Publicamos aqui um pequeno artigo
traduzido do ECONOMIST de 30/4/22 que nos relata sobre as consequências
do Covid-19, chamado de “long covid” , prolongamento do covid-19 ou de
Covid de longa duração. São raras as informações sobre este tema. Com no
Brasil mais de 20 milhões pessoas foram afectadas por este vírus, é de
bom juízo trazer informações acerca do que pode ocorrer após a infecção,
superada pelas várias vacinas. Uma razão a mais para continuarmos com
as prevenções pois o vírus pode conhecer outras mutações que
eventualmente tornam a afetar os já imunizados ou portadores de sequelas
danosas. LBoff
27 de abril de 2022 (Atualizado em 29 de abril de 2022) Eis o texto:
Mais de dois anos desde o início da
pandemia de covid-19, os cientistas aprenderam muito sobre como o vírus
SARS-CoV-2 afeta o corpo. Mas os sintomas e as complicações conhecidas
como “covíd longo” são muito menos compreendidos. Os Centros de Controle
e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos definem o covid longo
como a continuação dos sintomas por pelo menos quatro semanas após a infecção. A Organização Mundial da Saúde diz que geralmente ocorre três meses após o início do vírus e dura pelo menos dois meses. Fadiga, falta de ar e neblina cerebral são características comuns. Há pouco consenso sobre como tratá-lo. O que é o covid prolongado?
A prevalência do covid longo é difícil de
calcular e alguns relatórios iniciais deram estimativas inflacionadas. O
CDC acredita que um em cada dez americanos desenvolverá sintomas de
covid longo mais de um mês após a infecção. O
Escritório Britânico de Estatísticas Nacionais (ONS) estima que 1,7
milhões de pessoas, ou 2,7% da população, estavam experimentando o
auto-relatado covid de longa duração a partir de 5 de março. Dessas, 1,1
milhões encontraram sua capacidade de realizar atividades do dia-a-dia
seriamente reduzida. A maioria experimentou fadiga, um terço teve falta de ar, e quase um quarto relatou dores musculares.
A condição era mais comum em mulheres, entre 35 e 49 anos de idade e em
pessoas que viviam em áreas pobres. As pessoas empregadas na
assistência social, educação ou cuidados de saúde também eram mais
propensas a relatar sintomas.
Mas
há problemas até mesmo com estas estimativas cuidadosas. A fadiga e a
dor muscular poderiam ser causadas por uma série de outras condições. Um
estudo anterior da ONS descobriu que 5% das pessoas infectadas com
covid tinham pelo menos um dos 12 sintomas comuns 12 a 16 semanas após a
infecção; 3,4% de um grupo de controle que não tinha sido infectado
também relatou um desses sintomas.
Confusamente, o covid longo pode na
verdade ser uma coleção de síndromes bem diferentes. Por exemplo,
qualquer encontro com uma doença infecciosa pode ter sérias
consequências a longo prazo. O covid pode causar danos duradouros ou permanentes aos pulmões e ao coração.
Alguns casos de covid longo podem realmente ser “síndrome de cuidados
pós-intensivos”, que pode afetar qualquer pessoa que passe tempo em uma
unidade de terapia intensiva. Os doentes enfrentam sérias fraquezas físicas, danos pulmonares e problemas de memória e atenção.
Eles podem ter distúrbio de estresse pós-traumático. E os pesquisadores
também se perguntam se alguns casos de covid prolongado podem ser uma
forma de síndrome pós-viral, como a fadiga crônica. Por último, alguns
pacientes que parecem ter covid longo podem, de fato, ter uma infecção
contínua que seu sistema imunológico ainda não foi eliminada.
Como muitas pessoas já contraíram o
covid, se mesmo uma porcentagem mínima sofrer de problemas de saúde
contínuos, uma enorme crise de saúde pública poderia ocorrer. Alguns a
chamam de pandemia após a pandemia. As empresas
farmacêuticas estão buscando ensaios de medicamentos que possam ajudar.
Estão em andamento estudos com um medicamento chamado Paxlovid,
que já é usado para tratar o próprio covid, bem como com outros
antivirais. Outro estudo está testando uma hipótese de que o vírus pode
prejudicar a capacidade das células humanas de gerar energia
(o que causaria fadiga e fraqueza muscular). Algumas empresas estão
procurando soluções para dor crônica, função pulmonar danificada e
defeitos cognitivos. Além de ajudar os que sofrem de uma doença de longa
duração, este trabalho pode beneficiar aqueles com outras condições
pós-virais, que há muito são ignoradas.
Fonte: The Economits 30/4//22
* Teólogo, filósofo, escritor, professor e membro da Iniciativa Internacional da Carta da Terra.
Fonte: https://leonardoboff.org/2022/04/30/o-que-sabemos-e-o-que-nao-sabemos-sobre-o-covid-de-longa-duracao/ Imagem da Internet
Meu amigo David Coimbra fez 60 anos ontem. Liguei para ele. A nossa
amizade resiste ao tempo (já são 42 anos), à distância (morei muitos
anos na França, ele passou vários anos nos Estados Unidos), a empresas
diferentes (ele é estrela da RBS, eu fiquei 21 anos na Caldas Júnior) e
até a visões de mundo em algum momento diferentes.
Eu me lembro de quando nos conhecemos, em agosto de 1980. Eu estava
de cabeça raspada (maldade de meus amigos por eu ter passado no
vestibular). Ele riu da minha cara. Ficamos logo amigos. Pegávamos
juntos o T1. David morava no IAPI. Eu espichava até o Sarandi.
Nos trajetos, fazíamos revoluções.
No Maza, bar na Bento Gonçalves, em frente à PUC, vivemos horas de
glória, de grandes discussões e de paixões mal resolvidas regadas a
cerveja e a martelinhos de “pingado”, cachaça com limão, bem mais
acessível aos nossos bolsos de estudantes de jornalismo. Ali discutíamos
as leituras indicadas pelo Irmão Mainar: “A Hora da Estrela”, de
Clarice Lispector; “Magra, mas não muito, as pernas sólidas, morena”, de
Antônio Carlos Resende; “Quarup”, de Antonio Callado; “Um novo animal
na floresta”, de Carlinhos de Oliveira; “Encontro marcado”, de Fernando
Sabino; “Maíra”, de Darcy Ribeiro.
Muita gente boa fazia parte dessa turma de sonhadores com pressa de
viver e de amar: O saudoso Ricardo Carle, Telmo Flor, Sergio Bueno,
Chico Camboim, Zé Trindade; e a bela Rosane Aubin, com seus olhos verdes
e seu corpo esguio, seu andar flutuante, minha vizinha na Vila
Elisabete e companhia no linha 13, musa do David na faculdade.
Nunca esqueço de quando fomos para Tramandaí juntos. Conseguimos nos
perder um do outro durante a noitada. Eu, só de calção, sem camisa, sem
dinheiro e sem documentos, acabei dormindo na areia, onde acordei feito
um camarão. No dia seguinte, fiquei doente. Ele me levou ao hospital e
esperou pacientemente que me atendessem. Foi longo.
Temos, David e eu, uma paixão em comum: a história.
David sempre gostou dos bastidores da grande história. Lia Will
Durant. Eu me apaixonei, na Faculdade de História, por desconstrução.
Ver o outro lado das grandes narrativas. Ao longo da vida, temos
praticado a crônica, o radio, a literatura, entrevistas e humor.
Sim, humor, cada um de um jeito.
Uma coisa nos separa: ele é gremista. Eu sou colorado. Mas tive um
intervalo gremista quando, repórter de Zero Hora, cobria o Grêmio.
David e eu nos vemos muito pouco. Sou bicho do mato. Não visito as
pessoas. Uma vez, quando ele adoeceu, fui vê-lo. De resto, mantemos a
chama da amizade acesa por mensagens e referências no que escrevemos.
Sou fã do David. Ele escreve bem demais. Tem estilo.
