Você já se sentiu infinitamente pequeno diante de algo imenso e
infinito? Já percebeu o quão frágil é tudo à sua volta, inclusive, e
principalmente, você? Já pensou que um dia o sol se apagará e tudo que
você conhece deixará de existir?
Já pensou que em meio a tantas pessoas que transaram desde a mais
distante ancestralidade humana, a "cadeia de orgasmos" entre elas é a
causa eficiente da sua existência hoje? Já imaginou quanta coisa podia
ter dado errado e você não existir? Aqui não estamos muito distantes do
silêncio que muitas vezes se impõe quando testemunhamos uma criança vir
ao mundo. Esse silêncio é nossa consciência ancestral de que devemos
nossas vidas a todos os que viveram, lutaram e morreram antes de nós. A
primeira palavra que devíamos aprender a falar é "obrigado". Uma cultura
que não cultiva o respeito pelos ancestrais é uma cultura de ingratos.
Deveríamos assistir ao parto de joelhos.
Bastava uma dorzinha de cabeça numa das fêmeas ancestrais ou uma
brochada num dos machos ancestrais ou um dos dois ser comido por algum
predador, e você não estaria hoje aqui lendo a Folha.
Logo, é quase um milagre esse instante em que nos encontramos. Assim
como toda a cadeia de eventos que envolve a sua vida e a de cada um de
nós.
Diante de tantas variáveis infinitas, muita gente sente um certo
agradecimento por ter nascido e pelas coisas que giram à nossa volta,
tornando possíveis nossas vidas.
Nossa atitude deveria ser uma de completa reverência diante de tudo
isso. Esse tipo de reverência desapareceu do nosso repertório porque
somos uns mimados que acham que o universo é "um direito" cósmico. E que
todos que transaram em nossa longa cadeia de ancestrais o fizeram "por
nossa causa".
Essa humildade diante da simples existência não é muito distante da
ideia de graça no cristianismo (e também no judaísmo e islamismo). Dai
que qualquer teólogo competente sabe que toda boa teologia começa
agradecendo. Coisa pouco comum hoje em dia. Uma sociedade dominada pela
ideia de "direitos" é necessariamente uma sociedade que cultiva a
ingratidão. Nada mais distante da espiritualidade semita (das três
religiões abraâmicas citadas acima) do que uma teologia que "pede". A
teologia começa agradecendo o fato de respirarmos. Ou, como diria Santo
Agostinho (354-430), devemos agradecer pela língua que temos para falar.
Toda espiritualidade séria começa com a consciência do quão improvável é
a nossa existência e a de todas as demais coisas à nossa volta. A fina
relação entre essa enorme improbabilidade e nossa ínfima existência é
que produz o sentimento de milagre, agradecimento e graça.
Que nenhum ateu inteligentinho queira me dar uma lição de estatística ou
de acaso cego. Guarde-as para ateus inseguros e de alma tosca. A
cegueira do acaso apenas torna a beleza do mundo ainda maior.
O que vem a ser a religião? Essa pergunta não é fácil de responder.
Muitos tentam buscar uma resposta que sirva pra todas as religiões, mas
isso não é evidente.
Entretanto, existem algumas ideias interessantes sobre essa busca de um
"denominador comum" para as religiões que funcionam razoavelmente bem. E
algumas delas passam justamente por esse sentimento de agradecimento
pelo simples fato de sermos capazes de testemunhar toda essa beleza, ao
mesmo tempo frágil e imensa. E de nos sentirmos de alguma forma
dependentes dela.
O teólogo alemão Friedrich Schleiermacher (1768-1834), fundador da
hermenêutica, disciplina que estuda os modos de interpretação de
culturas e textos, é considerado o pai fundador dos estudos não
religiosos das religiões. A história desses estudos é longa e não vou me
ater a todas as controvérsias que a matéria exige.
O que me interessa aqui é o "denominador comum" que Schleiermacher
pensava estar presente em todas as religiões. Para ele, as religiões são
o fruto dessa percepção profunda de nossa dependência para com esse
infinito que nos sustenta e, ao mesmo tempo, nos lembra o quão efêmero
isso tudo é. Como o pó que se vai com o vento, mas que é capaz de ver o
rosto de Deus.
