Estes são fatos ocorridos no Brasil em 2022.
Para compreendê-los precisamos resgatar processos, projetos e
contextos da história nacional e internacional. Para discutir, para
buscar soluções viáveis, enfrentando os impasses da vida política,
precisamos de enredos, de histórias onde os acontecimentos se inserem.
Sem enredo, não há debate político qualificado. A construção de um
enredo depende de palavras específicas responsáveis pela construção de
um nexo inteligível entre os fatos, com possibilidade constante de
revisão e questionamento.
As palavras.
As palavras fornecem indício da nossa idade. São filhas do tempo. Meu avô falava mormente, minha avó, Dona Zizi, falava pó-de-arroz. A lembrança mais doce da minha infância era o Ô de casa.
Existiu um tempo no Brasil em que as portas das casas ficavam abertas.
Era só colocar a mão na maçaneta e entrar. Mandava o protocolo avisar a
entrada, com o Ô de casa. O visitante amigo podia entrar,
caminhar até a cozinha e, com naturalidade, levantar a tampa das
panelas. Tranquilamente expressava, com os músculos da face, maior ou
menor interesse pela comida. Podia ficar para o almoço, ou,
simplesmente, ir embora.
Naqueles tempos existia pobreza, sim, mas amigo se fazia por
afinidade de coração, cheiro, jeito de falar e contar histórias. Não é
que o dinheiro não contasse, contava. Mas apenas o vil metal não fazia
amigos. Precisava ter bom papo (sem comprovação dos fatos), sobre
amores, pescarias e quantidades etílicas. Não devo esquecer da
existência dos chatos. Qualquer época produz chatos em quantidade. Minha
avó sugeria a prática da generosidade com os chatos como uma boa
maneira de alcançar o reino do céu. Naquela época de dinheiro escasso, a
água fechava às 14 horas em Bragança Paulista e a vida na praça
terminava, para as mulheres, às 22 horas.
Juro que estou falando a verdade. Este tempo existiu.
As coisas mudaram, o mundo mudou. Tento atualização vocabular com os
netos, mas cometo erros. Outro dia tive uma discussão acirrada com a
minha neta, Khatarina, em torno da palavra modinha. Ela tinha se rebelado, sabiamente, contra as modinhas.
Esta viagem em torno das palavras tem a sua raiz nos problemas de
hoje. Sinto falta de algumas ao ler jornais, assistir TV, ou acompanhar
os debates políticos nas redes.
Qual a razão da morte ou desaparecimento de algumas palavras
importantes para a construção e entendimento da história política
brasileira? Quais são as palavras que perderam status nos últimos 50
anos?
Sinto falta das palavras: processo, projeto e utopia. Existem outras,
vizinhas destas. Cito as mais importantes, do meu ponto de vista. A
hipótese sobre o fenecimento das palavras e de enredos é a seguinte:
A palavra projeto, antiguinha, diminuiu de importância em razão de mudanças na concepção de tempo (histórico). Ocorreu o mesmo com a palavra processo
e com as análises voltadas para a longa duração. A tecnologia alterou a
concepção de tempo interferindo mortalmente em algumas palavras. A
tecnologia permitiu uma ampliação do tempo presente. São muitas as
atividades que podemos fazer instantaneamente. Basta um clique e o
dinheiro sai voando da nossa conta, para a conta do ladrão ou para pagar
dívidas. O Banco Central tem razão: o Pix é rápido e inseguro.
A tecnologia transformou a longa duração, o tempo histórico de
dimensão linear, em fragmento (visual, textual, gustativo), em um ícone
(coração ou dedo polegar) desprovido de sentido (direção). O passado, a
longa duração, o processo perdeu sua força narrativa, revolucionária e
comunicativa. Este papel foi transferido para o meio ambiente, para o
tempo futuro, onde se colocam os grandes desafios para o homem
contemporâneo.
Os avanços tecnológicos e suas interferências na concepção de tempo
foram grandes. Abafaram as reflexões e as estruturações de enredos sobre
contextos, estruturas econômicas, políticas e culturais de longa
duração. As razões são, em parte, justificadas pela alta qualidade das
análises, bem mais aprofundadas, sobre determinados eventos, fatos,
objetos e conhecimentos científicos.
O enredo.
A hipótese que pretendo levantar leva em consideração os avanços da
tecnologia, sem deixar de lado as heranças e legados da história.
Precisamos resgatá-los para fortalecer o debate político.
Para se instaurar um debate político sadio é necessário conhecer os
argumentos onde os fatos, os dados e as propostas são justificados e
expostos por meio de um enredo. Falando à moda antiga: é necessária a
definição (enunciação) de um projeto seja ele qual for.
