, manifestar acordo com Lutero em alguns pontos; acusado de acolher os LGBT; acusado de afirmar que a diversidade de religiões não só é permitida por Deus, mas querida; acusado de ter dado cobertura e mesmo ter promovido personalidades que também dão cobertura a estas heresias, aceitam a moralidade de actos homossexuais e/ou praticaram ou encobriram abusos sexuais de menores...

Como exemplo de quem, em vez de ser condenado, foi promovido aparece o arcebispo José Tolentino de Mendonça. Com estas palavras: "Em 2013, Mendonça louvou a teologia da irmã Teresa Forcades, que defende a moralidade de actos homossexuais, declara que o aborto é um direito e que afirmou que 'Jesus de Nazaré não codificou nem estabeleceu regras'. Francisco fê-lo arcebispo e chefe dos Arquivos Secretos do Vaticano. E também o escolheu para pregar o retiro quaresmal a ele e à Cúria em 2018."

Outro exemplo: O cardeal Maradiaga, para lá de outras heresias, afirmou que "dentro do Povo de Deus, não há uma classificação dual dos cristãos - laicado e clero, essencialmente diferentes - e que, para se falar correctamente, não se deveria falar de clero e laicado, mas de comunidade e ministérios (serviços)."

3. Embora não seja possível aprofundar os problemas convenientemente, examinemos as "heresias", que de modo nenhum o são, ao contrário do que pretendem esta e outras minorias no seio da Igreja, aguerridas contra o Papa Francisco. Pela ordem acima enunciada.

3.1. Quanto aos recasados. Francisco não abre as portas indiscriminadamente a todos. Diz que há casos e casos e cada caso deve ser examinado na sua concreção, com aconselhamento de um padre, com discernimento e atenção à consciência. Os cristãos não podem ser tratados infantilmente como menores. Aliás, em 1972, o próprio professor Joseph Ratzinger, mais tarde Bento XVI, escreveu: o casamento é indissolúvel. Mas quando "um primeiro casamento se rompeu há já algum tempo" e de modo irreparável, e quando "um segundo enlace se vem manifestando como uma realidade moral e está presidido pela fé, especialmente no que concerne à educação dos filhos (de tal modo que a destruição deste segundo casamento acabaria por destroçar uma realidade moral e provocaria danos morais irreparáveis), neste caso - mediante uma via extrajudicial -, contando com o parecer do pároco e dos membros da comunidade, dever-se-ia consentir a aproximação da comunhão aos que assim vivem". Penso que se deverá acrescentar uma outra condição: se se esclareceram as obrigações do primeiro casamento.

Porventura é heresia apelar para a gradualidade da verdade nestes casos? Quem estudou hermenêutica sabe que, evidentemente, na lógica, na matemática, nas ciências empírico-matemáticas, não há gradualidade, porque há o critério da verificabilidade experimental, e por isso não há uma ciência para homens, outra para mulheres, uma para budistas, outra para católicos ou ateus... Mas, na verdade pastoral, há essa gradualidade, pois é necessário atender a cada pessoa, às suas circunstâncias, à sua situação, à sua história...

Sim, Francisco disse que "muitos casais que coabitam têm a graça do matrimónio". Ele apela para a importância do tempo e dos processos... Eu próprio tenho realizado o casamento de jovens casais que já coabitavam e que, num processo de maturação, concluíram que queriam realizar o seu casamento na Igreja. A realidade humana é histórica, processual...

3.2. Alguém de boa-fé pode negar que Francisco se tem oposto permanente e veementemente ao aborto? Simplesmente, é necessário atender às pessoas e aos seus dramas. E a Igreja deve acolher e não excluir nem oprimir quem já sofre de mais. Por isso, Francisco concedeu a todos os padres o que antes estava reservado aos bispos: na confissão, o poder de absolver também esse pecado.

3.3. Quanto a Francisco e a Lutero. Claro que não é heresia afirmar que "as intenções de Martinho Lutero não estavam erradas. Era um reformador. Talvez alguns métodos não tenham sido correctos... E hoje luteranos e católicos, protestantes, todos nós concordamos com a doutrina da justificação. Neste ponto, que é muito importante, não errou".