Há quem pense que somos opostos em política. Julgo que não. Somos da
mesma escola, a da independência. Ele foi para Santa Catarina trabalhar
em jornal. Entrei na Zero Hora e saí para morar na França. Lá, fui
recontratado como correspondente internacional. Quando retornei ao
Brasil, durei pouco na “firma”, derrubado por uma polêmica juvenil com
Luis Fernando Verissimo. A esquerda pediu a minha cabeça. Levou. David
voltou para fazer história na RBS. Eu tinha saído para sempre. Caminhos
paralelos, desencontros, amizade sempre mantida.
Cada um de nós, em jornalismo, teve quatro demissões. David teve as
dele na juventude. Eu, mais briguento, duas em cada ponta da vida.
Em 2019, recebemos o Prêmio Açorianos, cada um numa categoria.
Deveríamos ter dividido o prêmio maior, de livro do ano. Mas,
jornalistas de destaque no Estado, sempre fomos diminuídos no campo
literário. Ele, grandioso, nunca se queixa dessas ninharias.
Se eu fosse poderoso faria dele Patrono da Feira do Livro de Porto Alegre de 2022. Mas só tenho poder a sudoeste de Palomas.
Talentoso, David tem um dos melhores textos que conheço.
Se escrevesse em veículo do centro do país, seria rei do Brasil.
Entregarei uma: gostávamos de Roberto Carlos, o Roberto de “detalhes”, “outra vez”, “estrada de Santos”, “negro gato”, etc.
Por isso posso dizer, David, meu irmão camarada.
Ou cantar os velhos tempos: “O que foi felicidade me mata agora de saudades/velhos tempos/belos dias”.
Tenho muitos personagens para as despesas de conversação, vulgo papo
furado. Quando encontro pessoas que me constrangem com falas
paternalistas, condescendentes e redutoras, cito alguma das minhas
criaturas e dou o fora. Saio à europeia (ingleses dizem à francesa;
franceses dizem à inglesa) e vou matutar na solidão pacificadora. Noites
é um dos meus porta-vozes. Iluminista em tempos sombrios, tenta manter a
chama acesa enquanto tudo bruxuleia, palavra que, em outros tempos,
valeria uma piada de duplo sentido, mas este já não faz mais sentido,
condenado pela literalidade dos tempos corretos. Aliás, se os tempos
fossem outros Noites diria que o português se tornou universal. Piadinha
autocancelada para não ser classificada como xenófoba.
Noites, como todo influencer, opina sobre tudo. Exemplos: * Sobre treinadores estrangeiros no futebol: “Nada
tenho contra técnicos vindos de fora, se o cara for o Guardiola, ou o
Zidane, ou o Ancelotti. Não gosto é de treinador português, espanhol ou
de qualquer outra nacionalidade que seja ruim ou sem currículo. Minha
xenofobia é seletiva, baseada na meritocracia dos resultados e do
desempenho” * Sobre a passagem do tempo: “O
problema de ficar velho é que se vira criança, dependente da vontade nem
sempre racional de outros, os mais novos, cuja virtude maior consiste
em ainda não precisar do que gostam de indicar aos seus tutelados como
solução milagrosa”. * Sobre fragilidades: “Mostre
suas fragilidades a quem quer seja e será inevitavelmente tratado com
condescendência, que é a capacidade de tornar alguém incapaz com atos
protetores e palavras bondosas”. * Sobre consultorias tecnológicas e outras utopias dos tempos hipermodernos: “Se
o cara sabe como bombar um blog ou um canal de YouTube, por que, em vez
de oferecer seus preciosos serviços a outros por quantias módicas, não
faz o seu e recolhe os ganhos previstos?” * Sobre etarismo: “Mensuração automática das capacidades de alguém em função do número de rugas que exibe ou da cor dos seus cabelos”. * Humor amargo: “Condição determinada pela taxa de glicose”. * Bolsonarismo: “Nome dado a uma ideologia sem ideias”. * Novas condições de trabalho: “Desemprego”. * Neotáticos: “Teóricos do futebol que só falam de prática”. * Autoajuda: “Fórmulas batidas, com embalagens novas, em benefício próprio destinadas a ajudar os outros”. * Futuro: “Tempo que não chega”. * Sobre Vladimir Putin: “Ídolo da extrema direita europeia defendido apaixonadamente por parte da esquerda brasileira”. * Papo sobre Twitter
A tecnologia de
reconhecimento facial ganha espaço no Brasil e no mundo sob a
justificativa da segurança. A ferramenta tem gerado protestos e debates
sobre seu uso para o controle social. A Sputnik Brasil ouviu
especialistas que discutem problemas como soberania de dados, as
implicações no racismo e os limites legais envolvidos no tema.
O metrô de São Paulo pode ser
visto como o centro nervoso da capital paulista, conectando áreas
distantes de uma região metropolitana com 20 milhões de habitantes.
Estima-se que nas linhas metroviárias da maior cidade do Brasil circulem
diariamente quatro milhões de pessoas. Todas elas carregam dados
valiosos, como gostos, opiniões e rostos a serem mapeados.
Não à toa, o Metrô de São Paulo resolveu que precisa de um sistema de reconhecimento facial. Em outubro de 2019, foi publicado o resultado da licitação LPI nº 10014557,
que destinou mais de R$ 58,6 milhões ao Consórcio Engie Ineo Johnson,
formado por empresas de França e Irlanda, para a implementação do
Sistema de Monitoramento Eletrônico (SME) para as linhas Azul, Verde e
Vermelha do metrô paulista — incluindo um sistema de reconhecimento
facial por câmeras.
O Metrô defende que essa é
uma forma de garantir mais segurança e facilitar a identificação de
suspeitos de crimes e pessoas desaparecidas. Não é o que pensam
organizações como Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec),
Artigo 19, Intervozes, Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos e as
defensorias públicas de São Paulo e da União. Em conjunto, esse grupo
pediu à Justiça a suspensão do uso de reconhecimento facial no metrô
paulista.
Em março, a juíza Cynthia Thome, da 6ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, acatou o pedido dessas organizações e emitiu decisão
impedindo o Metrô de usar o sistema de reconhecimento facial. Para a
juíza, a iniciativa é “ilegal e desproporcional”, além de ter potencial
de atingir direitos fundamentais. A decisão foi mantida em segunda instância.
A advogada Eloísa Machado,
professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo, foi uma das
representantes das organizações na ação civil pública movida contra o
Metrô. À Sputnik Brasil, ela critica a implementação massiva da
tecnologia e afirma que o sistema que o metrô pretende implementar viola
direitos constitucionais brasileiros.
“Não houve qualquer
justificativa, por parte do Metrô de São Paulo, para fundamentar o uso
massivo de reconhecimento facial em suas estações. Tampouco houve uma
informação clara sobre a finalidade específica do tratamento de dados
pessoais biométricos de todos os usuários do metrô, sua destinação,
compartilhamento ou armazenamento em banco de dados”, recorda Machado,
citando a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
De inspiração europeia, a LGPD foi
sancionada em 2018 e impõe diretrizes em relação ao tratamento de dados
pessoais no Brasil por meio da atuação da Autoridade Nacional de
Proteção de Dados (ANPD). Segundo essa legislação, as informações
biométricas, que são alvo do reconhecimento facial, são dados pessoais
sensíveis, cujo tratamento depende de circunstâncias incluindo o
consentimento.
A ação contra o Metrô cita
ainda violações ao Código de Defesa do Consumidor, ao Código de Usuários
de Serviços Públicos, ao Estatuto da Criança e do Adolescente e até à
Constituição, detalha Rafaela Alcântara, assessora de Direitos Digitais
da Artigo 19.
“As violações vão desde o
direito à privacidade e à proteção de dados até o direito à igualdade e à
não discriminação”, afirma Alcântara à Sputnik Brasil, acrescentando
que uma indenização de quase R$ 43 milhões foi solicitada na ação devido
às violações de direitos dos usuários do metrô.
