José Tolentino Mendonça*
Caravaggio
Será possível falar, à luz dos escritos
neotestamentários, de uma angelogia tipicamente cristã? É que a
emergência do cristianismo coincide com um surto assinalável de
movimentos religiosos, filosóficos e místicos onde a questão dos seres
invisíveis é dominante. Mas no cristianismo das origens ela aparece,
mais do que ofuscada, claramente secundarizada, pela polaridade
hermenêutica representada por Jesus. O epíteto de «judeu marginal», que
Crossan cunhou para Jesus, em muitos sentidos é adequado.
Quando se percorre o cânone do Novo Testamento,
sobretudo no confronto com a religiosidade popular daquela época,
surpreende a escassez de presenças angélicas. A figura de Jesus
relega-as para um segundo plano, tornando inoportuna ou subsidiária
qualquer outra manifestação divina. Nos relatos evangélicos, em vez de
um vaivém ininterrupto, aos seres angélicos como que é restringida a
presença, estipulando que eles se manifestem prevalentemente em duas
ocasiões: o princípio e o fim da vida de Jesus. Um anjo anuncia em
sonhos a José o nascimento de Jesus (Mt l ,20-33), cumprindo as
profecias messiânicas. Um outro ordena que fuja para o Egito, e depois
que reentre na Palestina após a morte de Herodes (Mt 2,13-23). Lucas
começa também a sua narração com duas aparições simétricas, utilizando o
procedimento literário da síncrise que lhe é tão caro: um anjo anuncia
a Zacarias o nascimento de João Batista (Lc 1,11-20) e o arcanjo
Gabriel anuncia a Maria o nascimento do Salvador (Lc 1,26-38). A
manifestação aos pastores fecha com amplidão e emaravilhamento a
sequência da Natividade, pois o mensageiro é acompanhado por um
exército celeste (Lc 2,8-14). À entrada de Jesus na vida pública,
iniciada com o batismo, segue-se um retiro de quarenta dias no deserto,
durante os quais Jesus deve sofrer os assaltos de Satanás. Lá ainda os
anjos vêm servi-lo (Mt 4,11; Mc 1,13; Lc 4,9-13).
E depois, no corpo do Evangelho, praticamente os
anjos desaparecem. Sobre as parábolas de Jesus, Paul Ricoeur escreve
um parágrafo que pode bem iluminar esta verdadeira viragem que Jesus
protagoniza: «A primeira coisa que pode interpelar-nos é que as
parábolas são relatos radicalmente profanos. Não há nem deuses, nem
demónios, nem anjos, nem milagres, nem tempo anterior ao tempo, como
nos relatos fundadores, nem mesmo acontecimentos fundadores como o
relato do Êxodo. Nada disto, mas precisamente gente como nós:
proprietários palestinenses partindo em viagem e alugando os seus
campos, gerentes e trabalhadores, semeadores e pescadores, pais e
filhos; numa palavra: gente comum fazendo coisas comuns. Vendendo e
comprando, lançando uma rede ao mar e por aí fora. Aqui se encontra o
paradoxo inicial: por um lado estas histórias são - como disse um
crítico - relatos da normalidade, mas por outro lado, é o Reino de Deus
que é dito ser como isso. O extraordinário é como o ordinário.»
Domenico Ghirlandaio
Apenas no termo do ministério de Jesus os anjos
retornam: no dia de Páscoa, na vizinhança do sepulcro vazio. Às
mulheres que se deslocam ao sepulcro eles entregam a mensagem: «Ele
ressuscitou.» Esta manifestação surge revestida de maravilhoso (Mt
28,1-8; Mc 16,1-8; Lc 24,1-8) próprio às encenações do tempo
escatológico. Fecha-se assim o círculo: ao anúncio do nascimento
terrestre corresponde o anúncio da Ressurreição como evento último.