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* Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela
Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião,
ciência. Escreve às segundas.
"A sensação de conforto alivia, presta reverência a alguma fantasia, mas não muda muito.
Uma falácia essa coisa chamada sucesso."
Em
2003, a atriz Nicole Kidman ganhou o Oscar de melhor atriz. Ela subiu
ao palco, fez seu agradecimento e em poucos segundos seu talento e
elegância estavam sendo comentados em todos os sites. Foi a homenageada
mais paparicada da noite. Bateu ponto nas festas pós-cerimônia e, quando
tudo acabou, voltou para o hotel, ela e seu troféu que não falava, não
fazia um carinho, não dizia eu te amo. Diz ela que naquela noite chorou
tudo que tinha pra chorar e que nunca se sentiu tão sozinha. Enquanto
isso, o mundo inteiro foi dormir com inveja do glamour da atriz.
Recentemente
a cantora Zélia Duncan publicou um texto chamado “Suíte Solidão”, em
que ela comenta a respeito de hotéis durante turnês: “Você acaba de ter
uma alegria amplamente compartilhada e mergulha num “olha eu sozinha
aqui de novo”.
Não sou Nicole, não sou Zélia, mas já vivi
situações similares e confirmo: é o suprassumo da contradição. Lembro um
dia em que participei de um evento numa cidade do interior do Rio. Fui
hospedada no melhor hotel da região: um lugar lúgubre, cheio de
corredores mal iluminados e com cheiro de mofo. A porta do meu quarto
era de uma madeira encardida e o carpete tinha um aspecto suspeito. A
única janela dava para o nada. Me disseram que um motorista viria me
buscar às 18h e desejaram bom descanso. Eu tinha cinco horas livres para
contracenar com o submundo da minha solidão.
Lá fora chovia a cântaros, pra deixar o cenário mais melancólico e inibir qualquer tentativa de passeio a pé pelas redondezas.
Não
fui atrás de club sand- wich, de colega de infortúnio, de coisa
nenhuma. Havia levado um livro em estado adiantado de leitura e em meia
hora ele foi devorado. Fiquei então a olhar paredes, buscando resposta
para uma pergunta simples: e agora? Tomei o segundo banho do dia para
ter algo mais a fazer. Deitei. Olhei para o teto. Tudo ao meu redor
tinha um tom sépia. As cortinas pesadas. O frigobar vazio. Tentei
dormir. Se consegui, nem reparei.
Na hora combinada, fui até o
lobby e alguém apareceu para me levar ao local do evento. Chegando lá,
havia um auditório com capacidade para cerca de duas mil pessoas sem
lugar vago para nem mais um ácaro. Fui recebida como se fosse a atriz
protagonista da novela das nove. Cada palavra que eu disse foi similar a
do Evangelho. Por uma hora e meia, não havia no universo ninguém mais
importante do que eu. Nem Nicole Kidman.
Quando tudo terminou,
fui devolvida àquele quarto asfixiante em que dormi feito uma indigente
recolhida por caridade, e se fosse um cinco estrelas (quase sempre é),
confidencio: a sensação de conforto alivia, presta reverência a alguma
fantasia, mas não muda muito.
Olha eu sozinha aqui de novo. Uma falácia essa coisa chamada sucesso.
É provavelmente o nome mais respeitado
da psicanálise em Portugal. António Coimbra de Matos, 86 anos, dedicou
grande parte da sua actividade ao estudo da depressão. Admite que
estaremos provavelmente a viver um período de depressão colectiva.
Deitámos o país no divã do psicanalista.
Entra-se no consultório e dá-se de caras com uma curva do Douro. A
vista assombrosa de São Leonardo de Galafura transporta-nos para uma
espécie de tempo mítico. Pendurada na parede em frente à porta, aquela
fotografia é uma janela para as origens de Coimbra de Matos. Ao longo de
duas horas de conversa, o psiquiatra e psicanalista, nascido em 1929,
evoca por diversas vezes episódios da infância para ilustrar o que diz.