Alcântara lembra que o tratamento dado às informações colhidas pelo
Metrô de São Paulo não foi definido, deixando em dúvida o destino e
o uso dos dados. Além da falta de governança e transparência, isso deixa
margem para a exploração dos dados, mercadoria cada vez mais valiosa.
“Os dados são ativos
econômicos valiosos na atualidade. Eles são o principal insumo de
plataformas trilionárias como Google, Facebook, Amazon, entre outras”,
afirma à Sputnik Brasil Sergio Amadeu, pesquisador da área de tecnologia
e dados e professor da Universidade Federal do ABC (UFABC),
acrescentando que, após análise e tratamento, as informações extraídas
podem ser usadas para o desenvolvimento de produtos e serviços.
Tecnologia tem problemas, mas avança no país
A coleta massiva de dados pelo uso do reconhecimento facial é uma questão sensível. Um estudo da
Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) analisou cinco detectores
de faces, em um conjunto de 550 mil quadros de vídeo de 365 indivíduos,
e reconheceu problemas na detecção de rostos de pessoas do gênero
feminino e indivíduos com idades entre 46 e 85 anos. Em quatro dos cinco
detectores observados, houve maior risco de falhas com pessoas de pele
escura. No caso do Brasil, país de maioria negra, esse fator é um grave
componente.
Não é difícil encontrar na
mídia casos de falhas da tecnologia. No Piauí, o pedreiro José Domingos
Leitão foi preso injustamente, em outubro de 2020, pela Polícia Civil do
Distrito Federal após ser identificado de forma errônea pelo
reconhecimento facial, relata o
portal R7. No Rio de Janeiro, uma mulher inocente foi detida, em julho
de 2019, após a mesma tecnologia identificá-la como uma acusada de
homicídio e ocultação de cadáver, reporta o portal G1.
Mesmo assim o reconhecimento
facial avança rápido no Brasil e já é usado em diversos estados para
identificar suspeitos. Segundo mapeamento do
projeto O Panóptico, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania
(Cesec), pelo menos 13 estados brasileiros fazem uso ou testam o
reconhecimento facial para fins de segurança pública. Já um levantamento do jornal Folha de S.Paulo com secretarias estaduais aponta que 20 estados usam ou estão implementando a ferramenta.
Segundo estudo do
Instituto Igarapé, o uso da tecnologia cresce no Brasil ano a ano desde
2011. Um dos casos mais notórios no Brasil é o da Bahia, que desde
2018 prendeu centenas de suspeitos empregando o reconhecimento facial.
Em julho de 2021, o governador baiano, Rui Costa (PT), anunciou
o Projeto Vídeo Polícia, parceria para a ampliação do uso da tecnologia
para 78 municípios e a implementação de milhares de câmeras de
reconhecimento facial no estado. A parceria com as empresas Oi e Avantia
custou R$ 665 milhões, mostra o Diário Oficial da Bahia.
No Rio de Janeiro, o governo
estadual já aplicou o sistema em projeto piloto no qual prendeu 63
pessoas. As empresas envolvidas na implementação da tecnologia no estado
incluem a operadora Oi, a britânica Staff of Technology Solutions e a
chinesa Huawei. Segundo reportagem do portal G1, há planos para a expansão da tecnologia como parte do programa de segurança pública do governo do estado, Cidade Integrada, um dos carros-chefes do governador fluminense, Cláudio Castro (PL).
O uso de reconhecimento
facial no estado é questionado na Assembleia Legislativa do Rio de
Janeiro (Alerj) pela deputada Dani Monteiro (Psol), autora do Projeto de Lei Nº 5240/2021, que pede o banimento da tecnologia e cita que no período de uso da ferramenta no estado não houve queda no número de crimes.
Reconhecimento facial pode agravar racismo no Brasil
Para funcionar, o
reconhecimento facial se vale de bancos de dados já existentes, como os
mantidos pelas polícias ou pelo próprio Banco Nacional de Mandados de Prisão. Esse fator também traz riscos, uma vez que os próprios bancos de imagens policiais no Brasil podem não ser confiáveis.
Há diversos casos de pessoas
negras inocentes presas com base em bancos de imagens racialmente
enviesados. Recentemente, no Ceará, ganhou notoriedade um caso no qual
uma foto do ator negro norte-americano Michael B. Jordan apareceu em uma
lista de procurados por uma chacina que deixou cinco mortos no Natal de
2021. Conforme publicou o UOL, a imagem do astro de Hollywood consta nos registros da Polícia Civil do Ceará para o reconhecimento de suspeitos.
Um relatório da
Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ) mostra que pelo menos 90
prisões injustas por reconhecimento fotográfico foram registradas no
país entre 2012 e 2020, sendo 73 apenas em território fluminense. A
maior parte dos casos envolve pessoas negras.
Em seu site, a própria DPRJ destaca o
caso de Tiago Vianna Gomes, um homem negro de Nilópolis (RJ) denunciado
nove vezes por roubo devido à inclusão de uma foto sua no banco de
imagens de suspeitos de uma delegacia local. Em nenhum dos casos Gomes
foi considerado definitivamente culpado. Absolvido em sete processos, o
homem aguarda a conclusão dos dois restantes.
Existe o temor de que a tecnologia de reconhecimento facial intensifique distorções como essas.
“Apesar da ampla adoção, das
biometrias dominantes em uso — impressão digital, íris, palma da mão,
voz e rosto —, o reconhecimento facial é o menos preciso, mais racista e
o mais problemático em relação à privacidade de dados”, avalia a
cientista da computação Nina da Hora em entrevista à Sputnik Brasil.
A pesquisadora e
hackerativista, que integra a Comissão de Transparência das Eleições do
Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para o pleito de 2022, alerta para o
crescimento do número de governos usando essa tecnologia. Para ela é
necessário “agir agora” para deter esse avanço.
“É preciso entender a
preocupação que, a partir do uso e comparação de fotos, há por trás uma
visão eugenista — de usar fenótipo para tomar decisões. No Brasil essa
percepção já está muito enraizada na sociedade”, aponta a cientista da
computação.
O pesquisador Tarcízio Silva, autor do livro “Racismo
Algorítmico: Inteligência Artificial e Discriminação nas Redes
Digitais” vai na mesma direção e afirma que tecnologias de
vigilância tendem a ter grande aceitação no Brasil devido ao racismo.
“Sistemas algorítmicos e
tecnologias com qualquer tipo de automatização de processos são muito
imprecisas, mas são implementadas a toque de caixa e aceitas socialmente
pois as vítimas da violência estatal são sobretudo pessoas negras”,
afirma Silva à Sputnik Brasil.
O especialista ressalta que
mesmo que a tecnologia fosse mais precisa, o avanço dela no
Brasil fortaleceria problemas sociais ligados ao racismo, como o
encarceramento em massa. Segundo ele, é dessa forma que age o chamado
“racismo algorítmico”, que atravessa técnicas, como a do reconhecimento
facial, ao fortalecer relações sociais racialmente desiguais.
“É essencial entender muito
além de minúcias de linhas de programação, mas como a promoção acrítica
de implementação de tecnologias digitais para ordenação do mundo
favorece a reprodução dos desenhos de poder e opressão que já estão em
vigor”, diz Tarcízio Silva ao explicar o conceito cunhado pelo autor Anupam Chander, da Universidade de Georgetown, nos EUA.
Silva salienta que mesmo em ambientes com índices muito menores de letalidade policial que os do Brasil, o uso do reconhecimento facial promove excessos. O pesquisador cita uma pesquisa realizada
em Londres que mostrou que policiais desrespeitavam protocolos de
abordagem após identificações feitas pela tecnologia.
Em Buenos Aires, onde o
reconhecimento facial é usado desde 2019, há outro exemplo de excessos.
