quinta-feira, 2 de maio de 2019

As muitas faces da relação entre religião e violência

Não podemos tolerar a instrumentalização da fé em nome de projetos políticos escusos e violentos

Em 27 de abril participei, no Rio de Janeiro, de uma roda de conversa organizada pelo grupo evangélico Fé e Política: Reflexões, sobre Religião e Violência, coordenado pelos pastores batistas Irênio Chaves e João Batista Pinheiro. Momento especial de aprendizado com pessoas comprometidas e preocupadas com o momento de crise que vivemos na vida política do Brasil. Na mesa, fui acompanhada pela pastora luterana Lusmarina Garcia e pelo pastor batista Clemir Fernandes.
 
Um elemento comum permeou o diálogo: a noção de que o conectivo “e” diz respeito ao fato de que as religiões, embora promotoras da paz, praticam e motivam violência e também sofrem com ela. Isto porque, como parte da natureza humana, há muitas formas de violência.

A vida é afetada constantemente por assassinatos, agressões físicas, guerras, genocídios e massacres e também pela violência praticada no cotidiano, normalizada, naturalizada em práticas de relacionamento humano. Ao mesmo tempo em que há grupos religiosos que promovem estas formas de violência por meio de discursos exclusivistas, justificados por uma única verdade, há outros que sofrem com a intolerância resultante deste mesmo tipo de postura.

Esta é uma contradição significativa porque todas as religiões são embasadas em doutrinas que têm um discurso muito significativo de paz. Paz no mundo e paz entre elas mesmas. No entanto, a força da cultura de violência relacionada aos contextos nos quais os grupos religiosos estão inseridos e a dimensão humana da intolerância e do ódio levam à sacralização de práticas violentas (atribuição da violência à vontade de Deus) e à instrumentalização das religiões para fins violentos (especialmente o uso político da dimensão religiosa).

Estas sacralização e instrumentalização orientam a forma como se lê os livros religiosos. As narrativas “banhadas de sangue”, que representam a forma humana de interpretar religiosamente certos episódios, lidas de forma descontextualizada, acabam sendo utilizadas para justificar práticas violentas no presente provocadas ou apoiadas por grupos políticos ou religiosos.

Por isso, o noticiário está inundado de histórias de assassinatos, guerras e genocídios em nome de Deus. Há casos como a invasão do Iraque pelos Estados Unidos ou os ataques a tiros a igrejas negras por cristãos brancos, os vários atentados terroristas de grupos radicais islâmicos, como o que ocorreu recentemente no Sri Lanka, a eliminação da população muçulmana em Myanmar por budistas, o genocídio palestino por judeus…

Vários destes casos estão relacionados à intolerância religiosa, a exemplo do que acontece no Brasil com as religiões de terreiros, que sofrem com depredações e agressões físicas.

E há ainda os casos invisíveis, aqueles da violência naturalizada, de forma simbólica, no cotidiano, sustentados, boa parte das vezes, por grupos religiosos. Esta é a forma que mais afeta as pessoas pois relaciona-se à exigência religiosa de que elas vivam dentro de um molde, na base do sacrifício de ideias, do corpo, dos projetos de vida. Violência que passa pela imposição de culpas, pelo ato de subjugar.

As mulheres são as que mais sofrem esta violência simbólica pelas religiões, quando delas se espera submissão aos homens mais fortes (pais, maridos, irmãos e demais chefes de família, líderes religiosos), perdendo o controle sobre os seus próprios corpos.

Entretanto, também são fonte de intensa violência os discursos religiosos que pregam o sacrifício financeiro, a capacidade de negociação com o sagrado para realização de projetos pessoais e a conquista de poder político para que as religiões comandem.

O mesmo se dá com a violência da intolerância religiosa, que também ocorre no nível simbólico com as repressões, os silenciamentos, as demissões, as perseguições a teólogos e teólogas e outras pessoas religiosas que encontram caminhos para romper com o padrão de “verdade única e imposta” e defendem o pluralismo e a liberdade. Estas violências ocorrem em diversas congregações e instituições religiosas.

Por sinal, o evento do grupo Fé e Política: Reflexões ocorreu justamente no dia posterior à notícia de que a jovem evangélica Camila Mantovani foi forçada a deixar o país depois de meses de ameaças à sua integridade física, por milícias que atuam no Grande Rio. Camila havia sido recentemente citada em artigo da CartaCapital sobre teólogas e ativistas evangélicas que discutem o machismo.

O exílio forçoso de Camila se soma aos de outras lideranças de diferentes frentes que estão sendo forçadas a deixar o País para preservarem suas vidas e de suas famílias, pelo simples fato de defenderem causas que ainda não são consensuadas. Estes casos são um retrato do momento político do Brasil e de formas de violência incentivadas e sustentadas pelos próprios governos.

Ao final do evento, o grupo, majoritariamente de evangélicos, afirmou sua fé no Cristo da Paz, referência maior para superação de todo tipo de violência, tendo ele mesmo sido morto por grupos político-religiosos de sua época. É no Cristo da Paz e na sua graça infinita, baseada na tolerância e na liberdade, que as ações de enfrentamento da violência devem se dar, com a denúncia de toda instrumentalização da fé em nome de projetos políticos escusos e violentos, como o que presenciamos neste momento em nosso País.
-----------------
Reportagem Por  

Nenhum comentário:

Postar um comentário