Embora se tenha afastado da importância que a teoria psicanalítica
clássica dá ao passado. António Coimbra de Matos é um ávido consumidor
da ideia de futuro. A papelada que se amontoa na secretária a que nos
sentamos, um de cada lado, revela o tipo de organização muito pessoal de
quem privilegia a actividade à arrumação obsessiva. Fuma
incessantemente e concede-se a si próprio o tempo necessário para
responder a cada pergunta. Como se fosse a primeira vez que algumas das
questões se lhe colocassem.
Pode-se falar em estados de depressão colectiva? Pode.
A depressão é uma coisa individual mas há situações em que aparecem
mais casos depressivos. Em momentos de crise. Como agora.
Em que houve uma série de suicídios de trabalhadores da empresa. Sim. Isso foi muito noticiado.
Há pouco tempo foram divulgados números que revelam um aumento dos casos de suicídio em Portugal. Sim.
Há um trabalho célebre, um trabalho seminal, em que o pai da
Sociologia, o Durkheim, verificou que quando há guerras e revoluções a
depressão e os suicídios diminuem porque as pessoas se revoltam. Quando
as pessoas não se revoltam, é que se suicidam; quando se sujeitam,
quando não têm condições para protestar com mais veemência.
Na sua definição, segundo li, o que distingue a depressão normal da depressão patológica é justamente a capacidade de revolta. Sim.
Em Portugal, não somos lá muito bons nisso, na capacidade de revolta colectiva, pois não?
Não, somos um bocado passivos. Os espanhóis são muito mais agressivos, revoltam-se muito mais.
Sim, nas imagens das manifestações em Espanha ou na Grécia vemos um grau de revolta que não identificamos em Portugal. Isso
é verdade. Noto isso na área científica. Aqui em Portugal, vamos a um
congresso e se dizemos: “Não estou nada de acordo com isso” dizem-nos
logo: “Foste muito agressivo com aquele tipo”. Isso, num congresso
internacional, é a coisa mais banal do mundo e ninguém leva a mal, nem
diz que está a ser agredido.
Somos mais susceptíveis? Sim. E mais delicados, mais medrosos. Somos um país de medrosos.
É a velha ideia dos brandos costumes? Dos
brandos costumes mas também da atitude do poder. O poder em Portugal
sempre foi menos violento. Isso não facilita a revolta. O Salazar não
matava, mandava prender. Franco matava mesmo e isso cria uma revolta
maior.
E considera isso mais negativo do que positivo? Sim,
há uma sujeição maior. Umas vezes é mais negativo, outras vezes mais
positivo. A nossa colonização foi muito melhor do que a colonização de
outros países, nomeadamente de Espanha.
É
capaz de haver gente nos estudos coloniais de cabelos em pé com essa
ideia de que a colonização portuguesa terá sido branda; também houve
grandes atrocidades. Mas não foi tão agressiva como a dos espanhóis, pelo menos na América Latina.
Não tivemos um Cortés. Os espanhóis liquidavam aqueles indivíduos. Nós escravizávamo-los e tal.
Vê uma continuidade de carácter ao longo dos séculos no povo português? Repare
na nossa luta contra os árabes, no princípio da nacionalidade:
conseguimos conquistar território mais facilmente porque o Afonso
Henriques e os outros não matavam os árabes. A maior parte dos alcaides
foram feitos governadores civis. Já os espanhóis chegavam lá e
liquidavam os alcaides: substituíam-nos logo e às vezes até os matavam.
Nós fomos mais diplomatas.
Identifica nisso um traço de continuidade? Sim.
Percebi-o muito cedo, ainda na instrução primária. Fiz a instrução
primária numa aldeia do Douro e ouvia dizer que o Afonso Henriques era
um mata-mouros. Eu inventei uma outra designação: não era um
mata-mouros, era um fode-mouras [risos]. Eles conquistavam as mouras e
não precisavam de liquidar os mouros. Na maior parte das vezes
aproveitaram a estrutura montada pelos árabes. Os espanhóis não fizeram
isso e tiveram muito mais dificuldade em conquistar.