Na capital argentina foram colhidos dados de mais de 7,5 milhões de
pessoas de forma irregular — quase metade dos habitantes da região
metropolitana. O sistema, porém, só estava autorizado a colher dados de
pessoas procuradas, publicou o jornal argentino Pagina 12.
A coleta de dados foi ampla
o suficiente para identificar até o presidente argentino, Alberto
Fernández. O caso de coleta massiva só foi revelado depois de
investigação judicial, concluída com a decisão de suspender o sistema.
Banimento do reconhecimento facial
Diante dos problemas
complexos e de grandes proporções em torno da tecnologia de
reconhecimento facial, cresce um movimento internacional pedindo
o banimento do uso dessas ferramentas na segurança pública e no espaço
público em geral.
É o caso da campanha Ban the Scan, promovida pela Anistia Internacional, e do manifesto Ban Biometric Surveillance, assinado por dezenas de organizações ao redor do mundo, incluindo 30 do Brasil.
“Acreditamos que a moratória,
por ora, e, depois, o consequente banimento são as medidas mais
adequadas diante de sistemas massivos de reconhecimento facial ou de
outros dados biométricos. O vigilantismo promovido por essas
tecnologias, quando usadas indiscriminadamente, é um inimigo de uma
sociedade civil livre, criativa e pujante”, aponta a advogada Eloísa
Machado, professora da FGV.
A assessora de Direitos
Digitais da Artigo 19, Rafaela Alcântara, destaca que a organização
acredita que a tecnologia possa ser usada em exceções, mas que como
regra deve ser proibida. No caso do uso para vigilância massiva em
espaços públicos, a organização defende o banimento.
“Tal posicionamento vem da
análise de que esse uso já se mostra, por princípio, incompatível com a
proteção dos direitos humanos. De diversas maneiras a vigilância
biométrica em massa afeta os direitos humanos”, diz Alcântara.
Para o professor Sergio
Amadeu, a moratória é a melhor medida para impedir os riscos de abusos
com base no uso do reconhecimento facial e garantir mais controle social
sobre a ferramenta.
“No momento, o reconhecimento
facial tem servido à discriminação dos segmentos mais fragilizados da
população, como os jovens negros da periferia. Acredito que precisamos
de uma moratória do uso das tecnologias de reconhecimento facial.
Precisamos discutir sua real aplicação, seus vieses, seus reveses e como
mantê-las sob o controle democrático da sociedade”, defende Amadeu.
Já o autor e pesquisador
Tarcízio Silva reforça que o banimento dessa tecnologia é necessário não
só por questões técnicas, mas principalmente pelo risco imposto a
todos os cidadãos.
“Não se trata apenas de como a
tecnologia erra com mais frequência com grupos minorizados, mas das
próprias concepções de segurança pública envolvidas. Hipervigilância não
só não diminui o crime, como promove a violência estatal e restringe a
liberdade de todos e quaisquer cidadãos através de um clima de suspeição
generalizada”, afirma.
Na mesma linha, a cientista
da computação Nina da Hora debate o que chama de “solucionismo
tecnológico”, que seria a esperança de resolver problemas sociais
complexos, como a segurança, apenas com um passe de mágica da
tecnologia.
“É a gente olhar para os
problemas sociais e estruturais e achar que todos eles serão resolvidos
com tecnologia. É como se estivéssemos negligenciando a nossa capacidade
como seres humanos, seres pensantes que conseguem promover uma solução.
É como se estivéssemos substituindo toda essa percepção humana por
máquinas”, conclui.
Até o fechamento desta reportagem, o Metrô de São Paulo não respondeu as perguntas enviadas.
El regreso de los conflictos motivados por el
nacionalismo más agresivo sugiere una amarga verdad: que las ideas más
optimistas surgidas tras el final de la Guerra Fría fueron tan solo un
espejismo.
El historiador Paul Kennedy sostenía que el siglo XX
había constituido la apoteosis del nacionalismo. A su juicio, las dos
guerras mundiales y la Guerra Fría eran consecuencia de regímenes cuya
base ideológica era la superioridad nacional, que legitimaba su poder
con la ampliación del territorio mediante la guerra. Para él, la Unión
Soviética era, muy por encima de la organización comunista de los medios
de producción, una reencarnación del imperio zarista.
En esta lógica, la Guerra Fría, más allá de la disuasión nuclear mutua,
no llegó a desencadenar una agresión en Europa porque ofrecía a los
soviéticos un equilibrio a sus afanes expansionistas, mientras los
países del Sur se convertían en el teatro de operaciones en el que
competían por la ampliación de su influencia. El colapso final del
régimen soviético, como otros imperios, se explicaría por el
desequilibrio entre sus capacidades y la magnitud de los compromisos
asumidos para mantener su área de influencia.
La
descomposición de la Unión Soviética inauguró tres décadas vividas bajo
la ilusión de que el nacionalismo habría dejado de ser una fuerza capaz
de provocar conflictos. Las guerras provocadas por la desaparición de la
antigua Yugoslavia, aunque fruto de la pulsión nacionalista, se vieron
como un epílogo de la reordenación europea tras la
Guerra Fría. Pasamos a pensar que las confrontaciones violentas de la
nueva era tendrían otras motivaciones –religiosas o étnicas– y que las
guerras pasarían a librarse en el terreno más difuso de la insurgencia y
del terrorismo internacional. Se teorizó sobre el final del régimen westfaliano
y la creación de un nuevo orden internacional basado en la supremacía
del derecho y avalado por el multilateralismo. Los países europeos nos
vimos relativamente libres de grandes enemigos y mantuvimos Fuerzas
Armadas pequeñas y escasamente dotadas, sin preocuparnos por una
integración entre ellas que, con los mismos recursos, ampliara su
capacidad operativa.
La invasión de Ucrania nos ha despertado de estas
largas vacaciones. Con sorpresa y horror, reaparece en Europa una guerra
de las que luchábamos en el siglo XX, con motivaciones muy parecidas,
con la destrucción absoluta de ciudades y las mismas imágenes de
víctimas civiles golpeando a nuestra puerta. ¿Estamos ante la última
guerra de un mundo que aún se resiste a desaparecer, con un protagonista
que no quiere asumir el papel que le ha dejado la historia, o estamos ante el resurgimiento del nacionalismo agresivo del siglo pasado
y la posibilidad de nuevos conflictos globales entre naciones?
Lamentablemente, es difícil no inclinarse por la segunda opción. Dos
hipótesis han sustentado nuestro optimismo en las últimas décadas, y lo
cierto es que las dos se han revelado incorrectas.
No podemos descartar la posibilidad de una confrontación global provocada por el nacionalismo expansionista
La
primera es idealista o utopista, y se basa en pensar que el desarrollo y
la integración económica de los países genera una interdependencia a la
que sigue una comunidad de intereses que produce obligaciones
políticas. Pese a la insistencia en esa tesis desde las llamadas teorías
de modernización, lo cierto es que históricamente el desarrollo
político no ha venido determinado por el desarrollo económico, ni
viceversa. Es posible pensar lo contrario, que las rentas que Rusia
obtiene de sus recursos naturales han sido el acicate de su
expansionismo y autoritarismo y han contribuido precisamente a su percepción de la dependencia occidental.
Hemos exagerado el potencial de transformación política de la economía
de mercado. Comer hamburguesas de McDonalds y amueblar nuestra casa en
IKEA no nos acerca ni a la democracia ni a la paz mundial. Y al revés:
toda democracia genuina está obligada a complacer a la mayoría, a
sacrificar el futuro por el presente y a cambios incrementales.
La
segunda hipótesis, más realista, está anclada en la expectativa de un
comportamiento racional de los líderes políticos. Los que auguraban que
estábamos ante un farol de Putin nos hablaban de un líder astuto que
calculaba sus apuestas con esmero; es decir, un hábil gestor de riesgos.
