sexta-feira, 17 de maio de 2019

Gilles Lipovetsky: "Lição de moral não serve para nada"

 
 O filósofo francês Gilles Lipovetsky: 
"As tradições não têm mais poder de organização"
Investir para refundar a educação é a única possibilidade de enfrentar os desafios do século XXI, na opinião do filósofo francês Gilles Lipovetsky. Com mais de uma dezena de livros publicados no Brasil sobre temas diversos - da moda ao luxo, do individualismo ao vazio, da felicidade à estética -, ele é considerado um teórico da hipermodernidade.

Em seu livro mais recente, "Plair et Toucher: Essai sur la Société de Séduction" (Prazer e Toque: Ensaio Sobre a Sociedade de Sedução), ainda sem tradução para o português, mas que deve sair aqui em setembro, ela elege a sedução como um motor da vida. "Começamos a envelhecer quando perdemos a capacidade de nos deixar seduzir pelas coisas. A sedução é muito mais do que dizem. É uma energia e, sem ela, a vida não é possível", afirma ele.

Lipovetsky tem vindo ao Brasil com frequência. No mês passado, em São Paulo, falou na palestra "O Imperativo de uma Educação Global: Tecnologias e Realização Pessoal", no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc. Para ele, uma educação abrangente, que inclua cultura geral, ecologia, saúde e arte é a única forma de encontrarmos respostas para o que chama "sociedade atual do saber" e para a preservação dos valores democráticos.

De tênis, camisa florida fora da calça e paletó, falou durante duas horas sem interrupção para uma plateia predominantemente universitária, de estudiosos de diversas áreas.

Valor: O senhor diz que vivemos na sociedade da desorientação e que estamos perdidos. Por quê?
Gilles Lipovetsky: Fundamentalmente pela perda de força das tradições, das religiões e das grandes ideologias políticas. As sociedades humanas foram sempre estruturadas pelas religiões e tradições que, de alguma forma, ofereciam respostas. As tradições não têm mais poder de organização. O mesmo acontece com a religião. Há crenças, mas não organizam mais a sociedade. No fim do século XIX, quando a religião começou a perder força, tivemos as grandes ideologias políticas: o comunismo, a revolução, a nação. Elas davam sentido à ação coletiva e ao engajamento pessoal. Agora vivemos a individualização da sociedade. Isso tem efeitos diversos. Produz narcisistas e, ao mesmo tempo, a "desnarcisização". Trump, por exemplo, não tem esse problema. É hipernarcisista. A dinâmica da hiperindividualização pode produzir efeitos contrários. Pessoas megalomaníacas ou completamente perdidas.

Valor: O senhor criticou a educação pós-68 por considerá-la libertária e, ao mesmo tempo, disse não ter nostalgia do autoritarismo. Qual é o caminho?
Lipovetsky: É preciso inventá-lo. Eu odiava a escola até os 15, 16 anos. Tinha medo dos professores, não lia. Isso mudou depois, com professores abertos, não autoritários, que me fizeram amar a leitura, a cultura, a literatura, a filosofia. Minha vida mudou e não foi dentro da família, foi graças a dois ou três professores rigorosos e exigentes. Um professor não deve ser um animador, é preciso estabelecer a diferença.

Valor: É preciso refundar a escola?
Lipovetsky: Em primeiro lugar é preciso refundar a formação dos professores. A internet requer novas exigências do professor. Não é mais como antes, que ele trazia todo o conhecimento. Agora a informação circula. Então, a escola está aí, como diria Rabelais [1494-1553], para formar boas cabeças. Isso é o mais difícil, e não temos receitas. Um dos caminhos é revalorizar a profissão do professor. Há professores com grande criatividade que obtêm ótimos resultados. Sou a favor de prêmios educativos como há para livros. Os professores talentosos merecem seus minutos de fama.

Valor: O senhor sempre teve uma visão aberta com relação ao consumo, às marcas de luxo e prazeres individuais.
Lipovetsky: Não sou hipercrítico nem religioso. Entendo que o luxo agrade e não concordo que se demonize o consumo. É fácil o demonizar quando temos todos os benefícios, mas os que não têm, os aspiram. E estão certos de aspirar uma vida melhor, de poder andar de avião, comprar coisas bonitas, viver melhor. Não dá para todo o mundo ser zen ou monge tibetano. As pessoas são diferentes, não podemos dar um único modelo ideal de existência, o ascetismo.

Valor: O fato de as marcas de luxo serem tão inacessíveis gera o quê? Vítimas da moda? A indústria do "fake"?
Lipovetsky: É impressionante a onipresença que as marcas de luxo alcançaram. Antes, se restringiam a um pequeno grupo. Hoje, até os moradores da favela querem marcas. Eles têm as falsas, e não é um problema. Mas a obsessão por marcas cria problemas, lógico. Só não sei como será possível fazer recuar esse gosto. As pessoas querem, e eu compreendo que, se você não tem outros interesses, outras paixões, o consumo materialista venha preencher esse vazio. Encontre algo mais fácil que o consumo. Por isso é tão difícil superá-lo. Estou deprimido? Saio com meu cartão de crédito. Compreendo quem critica, mas o que eles propõem? Uma lição de moral? Não dá, né? Por outro lado, é evidente a pobreza da obsessão por grifes: você tem uma bolsa Chanel, uma Saint Laurent, outra Gucci...dá para ter dez - e daí? Francamente, não é um grande ideal. É diferente da vida de um diretor de cinema.

Valor: Que tem paixão pelo que faz...
 Lipovetsky: Sim, ele tem mil coisas para pensar: o casting, os preços, o roteiro, o desempenho dos atores - é um mundo magnífico. É evidente que todos não podem ser criadores, mas você pode ter paixão numa empresa. Precisamos dar aos jovens, nas escolas, outros ideais além do consumo. Lições de moral não servem para nada. Minha mãe me batia para que eu lesse. Não adiantava. Depois, passei a vida toda lendo. É preciso que as coisas surjam e cresçam dentro de você. A escola deve abrir as janelas da vida, despertar a paixão. Veja nosso presidente [Emmanuel Macron], foi um aluno brilhante. Adorava teatro e aos 15 ou 16 anos conheceu sua mulher, que dava cursos de teatro.
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Reportagem Por Maria da Paz Trefaut | Para o Valor, de São Paulo

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