O facto de nos revoltarmos menos do que outros povos, significa que somos mais atreitos à depressão? Não
sei dizer ao certo mas haverá vários factores para isso. Um dos
factores é a nossa história, a expansão, as descobertas, os pais que
saíam. Os homens iam para a guerra, iam para as colónias, para os
descobrimentos, e os filhos ficavam com as mães. Nas famílias em que o
pai está ausente, isso cria uma menor agressividade, fica-se mais
passivo. Há um trabalho interessante da Professora Celeste Malpique, do
Porto, precisamente sobre o pai ausente. Fez esse estudo nas zonas de
Ovar e de Aveiro, onde os homens iam para a pesca do bacalhau.
Isso lembra-me uma
frase sua a explicar a diferença entre os papéis do pai e da mãe: quando
a criança tem medo, a mãe dá-lhe a mão... ...e
o pai dá-lhe um pontapé no cu. O meu pai fez-me isso uma vez, tinha eu
para aí uns dez, onze anos. Tinha montado um cavalo que lá havia e que
era um bocado arisco. Estávamos no quintal da casa e o cavalo começa a
empinar-se. Fiquei com medo e gritei pelo meu pai. Ele veio ter comigo e
julguei que ia segurar-me o cavalo. Mas não. Pegou no chicote e dá duas
porradas no animal. O cavalo largou-se, sai pelo portão da casa, pela
estrada fora. Sei que perdi os estribos, agarrei-me ao selim, e ia a
chamar ao meu pai filho da puta, cá por dentro [risos]. Mas nunca mais
tive medo dos cavalos.
Essa distinção de papéis entre o pai e a mãe ainda é assim tão clara? É.
O homem, em relação à criança, tem uma atitude diferente da da mulher. O
homem faz mais movimentos extensivos, para fora, periféricos,
centrífugos. As mulheres fazem mais movimentos centrípetos. O homem pega
no bebé e tem tendência para o pôr assim [demonstra, afastando os
braços do corpo].
Diria que essas características são inatas ou culturais? São inatas. Isto faz-se em todas as culturas. Em algumas será mais forçado.
Como é que enquadra isso em realidades novas como a dos casais homossexuais com filhos? É difícil responder. Os casais homossexuais não são patogénicos. Não há perigo nenhum na adopção por casais homossexuais. Agora, é uma situação com um risco um bocadinho maior.
A que nível? Mais facilmente pode haver dificuldades adaptativas.
Por causa dos diferentes papéis que não estão preenchidos? Sim.
E não só. Os casais heterossexuais são mais harmónicos. Nos casais
homossexuais há mais frequência de conflitos, de separações. São menos
estáveis, de uma maneira geral.
Diz isso com base na sua experiência empírica ou em estudos publicados? Há estudos sobre isso. E depois é a experiência que temos de clínica.
Tem detectado alterações a esse nível?
Ocorrem
mudanças na medida em que isso existe, é aceite, é cultural. As coisas
melhoram. Os casais homossexuais tornam-se mais harmónicos por causa da
aceitação. Numa cultura em que a homossexualidade não é aceite os casais
envergonham-se, escondem-se, são criticados, há reparos. Portanto
reagem a isso. Se são aceites sentem-se integrados.
Voltando à ideia de depressão colectiva: sente-a no seu consultório? Não
sinto muito. A clínica do consultório é de classe alta. Nos hospitais
vê-se mais, há mais depressões. Parece-me que será assim, mas não tenho
estatística nenhuma que o comprove.
Com
tanta coisa em transformação na sociedade, o que é que lhe parece mais
comum a nível individual: o que permanece ou o que se altera? Mais
do que a mudança nos quadros clínicos ou nas coisas que aparecem, é a
mudança em mim próprio. São as coisas novas que vou descobrindo ou que
vou investigando.
De que tipo? A minha técnica hoje é muito diferente do que era há 20 ou 30 anos.
O que é que mudou? Muita
coisa. Até as concepções teóricas. A inovação, a investigação são a
base de todo o movimento. Se a pessoa se fixa naquilo que descobriu ou
que aprendeu, às tantas está fossilizada.