Um enredo é uma história: tem começo, meio e fim. Um enredo parte de
uma hipótese. Para a discussão ser produtiva é necessário reconhecer as
premissas dos interlocutores. Elas devem ser apresentadas, de forma
ampla e pontual, supondo um ponto de partida, a problemática atual, e um
ponto de chegada, objetivos finais a serem alcançados. O nome dado para
este ponto de chegada inserido no horizonte, antigamente, era utopia. E
o caminho para se chegar ao lugar do sonho, era projeto.
Com o fim da Guerra Fria as utopias foram postas abaixo num processo
de desencantamento do mundo. O desencantamento atingiu mais fundo
pessoas com posição política de centro, os realistas e as faixas mais
abastadas da população. Cresceu a sensação de que nada vale a pena fazer
a não ser salvar a si mesmo e a família nuclear, diante do caos e
miséria existentes no mundo. Sentimento contido na metáfora “não existe
almoço de graça”. A frase, desintegradora das relações político-sociais e
afetivas, é falsa. Trata-se de uma metáfora, uma vontade de silenciar
práticas generosas desenvolvidas por pessoas ou pelo Estado, por meio de
políticas sociais dignas e aglutinativas. A frase surtiu e surte
efeitos cênicos entre os racionalistas e individualistas da gema. Ser
realista e desencantado é também uma grife chique. Generosidade é coisa
antiga, fora de moda, hábito dos desfavorecidos socialmente.
Entre as camadas menos favorecidas arrisco a hipótese de que os
sonhos ainda perduram. Sonhos de ódio e de amor. A existência de um
sonho, de uma utopia, envolve a construção de uma narrativa. Acredito
que elas existem pelo mesmo motivo que as religiões estão presentes em
diferentes sociedades, com muito vigor, até os dias de hoje.
As utopias dependem de uma narrativa integradora das pessoas, do
corpo social, e podem definir formas políticas de ação integrada.
No corpo social brasileiro quais foram os setores que mantiveram uma
narrativa política integrada em torno de uma utopia? Os povos da
floresta e seus defensores? Quem mais?
A extrema direita reuniu e construiu um enredo com os cacos, pedaços,
fragmentos de uma narrativa bem elaborada pelas forças armadas, após o
término da Segunda Guerra Mundial. Ela soube adequá-las às novas
tecnologias. Já a esquerda conservou o seu discurso e as propostas
tradicionais, perdendo força, paulatinamente, sem se adaptar às mudanças
tecnológicas, políticas e sociais em curso.
Quem modernizou as narrativas mantendo unidade de propósitos, direção e projeto?
A extrema direita. Ela digeriu rapidamente a tecnologia, conhecimento
de grande importância na formação das forças armadas, e, a partir dos
pressupostos já existentes, reconstruiu o discurso sobre Soberania
Nacional, fronteiras territoriais e uma mística concentrada em ações
cívicas, desenhando uma “nova” utopia, vestida com tecnologia de ponta.
Quais são as raízes deste projeto?
As raízes são semelhantes àquelas concebidas nas décadas de 50 e 60,
atualizadas em 1970 pelo general Golbery do Couto e Silva e
reatualizadas pelos discursos dos conservadores de extrema direita
atuais.
Trata-se da Doutrina de Segurança Nacional.
De acordo com a Doutrina de Segurança Nacional, o foco do projeto
político brasileiro envolve uma leitura geopolítica do Brasil no
contexto nacional e internacional para elevar o País à categoria de
grande potência. Não podemos esquecer o papel que os nazistas deram para
as questões territoriais, para a geografia em sua dimensão política e
para todos os tipos de violência adequados ao projeto.
Para explicar preciso da palavra, projeto.
No caso brasileiro a doutrina visava e visa a tornar o Brasil uma
grande potência a partir do uso dos seus recursos naturais e da formação
de elites autoritárias capazes de explorar as vulnerabilidades das
sociedades democráticas, supostamente incapazes de levar à frente um
projeto nacional. Para a realização deste programa de governo, era e é
necessário constituir inimigos internos, travando com eles combates
reais ou imaginários, combatendo, matando ou deixando morrer lideranças,
favorecendo o desmonte institucional. Acompanha o desenho da doutrina a
indiferença em relação às populações marginais, pobres, supostamente
responsáveis pelo consumo de recursos naturais e econômicos, em
detrimento de obras de infraestrutura, capazes de elevar o País à
categoria de grande potência. Portanto, fome, floresta e violência,
contra populações marginalizadas, não são temas com importância.