Quem anda minimamente atento sabe que o acordo oficial quanto à questão da justificação vem de antes do pontificado de Francisco. Realmente não é Deus que tem sempre a iniciativa? As nossas boas obras não são por graça de Deus? E quem pode negar que devemos estar gratos pelos "dons espirituais e teológicos recebidos através da Reforma"?
É sabido que Lutero não queria entrar em ruptura com a Igreja. Foi Roma que não entendeu nem quis superar a corrupção em que vivia. Os autores da carta querem continuar a vender indulgências?

3.4. Francisco é acusado de receber homossexuais e dizer que quem os "descarta" não tem espírito cristão.
É evidente que os homossexuais não podem ser discriminados. Hoje, é sabido que 8% da população tem orientação homossexual. Há quem os acuse de deboche, disto e daquilo. Pergunto: e entre os heterossexuais só há santos? O que o Papa não quer e eu também não é o lóbi gay nem outros lóbis...
Quanto aos transexuais, seja-me permitido apresentar um caso concreto. Fui procurado por uma pessoa nessa situação. Fiquei bem ciente de quanto se pode sofrer... e da complexidade que esta situação deverá implicar - biológica, psicológica, social e cultural -, exigindo um enorme rigor e seriedade na sua compreensão.

É urgente que também na Igreja se avance no conhecimento da ciência, da biologia, etc.

Aproveito para deixar uma palavra sobre uma questão hoje muito acesa e sobre a qual me pronuncio criticamente e Francisco também. Estou a falar da "ideologia do género". Sim, conheço e aprovo a distinção entre sexo e género, no contexto dos chamados gender studies e do seu contributo. Oponho-me é à ideologia do género, quando se pretende que a identidade sexual é pura construção social; não é verdade, o biológico também intervém; assim, hoje, pela imagiologia cerebral, até sabemos que a configuração do cérebro masculino e feminino é diferente, com todas as consequências.

Francisco também se pronunciou sobre o tema na obra Politique et Société, resultado de 12 encontros com Dominique Wolton, intelectual francês, laico, director de investigação no Centro Nacional de Investigação Científica (CNRS), especialista em comunicação. Nestes termos, Wolton: "A ideologia do género não é o mesmo problema. É um desvio sociológico. Consiste em dizer que os sexos são indiferenciados e que é unicamente a sociedade que distribui o papel masculino ou o papel feminino. Terrível este determinismo. Não há nem natureza, nem cultura, nem destino, nem liberdade, resta apenas a determinação social. E, se és contra estes determinismos, chamam-te reaccionário. Dizem-te que adoptas as posições da Igreja. A deriva ideológica fez-se em vinte anos." Francisco: "Isto é uma confusão crítica, neste momento. Disse-o um dia publicamente na Praça de São Pedro, ao falar sobre o casamento: há ideias novas e eu pergunto-me se estas novas ideias, como a ideologia do género, não assentam em última análise no medo das diferenças." Wolton: "Uma negação das múltiplas formas da alteridade e da diferença?" Francisco: "Disse-o em forma de pergunta. E encorajo os investigadores a debruçarem-se sobre o assunto." Wolton: "A ideologia do género é o risco de uma negação da diferença. Ora, a diferença não é só social. É muito mais complicado. Trata-se de uma forma de determinismo ao contrário: ao dizer-se que não há homens, que não há mulheres, que tudo depende da sociedade, na realidade cria-se uma forma de determinismo social." Francisco: "Não quereria que se confundisse a minha posição sobre a atitude para com as pessoas homossexuais com a questão da teoria do género."

Neste domínio, quero referir também a grande polémica por causa de acções sobre igualdade de género em escolas. Aqui, estou com Henrique Monteiro, quando escreve que é necessário distinguir: "Se as acções são apenas contra a discriminação de qualquer género e orientação, tudo bem. Mas, se acaso são para propagar a ideologia de género, que diz que nascemos sem ele e que o sexo biológico reprime a essência do nosso ser etc... e tal... é caso para prudencialmente acabar com tal programa. Nem provas científicas nem razões substanciais existem. Apenas uma teimosia ideológica desnecessária."

