terça-feira, 21 de maio de 2019

Teologia da Libertação ou da Prosperidade?


Gianfranco Ravasi*
 http://www.ihu.unisinos.br/images/ihu/2019/05/21-05-2019-partilha-paes-cristo_reproducaointernet.jpg
“Não se deve esquecer que, precisamente na América Latina, está se alargando o manto de uma concepção religiosa (considerá-la como ‘teologia’ é excessivo) antitética. É a chamada ‘teologia da prosperidade’ de matriz neoliberal e conservadora. Ela parte de uma afirmação antigo-testamentária, criticada, aliás, pelo próprio Jesus (leia-se João 9, 1-3), segundo a qual ao delito corresponde um castigo, a um sofrimento, uma culpa, a uma riqueza, a bênção divina que endossa a obra do beneficiado”.

Há 50 anos, em 1969, era publicado em Montevidéu um livro intitulado “Hacia una teología de la liberación” (Rumo a uma teologia da libertação). O autor era um ainda jovem teólogo, Gustavo Gutiérrez, nascido em 1928 em Lima, com estudos em medicina na sua cidade natal, em filosofia e psicologia em Louvain e em teologia em Lyon. Naquele título, ressoava o sintagma “teologia da libertação”, que se tornaria uma bandeira desfraldada em toda a América Latina e uma espécie de pesadelo, por sua vez, em certos âmbitos eclesiais, começando pela Cúria Romana.

Dois anos depois, em 1971, aparecia em Lima um texto programático dele, intitulado de modo lapidar como “Teologia da Libertação” (traduzido para o italiano no ano seguinte pela Queriniana, de Bréscia), marcado por uma perspectiva disruptiva em relação à reflexão dominante da época. De fato, o contexto era diferente, os interlocutores eram diferentes, o método era diferente, a sistematização temática era diferente. Para o mundo ocidental de matriz europeia, o desafio que levantava desafios candentes era a secularização, a não crença. Para o horizonte latino-americano, era a não humanidade, ou seja, o pobre, o oprimido, o explorado.

O marco religioso não era posto em crise por um ataque intelectual e teórico, mas sim por uma sociedade desumana que infringia o cânone cristão da dignidade pessoal e da caridade. Compreende-se, assim, a já célebre e até abusada fórmula cunhada na conferência do episcopado latino-americano realizada no México em Puebla, em 1979, dez anos depois do primeiro ensaio de Gutiérrez: “A opção preferencial pelos pobres”.

A teologia da libertação, assim, recebia um aval eclesial que, porém, não compreenderia a sua vitalidade fremente que levou alguns expoentes a recorrer a instrumentos externos, como a análise marxista da história, ou a teoria sociopolítica da dependência estrutural dos países latino-americanos do imperialismo estadunidense, ou até as pulsões revolucionárias que se agitavam no continente.

O eixo se deslocava, assim, cada vez mais para reivindicações sociais, configurando uma espécie de escatologia terrena, criando reações por parte das instituições centrais da Santa Sé. Houve, então, uma primeira Instrução sobre alguns aspectos da teologia da libertação, emitida em 1984 pela Congregação para a Doutrina da Fé, que marcava as recaídas ideológicas de algumas abordagens militantes do movimento.

Na realidade – e Gutiérrez é um exemplo disso – também eram muitos os aspectos positivos, a partir justamente do conceito de liberdade que não pode ser considerado apenas abstratamente, mas também no seu exercício concreto dentro dos processos históricos e socioculturais, transformando-se assim em “libertação”.

Foi supondo tal linha que se moveu a segunda Instrução sobre libertação cristã e libertação, proposta em 1986 pela Congregação vaticana. Sob essa luz, a teologia não podia ser neutra, mas, no contexto específico, devia se atualizar com uma solidariedade efetiva, pondo-se do lado dos oprimidos e dos pobres. Não se deve ignorar que os eventos fundadores da fé bíblica, como o êxodo de Israel da escravidão do Egito e o próprio anúncio e a obra de Cristo, movem-se ao longo dessa trajetória.

A concepção de Gutiérrez se situa em uma perspectiva semelhante. A Igreja deve se inserir como semente e fermento nos processos de libertação integral da pessoa e dos povos, oferecendo a sua contribuição eficaz para que o reino de Deus, erigido sobre a verdade e sobre a justiça, comece já agora a ser edificado como primeira etapa da plenitude escatológica.

A teologia tem a função de elaborar uma reflexão crítica do comportamento eclesial, reiterando alguns pilares, como a dignidade da pessoa, a noção do Deus bíblico presente e ativo na história, a dimensão comunitária e não intimista da fé cristã, a Palavra de Deus como como abstrato recipiente de verdade, mas como dinâmica promoção de caridade e justiça, de modo a criar o “homem novo” mais livre e na plenitude da sua pessoa.

A figura do teólogo peruano foi um ponto de referência para muitos, também pelo rigor e pelo calor de seu pensamento, que foi capaz de evitar certos desvios sociopolíticos, mas sem adoçar a incidência concreta da sua visão. Ela se baseia, de fato, em uma liberação “integral”, porque a pessoa humana é compacta e unitária, e, portanto, a teologia exige estar sempre encarnada e contextualizada. Assim, o horizonte se ampliou nas suas obras posteriores, envolvendo temas como as minorias, a vida, a dimensão mística, a sexualidade, a educação e a cultura. Embora agora menos relevante, precisamente por causa de um contexto sociocultural e político diferente, a reflexão de Gutiérrez continua sendo um ponto nodal ainda vivo na teologia e na pastoral, como atesta o magistério do Papa Francisco.

Porém, não se deve esquecer que, precisamente na América Latina, está se alargando o manto de uma concepção religiosa (considerá-la como “teologia” é excessivo) antitética. É a chamada “teologia da prosperidade” de matriz neoliberal e conservadora. Ela parte de uma afirmação antigo-testamentária, criticada, aliás, pelo próprio Jesus (leia-se João 9, 1-3), segundo a qual ao delito corresponde um castigo, a um sofrimento, uma culpa, a uma riqueza, a bênção divina que endossa a obra do beneficiado.

Então, identifica-se na saúde, no bem-estar, no sucesso econômico-social, na “prosperidade”, justamente, a bênção ou a aprovação de Deus. Pobreza, doença, miséria, infelicidade, em vez disso, sinalizariam o juízo e a maldição divina. Essa justificação mecânica do bem e do mal, que está nos antípodas da leitura “liberacionista”, tem atualmente um grande sucesso em muitos grupos religiosos sul-americanos, sobretudo de natureza pentecostal-carismática ou em novas “Igrejas” evangélicas, que têm um forte impacto sobre a população marginal, como força ilusória, e sobre a própria vida política (por exemplo, no Brasil, é o caso de muitos partidários de Bolsonaro e do prefeito do Rio de Janeiro, chefe de uma nova “Igreja”).
-------------
*Prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado em Il Sole 24 Ore, 19-05-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Nenhum comentário:

Postar um comentário