La autocracia tiende a generar déspotas que, faltos de contrapesos, se
apartan de la realidad y, consumiéndose por la arrogancia, llevan a sus
países a la debacle. En China se conoce como el «síndrome del mal emperador»,
lo que hizo que el Partido Comunista, desde la desaparición de Deng
Xiaoping, implantara un protocolo de rotación de sus líderes para
evitarlo, algo que está a punto de quedar sin efecto con la designación
de Xi Jinping como líder vitalicio.
Los riesgos del
mundo se han multiplicado. La combinación de factores, como la
decadencia de la clase media en los países desarrollados, el
estancamiento de algunas economías en desarrollo o el afán de países
como China de ver reconocido su poder, ha generado un mundo mucho más
inseguro y propenso a conflictos armados. Vemos surgir líderes
nacionalistas con tendencias autocráticas que canalizan la riqueza de sus países a grupos oligárquicos
mientras se legitiman con políticas identitarias y desprecian las
reglas de derecho internacional. A esto se unen los espacios sin
gobierno en algunas zonas donde se refugia el terrorismo y el crimen
organizado, que escapan al control de la comunidad internacional con la
complicidad de Estados que sacan partido. El mundo ha ido deslizándose
hacia una situación en la que los viejos instrumentos de gobernanza
global que creamos al final de la II Guerra Mundial no pueden dar
respuesta; un contexto que, en definitiva, amenaza con una escalada de
la inestabilidad.
La invasión de Ucrania nos ha de
hacer pensar. No podemos descartar la posibilidad de una confrontación
global provocada por el nacionalismo expansionista de potencias que
pongan la fuerza por delante del derecho internacional. Solo actuando en
consecuencia tendremos posibilidades de conjurar estos riesgos y
sostener una paz basada en reglas justas de convivencia.
Las implicaciones son, sin embargo, muy importantes, y cuentan con
muchas derivadas. No solo tendremos que fortalecer nuestras políticas de
defensa, sino también las comerciales, energéticas o industriales.
Deberemos fortalecer también nuestra mirada, especialmente en las partes
del mundo en las que se está jugando un nuevo reparto de influencia,
como ocurre en África. Debemos hacerlo, además, con los países que
formamos la Unión Europea.
Por que um homem de atividades tão pias precisaria andar armado?
Mais de um antigo faroeste de Hollywood já
mostrou a sequência em que alguém parado numa esquina é baleado no peito
por um bandido, mas se salva porque leva no bolso interno do paletó uma
Bíblia, que lhe apara a bala. Woody Allen, um dia, propôs outra ideia: o
sujeito está parado na esquina e alguém lhe atira no peito uma Bíblia.
Mas ele se salva porque traz no bolso uma bala, que lhe apara a Bíblia.
Milton Ribeiro,
pastor, teólogo, professor, ex-reitor universitário e ex-ministro da
Educação de Jair Bolsonaro, tentou descarregar sua pistola Glock calibre
9 mm, que trazia dentro de uma pasta de couro, ao fazer o check-in no
balcão do aeroporto de Brasília para embarcar para São Paulo. Como a
pasta estava muito cheia —certamente lotada de Bíblias—, Ribeiro tinha
pouco espaço para manobra e a arma disparou,
atravessando o coldre e a pasta e atingindo o chão, com os estilhaços
ferindo de leve duas pessoas que não tinham Bíblias para protegê-las.
Por que um homem de atividades tão pias precisaria andar
armado? Será por ter afirmado que a homossexualidade é fruto de lares
desajustados, pregado a não inclusão de deficientes com não deficientes
em sala de aula e defendido em público o espancamento de crianças como
forma de educá-las? Ou por ter se revelado um benigno protetor de
lobistas desamparados, intermediando a extorsão de prefeitos por seus
colegas pastores Arilton e Gilmar, para atender a um pedido de
Bolsonaro? Afinal, hoje nada disso é crime. E, se for, será agraciado
com o indulto presidencial.
Ribeiro é registrado como colecionador, atirador e caçador,
o que o autoriza a andar por aí armado. Deve ter em casa um estoque de
munição ao lado de sua coleção de Bíblias, muitas das quais trazem sua
foto na página 3, disputando com Moisés a autoria do Pentateuco.
E mais respeito com ele, que integra também a Comissão de Ética Pública da Presidência da República.
*Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ruycastro/2022/04/os-brutos-tambem-amam.shtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newscolunista - Imagem da Internet
Inédita
em nosso país, parte da obra de Robert Aickman foi lançada recentemente
no Brasil com o título “Repique Macabro e Outras Histórias Estranhas”.
São contos, principal gênero cultivado pelo autor inglês descoberto pela
editora Ex Machina, de Bruno Costa, em parceria com o sebo Clepsidra.
Antes dele haviam lançado a melhor edição nacional de H. P. Lovecrat e
depois outro mestre do “horror cósmico”, Algernon Blackwood. “Repique
Macabro” cobre uma lacuna no Brasil, sendo curioso que o nome de Robert
Fordyce Aickman não consta sequer na tradição literária do Ocidente.
Entre nós o nome do escritor não aparece nem mesmo na “História da
Literatura Ocidental”, provavelmente o mais vasto compêndio da
literatura hemisférica em qualquer idioma. Nesta obra de Otto Maria
Carpeaux são listados vários contemporâneos britânicos de Aickman, entre
os quais o excêntrico Aldous Huxley. Seja como for, é fato que existe
uma tradição ocidental, cuja definição, melindrosa, exigiria um estudo
mais acurado do que este artigo permite satisfazer. Mas é mais ou menos
seguro que tal definição polemiza com uma ampla área da literatura: o
“gênero” policial, a ficção científica, o romance católico e,
justamente, a ficção de teor sobrenatural, à qual Aickman pertence. Uma
hipótese razoável é que tais vertentes seriam (lembrando Carpeaux) menos
fenômenos estéticos do que fenômenos sociológicos. O que elas afinal
teriam em comum, para constituírem um grupo identificável e à parte,
digamos assim?
Possíveis
defeitos por si sós constituiriam um péssimo argumento, pois toda a
literatura possui muitos defeitos, incluindo a que se inscreve como
tradição. Com base na “História da Literatura Ocidental” a questão é que
mesmo os nomes mais representativos do amplo espectro considerado
revelariam: 1) fragilidade moral e psicológica dos personagens (tipos);
2) indiferença com a forma — altamente valorizada sobretudo pelo
modernismo —; e 3) um esquematismo pasteurizante, tudo decorrente,
enfim, de 4) um apelo fácil, de caráter mercadológico. Seriam traços
característicos de grandes nomes deste meio e não daquele outro, e para
os quais a crítica afinada com a tradição realmente torce o nariz.
Podemos citar Edgar Allan Poe e Agatha Christie como exemplos
problemáticos. Se é verdade que Poe, em particular, fora reconhecido por
sumidades indiscutíveis como Baudelaire, também é verdade que nem por
isso Harold Bloom e Carpeaux deixam de considerá-lo um autor de segunda
categoria. Este juízo, é claro, não se aplica a todos os nomes daqueles
quatro gêneros ficcionais.
Carpeaux lembra que Georges Simenon
fora elogiado por André Gide tanto quanto o desconhecido Wilkie Collins —
o primeiro a escrever sobre terror — o fora por ninguém menos que T. S.
Eliot. O próprio polígrafo brasileiro tende a reconhecer o autêntico
valor artístico de outros nomes deste meio, como Sheridan Le Fanu e H.
P. Lovecrat. Com efeito, existem graus neste meio como em qualquer
outro, permitindo que alguns nomes se sobressaiam aos olhos de cultores
da tradição. Certamente há um limite, senão J. R. R. Tolkien logo
poderia ser saudado como grande escritor! Estaríamos sendo
preconceituosos com ele? Seria coerente colocar Tolkien na estante ao
lado de James Joyce, por exemplo, como é possível colocar Marcel Proust
ou Virginia Woolf? Por que Tolkien e não Noah Gordon, então? Há muita
suscetibilidade em jogo. O autor da fantasia “O Senhor do Anéis” é um
caso extremo, embora o ecoe talvez um Nobel recente: o Kazuo Ishiguro de
“O Gigante Enterrado”. O meio termo entre isto e aquilo seriam aqueles
escritores — a título de contraste com a tradição — excêntricos:
Somerset Maugham, Graham Greene, H. G. Wells, George Orwell, Conan
Doyle, Dashiell Hammett, Mary Shelley, Bram Stoker e similares. Robert
Aickman seria um excêntrico?