3.5. Francisco é acusado por ter assinado, juntamente com o grande imã da mesquita Al-Azhar, em Abu Dhabi, o "Documento sobre a Fraternidade Humana". Acusam-no concretamente por causa desta afirmação: "A liberdade é um direito de cada pessoa: cada indivíduo goza da liberdade de crença, pensamento, expressão e acção. O pluralismo e a diversidade de religiões, cor, sexo, raça e língua são queridos por Deus na sua Sabedoria."

O que é que os autores da carta querem? Que não haja liberdade religiosa? Querem o uniformismo? Não será a unidade na variedade a riqueza da vida também no domínio religioso? Estou convicto de que Deus se revelou de modo definitivo e inultrapassável em Jesus. No entanto, o Jesus que disse: "Eu e o Pai somos um" também disse: "O Pai é maior do que eu." O que é que isto quer dizer? Evidentemente, as religiões não são todas iguais, mas elas todas, na medida em que não sejam contra o Humanum, pelo contrário, o promovam, são caminhos para Deus, que está para lá de todas elas. Não se pode esquecer que as religiões não existem para elas mesmas, pois estão ao serviço de Deus e da humanidade. E o Papa esforça-se no combate a favor da paz, concretamente com o islão moderado, a favor do diálogo inter-religioso. Sem afastar nem postergar a identidade cristã, evidentemente.

3.6. Quanto aos abusos sexuais, os críticos deviam ter vergonha. Houve porventura alguém que tenha feito mais do que o Papa Francisco para que se ponha termo a esse escândalo execrável na Igreja? Acaba, aliás, de publicar o motu proprio (decreto papal) "Vos estis lux mundi" (Vós sois a luz do mundo) que, na sequência da cimeira de Fevereiro passado em Roma sobre a pedofilia na Igreja, ratifica com normas concretas para a Igreja universal a luta contra os abusos de menores e os seus encobridores. Será o tema da minha próxima crónica aqui.

3.7. Criticam o Papa também por causa do que disse o cardeal Maradiaga: que, na realidade, é melhor falar de comunidade e ministérios na Igreja do que de clero e laicado. Os críticos ainda não viram que enquanto baptizados, na Igreja, há uma real igualdade na dignidade, pois o padre, o bispo e o próprio Papa não são mais do que o leigo, todos são igualmente cristãos, embora com ministérios, serviços diferentes. Não há diferença essencial, ontológica, entre eles.
Julgo sinceramente que tudo se joga essencialmente logo no endereço da carta dirigida aos bispos nestes termos: Your Eminence, Your Beatitude, Your Excelence, ignorando que Jesus não se fez tratar por Sua Eminência Reverendíssima, Sua Excelência Reverendíssima... Jesus disse: "Eu não vim para ser servido, mas para servir" e: "Sois todos irmãos."

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 * Padre da Sociedade Missionária Portuguesa. Estudou  Teologia (Universidade Gregoriana, Roma), Ciências Sociais (École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris) e Filosofia (Universidade de Coimbra). Lecionou Filosofia e Teologia na Universidade Católica Portuguesa e no Seminário Maior de Maputo, Moçambique. É docente de Filosofia (Antropologia Filosófica, Filosofia da Religião, Ética, Mulheres e Religiões) na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Algumas das suas publicações: Marx ou Cristo?; Janela do (In)visível; Religião: Opressão ou Libertação?; Morte e Esperança; Corpo e Transcendência; Deus no século XXI e o futuro do cristianismo (coord.); Janela do (In)finito; Deus e o sentido da existência; Religião e Diálogo Inter-Religioso (esta última editada em 2010 pela Imprensa da Universidade de Coimbra). É colunista do “Diário de Notícias” sobre temas de religião.
Fonte:  https://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/anselmo-borges/interior/papa-francisco-heretico-10883989.html 12/05/2019
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