José Tolentino Mendonça*
Sonho de São José Goya
«Todo o anjo é terrível. Mesmo assim - ai de mim -/vos
invoco, pássaros (...) da alma/ sabendo quem sois».
Este verso de
Rainer Maria Rilke, que a Modernidade tem relido tantas vezes, está
construído sobre um aparente paradoxo: primeiro define o anjo como “o
terrível”, isto é, inscreve-o no território transcendente do divino,
mas depois diz saber quem ele é. A primeira afirmação, porém, tem uma
intensidade tal que condiciona a leitura a fazer da segunda. Que
concluir? Que apesar do conhecimento que possamos ter, o Anjo
permanecesse um enigma, uma espécie de pergunta que nunca se desfaz.
É interessante constatar que mesmo na tradição
judaico-cristã a figura do Anjo surge esboçada numa espécie de penumbra
categorial, mantendo-se sempre como que indistinta, indefinível, e
morfologicamente mutante. Na cena da luta noturna com Jacob, por
exemplo, o anjo depois de lutar por muito tempo com ele, pede-lhe:
«Deixa-me partir, porque já rompe a aurora» (Gen 32,27). É como se a
luz pudesse, de alguma maneira, perturbar aquela evidência que na
escuridão se dá tão palpável. A presença angélica revela-se sempre
pontual face à narrativa da história (é uma espécie de manifestação
extraordinária) e não se deixa fixar. Analisando os textos bíblicos
percebe-se como o mecanismo textual conspira para, a propósito do Anjo,
fazer isso: mostrar sem desvendar, dizer sem prender, tornar
maximamente visível sem ferir minimamente o invisível.
Francesco Trevasane Joseph's Dream 1690 O Sonho de José
Uma história recente pode ajudar-nos a perceber
aquela de sempre. Em 1921, o filósofo Walter Benjamin adquiriu uma
pintura de Paul Klee, intitulada Angelus Novus. Benjamin ficou
com o quadro até ao fim da vida, como referência espiritual e objeto
privilegiado do seu pensamento. Ao jornal de ideias que queria fundar
deu, por exemplo, o nome de Angelus Novus. Walter Bejamin
construiu uma fortíssima amizade epistolar com outro grande pensador de
extração hebraica, Gershom Scholem, e ambos trocaram muitas impressões
sobre a figura do Anjo. Numa carta datada de 19 de setembro de 1933,
Scholem junta um poema intitulado “Saudações do Angelus”. A última
quadra é particularmente precisa:
Sou uma coisa antissimbólica
Que só significa o que eu sou.
Giras em vão o anel mágico,
Não tenho nenhum sentido.
Que só significa o que eu sou.
Giras em vão o anel mágico,
Não tenho nenhum sentido.
Angelus Novus (1920), de Paul Klee
O crítico Robert Alter, que estudou esta ampla
correspondência à luz do motivo do Anjo, escreve: «O anjo
“antissimbólico” de Scholem resiste a qualquer tentativa de traduzir
aquilo que ele é…». O mistério permanece intacto, portanto. Mas não
deixa de ser relevante o facto de dois pensadores contemporâneos, com a
dimensão de Scholem e Benjamin, acreditarem que não há substituto
moderno adequado para o profundo léxico espiritual que a tradição
coloca como pedras da sua busca de verdade.
A Igreja Católica assinala a 2 de outubro a memória dos Santos Anjos da Guarda
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* Teólogo. Escritor. Poeta. Conferencista.
In DIário de Notícias da Madeira
SNPC | Atualizado em 02.10.12
In DIário de Notícias da Madeira
SNPC | Atualizado em 02.10.12
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