Mas excêntrico por quê? Porque como
Bram Stoker escreve sobre assuntos, digamos, sobrenaturais? Eis um
argumento contraproducente! Pois a literatura sobrenatural é um
fortíssimo ramo da tradição, que deriva do gótico, do romantismo, do
simbolismo: escolas propriamente formadas ou das quais derivam todos os
“excêntricos” do terror e do horror (parece existir uma diferença entre
os dois conceitos) que até aqui nos serviram de exemplo. Assim é que
E.T.A. Hoffmann — um gigante da tradição — bebeu nas mesmíssimas águas
de Poe — supostamente o medíocre excêntrico de Harold Bloom. É fato,
portanto, que as águas da tradição se misturam com o que estamos
chamando de excêntricos por razões meramente didáticas. Embora Robert
Aickman seja um esquecido no século 20, Jorge Luis Borges e Franz Kafka —
nomes não apenas indiscutíveis da tradição, mas além disso canônicos —
pertencem à mesmíssima matriz espiritual que ele. Borges e Kafka, é
óbvio, não possuem aquelas possíveis limitações teoricamente mais comuns
entre o que estamos chamando aqui de excêntricos — e acaso essas
limitações seriam detectáveis em Robert Aickman? Ou ele apenas é um dos
melhores na vertente do horror, como Wilkie Collins o fora no mesmo
gênero, e Simenon o fora no policial, como já foi mencionado? Parece ser
este o caso. Seguramente não é um autor esquemático, e algum
comentarista autorizado poderia provar a consistência de seus
personagens: Aickman seria capaz de criá-los “redondos”, nos termos de
E. M. Forster. E se é verdade que o horror atrai leitores com muito mais
facilidade que a sintaxe woolfiana, é bastante improvável que Aickman
se torne algum dia popular (ao que consta, nem ele queria isso). Porque
não é um autor fácil ou sequer compreensível, apesar da linguagem
tradicional. Sirva-nos de exemplo um conto chamado “Ravissante”, de
“Repique Macabro”.
Refere-se
a um pintor simbolista que marca encontro com uma certa Madame A.,
ocasião em que coisas estranhas, então, acontecem. São duas partes e
cinco personagens. Na primeira temos o narrador, o pintor e também sua
esposa, e há três circunstâncias: a festa onde o narrador conhece o
casal; os jantares e a notícia por cartas de que o narrador se torna
testamenteiro do pintor (já falecido), e o encontro com a viúva deste
para discutirem o assunto. A viúva lhe oferece os papéis do pintor, que
passa a ser a voz narrativa da segunda parte, onde entram em cena Madame
A. e sua filha adotiva Chrysotème, esta sem existência física. Também
nesta parte há três circunstâncias: uma reflexão do pintor sobre as
mulheres, outra sobre a pintura, revelando-nos na terceira, e por
último, como foi seu encontro com Madame A., em Bruxelas. O “fato”
central da trama parece ser este encontro do artista com a velha
decrépita com aspecto de gnomo. Desenvolve-se entre os dois uma espécie
de performance, com fortes conotações eróticas (uma marca de Aickman).
Em seguida o pintor escapa para a rua, e isso é tudo o que… “acontece”.
Mas
importa o que acontece ou o que acontece é menos relevante que as
alucinações, para Aickman? Afinal, ele conclui assim o conto: “Dentro de
vinte e quatro horas, percebi com bastante clareza que não podia ter
havido nenhum cão, nenhum animal agachado sobre a luminária, quadro
nenhum sobre a cama e, provavelmente, nenhuma filha adotiva. O problema
era, e continua sendo, que essa verdade óbvia só piora as coisas. De
fato, é precisamente onde o verdadeiro problema começa. O que será se
mim? O que acontecerá comigo? Que fazer? Quem sou?” Parece, assim, um
transtornado mental. Uma das coisas que Aickman pode nos levar a
perguntar é: o que é realmente estranho à vida? Quantas coisas
consideradas estranhas não acontecem o tempo todo? Sugere que o estranho
é tão comum que é a única coisa que de fato acontece. Talvez, por isso,
mais que comum o bizarro se confunde com o normal — e o normal fica
trespassado dessa ambiguidade insólita. No caso de “Ravissante”, Madame
A. significa algo além de uma velhota esquisita? A relação entre ela e o
pintor, tão mais jovem, teria conotações psicanalíticas (já que seria
um caso psicológico)? Que significado oculto há por trás dos vestidos e
lingeries, da filha Chrysotème, que a velha quase obriga o pintor a
cheirar, durante o encontro? E o cão espectral que ele vê — por que um
cão? Para a frustração do leitor, não vamos aqui além de ricochetear
sobre essas questões.
A mágica está na “maneira” peculiar com que
Robert Aickman expõe este caráter ambíguo da realidade, ao que “parece”
revestindo-a de profundas implicações simbólicas.
Harold Bloom
considerou algumas características do gênio em seu livro homônimo. Duas
delas poderiam perfeitamente ser aplicadas a Robert Aickman: a
Originalidade e o Estranhamento. No primeiro caso porque Aickman, apesar
das fontes seguras, não é um “imitador” ou “diluidor” (recorro neste
ponto às famosas categorias de Ezra Pound). Tanto é assim que Aickman
prefere chamar o que escreveu de “strange tales”. E são mesmo contos
estranhos. Ele é tão bizarro no que faz quanto Kafka ou Borges, mas ao
mesmo tempo muito diferente de ambos e de qualquer outro autor do
espectro sobrenatural. É personalíssimo às raias da solidão. Quanto ao
Estranhamento, não há quem tenha lido literatura fantástica ou congênere
e, ao se deparar com Aickman, consiga achar que o ambiente em que o
autor inglês nos insere é familiar, por causa disso. Não: ele não se
torna familiar apenas porque seus pares foram lidos, eventualmente; é
novo à sua maneira de lidar com as influências românticas ou simbolistas
que enformam toda a vertente do sobrenatural. Aickman sem dúvida é uma
novidade, alguém que encontrou um jeito de dizer as coisas de forma
singular, sua e de mais ninguém. E não seria esta a melhor definição de
um escritor ao pé da letra?
Não obstante não seja um estilista —
não se reconhece nele uma peculiaridade frásica ou verbal como é tão
próprio de Borges ou, digamos, J. M. Coetzee —, a prosa de Robert
Aickman tem algo de incomum, capaz de resistir ao exegeta mais paciente e
perspicaz.
Foi-me solicitado escrever alguns pensamentos sobre a vida e o tempo, destinados aos jovens de hoje.Eis o que escrevi:
“Meus caros jovens,
Considerem a vida, o valor supremo, acima
do qual só há o Gerador de toda vida,aquele Ser que faz ser todos os
seres.Os cientistas,especialmente o maior deles que se ocupou do tema da
vida, o russo-belga I.Prigogine afirmou: podemos conhecer as condições
físico-químico-geológicas que permitiram o irromper a vida há 3,8
bilhões de anos. O que ela seja, no entanto, permanece um mistério.
Mas podemos seguramente dizer que o
sentido da vida é viver, simplesmente viver, mesmo na mais humílima
condição. Viver é realizar, a cada momento, a celebração desse evento
misterioso do universo que pulsa em nós e quiçá em muitas outras partes
do universo.