Particularmente concentrada nas extremidades dos
Evangelhos, e com um uso económico e parcimonioso, a presença angélica
volta a estar mais disseminada nos Atos dos Apóstolos: ela acompanha os
primeiros passos da Igreja. No momento da ascensão de Jesus, dois
anjos apresentam-se aos discípulos e lembram-lhes a sua missão (Act
1,10-11). Os Apóstolos aprisionados são libertados por um Anjo do Senhor
que lhes abre a porta (Act 5,19). Mais adiante, a mesma aventura
ocorre com Pedro, prisioneiro do rei Herodes Agripa (Act 12,6-11). Numa
passagem onde a fé evidentemente interpreta a história, este monarca é
fulminado por um anjo, por não ter dado glória a Deus (At 12,21-23). E é
frequente a intervenção do mensageiro celeste a traduzir uma
inspiração do Espírito: um anjo assinala a Filipe a estrada que há de
tomar (Act 8,26); outro ordena a Cornélio que mande buscar a Jope o
apóstolo Pedro (Act 10,3-33) ou adverte Paulo de um naufrágio (At
27,22-25).
Benozzo Gozzoli
Os anjos aparecem e reaparecem como figuras de um
discurso que reflete a diversidade das heranças, influências e
controvérsias na construção da narrativa cristã. Ajudam a perceber a
sua função programática (Deus precede a história); performativa (Deus
muda o rumo da história); e interpretativa (Deus revela o sentido da
história). Mas do Novo Testamento destaca-se sobretudo um duplo
esforço: situar exatamente a figura do anjo face ao significado central
de Jesus Cristo, e integrar de uma forma expurgada e num quadro
teológico novo elementos da herança da angeolologia hebraica. Diz-se,
por exemplo, que a Lei de Moisés foi ditada pelos anjos, e não por
Yahveh diretamente (At 7,53; He 2,2). Disso deriva a superioridade da
Nova Aliança sobre a antiga, a proeminência do Filho sobre os anjos, a
primazia da profecia sobre a Lei. O mistério da encarnação do Verbo foi
escondido aos anjos, e, por isso, Cristo convida a reinterpretar as
Escrituras, que os judeus não podem compreender corretamente. Paulo
recusa a mediação angélica (Gal 1,8; 3,19; 1Tim 2,5) que é suplantada
definitivamente pela efusão do Espírito Santo. Como mediador supremo,
Jesus abarca integralmente a função soteriológica [salvadora], e por
isso «os céus abertos» e o movimento dos anjos de Deus, de que São João
fala, na cena da vocação de Natanael, «um verdadeiro israelita»,
fazendo alusão à escada de Jacob («Em verdade, em verdade vos digo:
vereis o Céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo por meio do
Filho do Homem» - Jo 1,51), foram interpretados como a manifestação de
uma nova hierarquia dos céus, que passa a ter em Cristo o referencial.
Lorenzo di Credi
Os Anjos e a representação da experiência cristã
Era fervilhante deste ponto de vista o mundo a
partir do qual o cristianismo se inscreve. No início do I século, a
comunidade de Qumran acreditava existir uma correspondência, ou mesmo
um sincronismo, entre as suas celebrações e as liturgias angelicais.
Assim se consuma o sentido profundo do culto aos anjos. Transbordam
igualmente de anjos as doutrinas gnósticas, em plena expansão. Não para
de crescer o seu encargo teofânico. Se o iniciado alcança a iluminação
interior, é porque os mensageiros celestes o conduzem nesse escondido
percurso unitivo com a sua essência espiritual e celeste. Esta viagem é
descrita como uma espécie de dramaturgia não apenas individual, mas
cósmica, e aí assoma o dualismo entre Luz e trevas, entre entidades e éons do mundo espiritual. Nos meios do horizonte greco-romano desenvolve-se também o discurso angelológico.
Michelangelo Buonarroti
É com imagens tradicionais desses diversos mundos que o
Novo Testamento vai confrontar-se. Filipe F. Ramos escreve que, neste
domínio, «a cenografia do Novo Testamento coincide com a do Antigo». A
representação dos céus aparentemente não se altera ou altera-se pouco:
eles são sempre povoados por anjos, cujos coros rodeiam o trono
divino, aclamam o Senhor (Ap 5,11-14), cumprem uma liturgia eterna (At
19,1-10). Contudo, se ocorre uma recuperação de imagens e metáforas
anteriores, há a preocupação de enquadrá-las numa arquitetura muito
própria, ao serviço de uma verdade original, a do significado
escatológico do Filho do Homem.