Do ponto de vista da geopolítica, os povos originários são vistos
como responsáveis por dificultar a posse do território e utilização
inadequada dos recursos naturais. A vigilância realizada por povos
originários nas fronteiras e a difusão de informações pela imprensa, ou
instituições ligadas à sociedade civil, segundo esse projeto, não são
bem recebidas porque desestabilizam a segurança nacional nas fronteiras.
E as armas, objeto necessário para a execução do projeto, constituem
estímulo para a diluição dos limites entre polícia e exército,
necessário para um maior empoeirando as forças armadas.
A importância de projetos políticos
Para a população brasileira entender o debate político atual, é
necessário compor o processo histórico brasileiro no qual estão
enraizadas as condutas levadas à frente pelo atual presidente da
República, amparado pelo projeto das forças armadas e parte do Congresso
Nacional (massa de manobra). É necessário compreender a história na
longa, média e curta duração.
Por que as festividades do 7 de Setembro servem à extrema direita
como um momento agregador de um possível golpe? Por que o golpe civil e
militar, de 1964, volta a ser valorizado? Por que as armas têm
importância real e simbólica nestes movimentos?
O processo histórico, velhas palavras, ajuda a nomear, descrever e
analisar por que ocorre o desmonte da Funai, o assassinato de
antropólogos e jornalistas, a fome e a crise na Petrobras. O projeto de
um Brasil Grande subordina os interesses econômicos aos políticos
sugerindo que a Faria Lima também deve ter cuidado com aparentes ilusões
liberais.
As palavras certas fazem ver as coisas ocorridas no dia a dia.
Temos um projeto político da extrema direita, com origens na doutrina
de Segurança Nacional, com a intenção de desmontar a ordem
institucional muito bem articulada desde o pós-Segunda Guerra. Este
projeto prega estrategicamente o confronto militar, político, econômico e
psicológico. Prega o desaparecimento das diferenças entre polícia e
exército, incentiva a mentira como instrumento político à moda de Paul
Joseph Goebbels – “uma mentira contada um milhão de vezes vira verdade” –
e tem o planejamento direcionado para a construção de um suposto Brasil
Grande. O que estiver atrapalhando o projeto deve ser eliminado. A
doutrina de Segurança Nacional envolve o controle do trabalho, do
transporte, modos de vida e, especialmente, a destruição das garantias
institucionais. Envolve prisões, obtenção sistemática de informações e
tortura. O lema é “Inimigo bom é inimigo morto”.
Quando se nomeia corretamente um problema conseguimos encontrar os
instrumentos adequados para concordar ou discordar. Por que os direitos
humanos não são respeitados? Por que não se cria um fundo de combate à
fome? Por que as populações originárias estão sendo exterminadas? Por
que Bruno e Dom foram mortos? Por que se quer valorizar o golpe
civil-militar de 1964 e construir uma outra narrativa histórica?
Porque se está tentando levar à frente um projeto cujas raízes estão
postas no passado, com novas roupagens tecnológicas. Este é o enredo. A
contribuição que uma historiadora “das antigas” pode oferecer é auxiliar
o debate demonstrando como as velhas palavras são importantes de ser
utilizadas. Quais são os projetos que estão em discussão. A história nos
deixa heranças, e, embora indigestas, devemos processá-las para
construir os mecanismos de superação.
A linguagem fragmentada denunciando ocorrências esparsas não permite o
debate político, apenas ameniza a angústia daqueles que enunciam o
crime, a violência, a barbárie.
Somente com a posse de enredos estruturados, com narrativas da
história brasileira nas mãos, podemos discutir o que parece sem sentido,
escondido. A literatura é importante porque nos ensina a desencobrir o
que está encoberto, disfarçado como fragmento, acontecimento incidental.
O enredo é a fonte da conjectura, lugar onde pode estar colocado o bem
ou o mal, o certo ou o errado com todas as suas ambiguidades. A
narrativa, velha aliada da história, atribui sentido às coisas:
significado, direção, caminho. Diminui a angústia humana. O Instagram e o
WhatsApp não atribuem sentido, realizam o trabalho inverso, destroem
significados, para o indivíduo fenecer ao lado do fragmento bárbaro da
história humana.
As palavras projeto político, processo histórico e longa duração (Braudel) são velhas palavras, capazes de trazer luz para o que está em jogo na vida política brasileira contemporânea.
Acompanho a crítica correta da minha neta: abaixo as modinhas, abaixo
os fragmentos, os instantâneos fotográficos. Vida longa para os
enamorados, para os escritores e para os poetas, construtores de sentido
para as coisas.
Vida longa, longuíssima, para os defensores, incansáveis, da floresta.
* Professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP
Fonte: https://jornal.usp.br/artigos/qual-e-o-enredo-dos-acontecimentos/