A vida é sempre uma vida com e uma vida para. Vida com outras
vidas, com vidas humanas, com vidas da natureza e com vidas que por
acaso existirem no universo e que um dia puderem se comunicar conosco. E
vida para dar-se e unir-se a outras vidas para que a vida continue vida e sempre se perpetue.
Mas a vida é tomada por uma pulsão
interior que não pode ser freada. A vida quer irradiar, se expandir e se
encontrar com outras vidas. A vida é só vida quando é vida com e vida para.
Sem o com e sem o para a vida não existiria como vida assim como a conhecemos, envolta em redes de relações includentes e para todos os lados.
A pulsão irrefreável da vida faz com que
ela não queira só isso e aquilo. Quer tudo. Quer até a Totalidade, quer o
Infinito. No fundo, a vida quer ser eterna.
Ela carrega dentro de si um projeto infinito. Este projeto infinito a torna feliz e infeliz. Feliz porque encontra, ama e celebra outras vidas e tudo o que está ao seu redor, mas é infeliz porque
tudo o que encontra, ama e celebra é finito, lentamente se desgasta,
cai sob o poder da entropia e acaba desaparecendo. Apesar dessa finitude
em nada enfraquece a pulsão pelo Infinito e pelo Eterno.
Ao encontrar esse Infinito repousa,
experimenta uma plenitude que ninguém lhe pode dar, mas que só ela pode
desfrutar e celebrar. O infinito em nós é o eco de um Infinito maior
que sempre nos chama e nos convoca.
A vida é inteira, mas incompleta. É
inteira porque dentro dela está tudo: o real e o potencial. Mas é
incompleta porque o potencial ainda não se fez real. E como o potencial é
ilimitado, o nosso tipo limitado de vida não comporta o ilimitado. Por
isso nunca se faz completa para sempre. Permanece como abertura e
espera para uma completude que quer e deve, um dia, acontecer.É um vazio
que reclama ser plenificado. Caso contrário a vida não teria
sentido.Como disse alguém:”a vida é oceânica demais para caber num
doutrina petrificada no tempo”. Não seria a morte o momento de encontro
do finito com o Infinito?
Eis que com a vida, surge o tempo. Que é o tempo? O tempo é a espera daquilo que pode vir a acontecer. Essa espera é a nossa abertura, capaz de acolher o que pode vir, fazer-nos mais inteiros e menos incompletos.
Viva intensamente cada momento do tempo! O
passado já não existe porque passou, o futuro não existe porque ainda
não veio. Só existe o presente. Viva-o com absoluta intensidade,
valorize cada momento, ele traz o futuro para o presente e enriquece o
passado.
Cada momento é a irrupção do eterno. Só
pode ser vivido. Não pode ser apreendido, aprisionado e apropriado. Só
ele é. Um dia foi (o passado) e um dia será (o futuro). Do tempo nós só
conhecemos o passado. O futuro nos é inacessível porque ainda não é.
Nós, no entanto, vivemos o “é” do presente que nunca nos é concedido
prendê-lo.Ele simplesmente passa por nós e se vai. Ele possui a natureza
da eternidade que é um permanente “´é” O tempo assim significa a presença fugaz da eternidade. Nós estamos imersos na eternidade.
Viva esse “é” como se fosse o primeiro e o último. Assim você mesmo se eterniza. E eternizando-se participa Daquele que sempre é sem passado nem futuro. Um é eterno.
Podemos falar do tempo, mas ele é impensável. Esse é eterno
está vinculado ao que as tradições espirituais e religiosas da
humanidade designaram como Mistério, Tao, Shiva, Alá, Olorum, Javé,
Deus, nomes que não cabem em nenhum dicionário e estão para além de
nosso entendimento. Diante dele afogam-se as palavras. Só o nobre
silêncio é digno.
Mesmo assim cada um deve dar-lhe o nome
que é o nome de sua participação nEle e de sua total abertura a Ele.
Esse nome fica inscrito em todo o seu ser temporal, mas principalmente
pulsa em seu coração. Então o seu coração e o coração dAquele que
eternamente é, formam um só e imenso coração”.
Dedico este texto ao prof.Wilian Martinhão que organizou um livro “O tempo, o que é? Uma história dos tempos” para o qual eu fiz a Apresentação que me permito publicá-la antes de a obra vir à lume.
Obra "A Cruz Haitiana", que relata décadas de abusos sexuais cometidos por religiosos católicos, terá edição em francês
Iara
Lemos, jornalista gaúcha radicada em Brasília, revelou aos brasileiros
como religiosos católicos abusaram durante décadas de adolescentes no
Haiti. O relato dos casos de pedofilia, com nome e sobrenome dos
envolvidos, ganhou forma no livro "A Cruz Haitiana", lançado em plena pandemia, em 2020.
Iara
é um dínamo, que conheço bem porque trabalhou em Zero Hora. Haiti é um
assunto caro a ela, que esteve naquele país algumas vezes e inclusive
recebeu um prêmio Esso regional (das mais prestigiadas honrarias
jornalísticas do Brasil, enquanto existiu) ao mostrar, junto com o
fotógrafo Fernando Ramos, o trabalho de freiras naquela empobrecida
nação caribenha. Pois foi justo no contato com as religiosas que Iarinha
soube de crimes sexuais cometidos por padres. Como ela salienta, em
meio a um paraíso tropical (sim, o Haiti também tem esse lado), aqueles
que contavam com a confiança da população usaram do prestígio trazido
pela batina para negociar com crianças famintas favores sexuais. A fome é
uma constante naquele país.
A
jornalista assegura que o território haitiano é encarado internamente,
na Igreja Católica, como um ponto para despejar seus religiosos
pedófilos, vindos de todo o mundo. Não fala por falar. Iara dedicou mais
de 10 anos à busca de documentos e depoimentos das vítimas, a fim de
provar as violências cometidas por religiosos. Contou, para isso, com
ajuda do advogado norte-americano Mitchell Garabedian, investigador de
pedofilia que virou celebridade internacional após ter sua trajetória
retratada no filme Spotlight, premiado com o Oscar.
No
livro, a escritora gaúcha reproduz documentos do Vaticano e das cortes
judiciais norte-americana e canadense, que julgaram padres pelos delitos
sexuais cometidos em território haitiano. "A Cruz Haitiana" foi lançado
em fevereiro na Europa, em Portugal, na famosa Livraria da Travessa, em
Lisboa, seguido de um ciclo de palestras. Agora Iara pretende voos mais
altos. Já está pronta a tradução da obra para o francês, idioma falado
oficialmente no Haiti. A partir de novembro deve ser lançada na Bélgica,
França e Suíça.
A nova
edição deve contar com a carta mais recente do Papa Francisco em defesa
do combate à pedofilia na Igreja Católica. Iara quer mais: entregar ao
próprio Sumo Pontífice uma cópia do livro, durante evento para jovens
católicos que ocorrerá em Lisboa em maio do ano que vem. Voa, Iara.
Emmanuel Macron deu um baile. Foi reeleito presidente da França
com ampla margem de vantagem (58% dos votos) sobre a candidata da
extrema direita, Marine Le Pen, versão francesa de Jair Bolsonaro. É uma
lição para o Brasil. Na França, diante do extremo, todos votam no menos
pior. Não se brinca com o perigo nem se elege antidemocrata.
Num segundo turno francês entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad
certamente teria dado Haddad, pois a direita democrática teria votado no
candidato da esquerda para não eleger um traste reacionário.
No Brasil, não. Direita dita republicana e centro (que vai da direita
a extrema direita, mas faz de conta que é moderado para ganhar votos e
se ver melhor no espelho deformado) caíram no colo do capitão. Farão
isso novamente em caso de segundo turno entre Lula e Bolsonaro em 2022. A
verdade é simples: parte do Brasil ama o pior.
Michel Temer, um dos mais nefastos presidentes que o Brasil já teve,
aquele que chegou ao Planalto pelo golpe do impeachment, já sinalizou
que votará no destrambelhado Bolsonaro se preciso for.