Pieter Rubens
A costura mais íntima e também a mais visível do
Apocalipse são os anjos: o livro constitui-se a partir da revelação
angélica (Ap 1,1) e eles são atores na própria trama. Cabe-lhes o
desenrolar das visões e do seu sentido: dão a ver a grande cidade
infiel (Ap 17) e o seu contraponto, a nova Jerusalém, esposa do Cordeiro
(Ap 21,9-27). Através de polaridades paradoxais declaram o plano de
Deus e apresentam-se como seus executores. E investem-se de uma função
cheia de consequências políticas: como anjos-príncipes dos reinos do
Oriente (Ap 9,13) e das Igrejas da Ásia (Ap 1,20), são protetores das
comunidades humanas. Já em Lucas, no chamado «Evangelho dos perdidos»,
constituído pelas parábolas da misericórdia do capítulo 15, se refere a
solicitude dos anjos para descrever como o inteiro céu conspira e
festeja o reencontro dos que se haviam perdido.
Lourdes Castro
Mas, mesmo no plano mais próximo, o do destino
pessoal, uma relação com os anjos se vai cimentando: na parábola do
pobre Lázaro, depois de todos os seus tormentos, são os anjos que
conduzem ao céu a sua alma (Lc 16,22). De novo aqui percebemos o
cristianismo a dialogar com os seus arredores. «Já os essénios
ensinavam que os homens viviam permanentemente sob o olhar dos anjos e
os pregadores judaicos proclamavam que cada indivíduo era acompanhado
aqui em baixo por um bom anjo e um mau anjo.» Aquilo que a tradição
cristã vai tematizar com a figura do anjo da guarda não anda longe
destas conceções. Um paralelo pode ser entrevisto na passagem de Mt
18,10, onde Jesus diz: «Livrai-vos de desprezar um só destes pequeninos,
pois digo-vos que os seus anjos, no Céu, veem constantemente a face de
meu Pai que está no Céu.» E sabemos o prodigioso desenvolvimento que,
na piedade cristã, este tema conheceu.
Simone Martini
Quanto à natureza dos anjos e ao seu enquadramento na
cosmologia, o assunto não deixa de produzir espanto, acolhendo-se
naquele claro-escuro de uma linguagem que diz não dizendo, própria da
Fé e das suas representações. Um exemplo paradigmático é o de Paulo. No
seu epistolário, o Apóstolo parece ligar-se ainda, e quase
desconcertantemente, a velhas representações dos espíritos aéreos e
astrais, que arriscam mediar a relação entre o homem e Deus. Porém,
revisitando esse estaleiro iconográfico, a teologia paulina não pode
ser mais veementemente clara: estas potências existem sob o poder de
Cristo glorioso, que tem submetido todo o universo (1 Cor 4,9): «para
que, ao nome de Jesus, se dobrem todos os joelhos, os dos seres que
estão no céu, na terra e debaixo da terra» (Fl 2,10). Podemos, por isso,
concluir que, mais importante que o esclarecimento ontológico dos
personagens ou, como no Antigo Testamento, a determinação do seu âmbito
de funções, o essencial é verificar que a angelologia é agora
inseparável da cristologia. Com o seu poder vocativo que não se
dissolve, a angelologia cristã sublinha o que, de forma lapidar, se
escreve na Carta aos Colossenses: «A realidade está em Cristo» (Col
2,17).
Esta transcrição omite as notas de rodapé.
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* Teólogo. Poeta. Escritor. Conferencista.
In A leitura infinita, ed. Assírio & Alvim
02.10.12
In A leitura infinita, ed. Assírio & Alvim
02.10.12
Fonte: http://www.snpcultura.org/os_anjos_e_o_cristianismo.html
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