O brasileiro médio é antes de tudo um reacionário.
Foi assim que parte da classe média apoiou o golpe de 1964, chafurdou
na ditadura e tem saudades dos coturnos e das mentiras dos fardados,
como a de que não havia corrupção durante o regime militar.
A França deu o exemplo. Extrema direita, não. No Brasil, mercado, mídia e parte da classe média tendem ao conservadorismo.
O mercado é oportunista, sorrateiro. Só quer ganhar dinheiro. Vai de
Pinochet a Bolsonaro sem arrependimentos. Quando fala em liberdade,
pensa em liberdade de faturar, oprimir, tirar do caminho quem o
atrapalhe. Ética política é uma expressão que desconhece.
A mídia, de modo geral, é uma fatia do mercado. Apoio o golpe de
1964, foi lavajatista até a alma, deu aval à derrubada de Dilma
Rousseff, adota o mesmo discurso anticomunista do bolsonarismo.
Parte da classe média confunde ética com falso moralismo. Mais do que o legítimo combate à corrupção, aposta é no anticomunismo.
Acha que socialdemocracia é marxismo-leninismo.
Se a mídia e o mercado brasileiro são neoliberais de carteirinha, há
um eleitorado sempre prontinho a comprar a esparrela do perigo vermelho,
da ameaça comunista e outras tralhas do gênero.
O presidente francês Emmanuel Macron não é o paladino dos pobres. Ao
contrário, é conhecido como “presidente dos ricos”. Quer aumentar a
idade da aposentadoria para 65 anos. Na França, onde se vive mais do que
no Brasil, ainda não se concretizou o que aqui já é realidade graças a
devastadora reforma da Previdência de 2019.
Ao menos, Macron não é racista nem xenófobo e homofóbico. No Brasil,
até Eduardo Leite, agora ex-governador do Rio Grande do Sul, que teve a
louvável coragem de se assumir publicamente como gay ao longo do
mandato, apoiou, com ineficazes ressalvas, Jair Bolsonaro, campeão da
homofobia e de todos os preconceitos possíveis.
Se a França elegesse Marine Le Pen envergonharia o mundo e trairia a
sua tradição de pátria do iluminismo. Não o fez. Que sirva de orientação
para o Brasil na eleição de outubro deste ano. Combater Bolsonaro não é
fazer militância partidária. Trata-se de um compromisso com a
democracia. Luta pela preservação da regra do jogo.
Máscara de Camille Claudel, de Auguste Rodin, um dos artistas
que se aproximaram da 'alma feminina'
Foto: Musée Rodin
Diariamente, homens e mulheres negociam seu medo de adultério e de abandono
24 de abril de 2022 | 03h00
Chico Buarque foi criticado por feministas. Motivo? A letra do clássico Com Açúcar e Com Afeto. A música é de 1967 e foi dirigida à voz de Nara Leão. A polêmica foi forte.
Obras
de arte estão inseridas no tempo. Possuem uma dívida com aquele
momento. Artistas são seres reais que compartilham as dores e as
delícias de cada geração. Se quiser ser muito chique, use a expressão
Zeitgeist, o termo alemão para o espírito do tempo. Quer impressionar em
grau platinum? Use o latim: Genius Seculi. Cada época e momento possuem
seus próprios espíritos. Chico era uma pessoa aos 23 anos. A
proximidade dos 80 pode tê-lo transformado.
Volto à música. É
uma narrativa com início, meio e fim. Os jovens não sabem, mas, naquela
época, as músicas continham narrativas. Algumas enormes, como Geni e o Zepelim.
O filho de Sérgio Buarque de Holanda imagina uma mulher na faina de
manter o marido em casa. Faz um doce que sabe ser do gosto dele. Inútil:
alegando trabalho e o sustento da companheira, ele parte para a rua.
Após uma noite de vida boêmia e de flertes, ele volta implorando o
perdão da resignada esposa. Vence o medo da solidão, o impulso
materno-feminino, a vontade de cuidar e de possuir, proteger e
restringir e ela sempre aceita: “E ao lhe ver assim cansado/
Maltrapilho
e maltratado/ Como vou me aborrecer?/ Qual o quê/ Logo vou esquentar
seu prato/ Dou um beijo em seu retrato/ E abro os meus braços pra
você”.
Chico sempre foi o cantor da alma feminina. Que outra
alma encarnada em um com testosterona poderia conceber uma das letras
mais sensíveis da Língua Portuguesa: “Oh pedaço de mim”? (Oh, metade
arrancada de mim/ Leva o vulto teu/ Que a saudade é o revés de um parto/
A saudade é arrumar o quarto/ Do filho que já morreu.) Lirismo
devastador e pungente.
Muitos homens se aproximaram da “alma
feminina”. Quase sempre, foram gênios que projetaram muito do masculino
(medo, em particular) sobre elas. Assim nasceram Capitu e Madame Bovary.
Assim Rodin esculpiu e Picasso pintou as mulheres que maltratava na
vida real. Assim foram feitas leis civis e eclesiásticas sobre corpos de
fêmeas. Dessa forma eclodiram termos como “mulher honesta” e “abandono
de lar”. Sim, a lei já não fala de dote ou da mulher honesta como
categoria jurídica, apenas falou e formou mentes por muitas e muitas
décadas.
Há algo que só as mulheres percebem de si? Compare-se Cordulina (personagem do romance O Quinze, de Rachel de Queiroz) com Sinhá Vitória (Vidas Secas,
Graciliano Ramos). Dois textos separados por poucos anos (1930-1938),
dois autores do Nordeste e o mesmo sertão castigado pela aridez como
pano de fundo. A temática social, no caso, parece tornar o gênero tema
secundário.
As esculturas da atormentada e talentosa Camille
Claudel mostram, várias vezes, mulheres no desespero do abandono. Seu
amante, Rodin, dá dimensão material ao beijo envolvente. O sonho
masculino seria a entrega da companheira e o medo feminino seria o
abandono?
O que Chico representou foi um medo e uma estratégia.
Educada em sociedade patriarcal, a anônima esposa da música ama seu
homem, tem medo de perdê-lo, sabe da sua inconstância e, mesmo assim, o
perdoa. De alguma forma, ela responde a um vazio estimulado pelos
modelos conservadores: melhor um marido inconstante do que estar
sozinha. Hoje pergunto a apenas você, querida leitora: há alguma amiga
sua com a mesma conclusão? Prefiro infidelidade à solidão? Conheço
algumas. Também sei de amigos que relevam coisas por preguiça, medo ou
amor. Seria mais forte o homem que, por gostar da sobremesa, sempre
volta à esposa? Sempre dizem que o homem tem duas cabeças. E sangue para
preencher apenas uma de cada vez. Acrescentaria: três, na verdade,
porque o estômago é um órgão pensante no corpo masculino.
Nosso
Zeitgeist exige isonomia de gêneros. É um grande avanço. Está nos
discursos públicos, ainda não chegou aos lares. Diariamente, homens e
mulheres negociam seu medo de adultério e de abandono. Uns fazem doces,
outros trazem flores, alguns e algumas evitam comer os doces com medo de
que seu corpo deixe de ser atraente. Somos crianças medrosas, carentes,
solitárias. Os homens chamam o seu medo enorme de... masculinidade. As
mulheres o denominam feminilidade. Outros dialogam com as duas vertentes
e criam novas formas. Todos, todas e “todes” estamos aqui, gemendo e
chorando neste vale de lágrimas. Ficou irritado ou irritada com “todes”.
Gosto médio também. Apenas reconheço que nosso medo pode ter gramática,
gênero, açúcar, afeto e cancelamentos póstumos. Encaro meu medo com
ênfase. Ele sorri e volta, recalcado. Conhecer-me é minha única
esperança na maturidade. Pelo menos, no fim, para não jogar sobre Chico
minha própria desesperança e solidão.
*Leandro Karnal é historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras e autor de A Coragem da Esperança, entre outros