É fácil ficar fossilizado nesta actividade? Em
todas as actividades é fácil. Na nossa talvez mais porque é mais
complexa, e as pessoas aprendem sempre muita coisa e depois repetem
aquilo que já sabiam. As pessoas dizem-me isso: “Não percebo, você agora
vem com umas ideias completamente diferentes”. Não sou nenhum maluco,
fui vendo umas coisas, algumas ideias que tinha e que não estavam muito
certas e entretanto fui trilhando outros percursos.
Dê-me o exemplo de uma dessas alterações. Por
exemplo, aprendi, e durante muito tempo procedi assim, que os sonhos
nocturnos eram uma coisa muito importante, que nos davam grandes
indicações. Hoje a minha teoria é que os sonhos nocturnos pouco nos
dizem porque são um trabalho de memória.
Portanto, a interpretação dos sonhos já não lhe interessa. Não.
É muito mais importante aquilo a que chamo o sonho-projecto, os
devaneios diurnos que temos. Esses é que estão virados para o futuro.
Diz-se muitas vezes que o homem é um animal de hábitos, mas não é
verdade. O macaco é um animal de hábitos, o homem é um animal criador,
está sempre a criar coisas novas. E por isso criou uma civilização. O
ser humano é de tal modo criador – e eu sou ateu! – que até criou um
deus. Deus é uma criação do homem. Na psicanálise estou mais interessado
no futuro do que no passado. A psicanálise clássica está sempre muito
ligada ao passado: o que aconteceu com a mãezinha, com o paizinho. Eu
ando mais ligado àquilo que a pessoa projecta no presente e para o
futuro.
No seu divã não lhe interessa aquilo que foram as vivências e as memórias recalcadas? Isso
também é importante. Costumo dizer aos meus alunos, na brincadeira, que
os analistas clássicos me fazem lembrar um condutor de automóveis que
vai sempre a olhar para o retrovisor; depois espeta-se no primeiro
eucalipto. Não é isso que me interessa. Dá-se uma vista de olhos de vez
em quando mas olha-se em frente, fundamentalmente.
Imagino que isso lhe valeu algumas antipatias ou mesmo inimizades dentro do meio da psicanálise. Sim, sim. E críticas.
Porque é que há uma tão grande animosidade entre escolas terapêuticas? Como
é uma ciência mais difusa, com menos certezas, é mais fácil formar
essas escolas e crenças. Religiões, quase; seitas. Mas a propósito
disso, há uns anos recebi um prémio nos Estados Unidos, e um dos
analistas de lá, com quem depois me correspondi bastante, mandou-me um
mail: “Mas isso que você disse é uma mudança total de paradigma, não é?”
“Pois é”, disse-lhe eu.
A que é que ele se referia? Precisamente
a isto de que estávamos a falar, porque na psicanálise clássica o
paciente repete muito as coisas que aprendeu na infância. A minha teoria
é que ele, ao longo da vida, vai aprendendo coisas novas e vai mudando.
E isso é que é o importante.
Também reconstruímos e reinventamos o passado. Sim,
mas vivemos do futuro, não do passado. Infelizmente nem sempre é assim,
mas é assim que deve ser. Veja na política portuguesa: foi o problema
do Sócrates, e antes do Sócrates do Guterres... Noutro dia dizia a um
amigo meu: naturalmente, a culpa foi do Afonso Henriques, que conquistou
isto aos mouros em vez de ir para a Galiza.
Andamos a olhar demasiado para o espelho retrovisor? Andamos.
De uma maneira geral, nos países europeus. Há um estudo que já tem uns
30 anos, de psicólogos e psicanalistas americanos, que se limitaram a
investigar a década de 70. Foram buscar 400 artigos que vêm de duas
revistas de psicanálise bastante conhecidas, seleccionaram 200 artigos
escritos por psicanalistas europeus, e 200 artigos escritos por
psicanalistas americanos. E só foram investigar uma coisa: o número de
vezes que citavam Freud. A diferença era de dez vezes mais para os
europeus. [risos] É o peso da história. E também a coisa cultural: os
europeus são mais conservadores. É frequente ir-se a uma conferência
sobre filosofia e ter de se ouvir falar no Aristóteles e no Platão.
Sente-se mais americano, nisso? Muito
mais. Aliás, tenho muito mais contacto com analistas americanos do que
com analistas europeus. Esse prémio que me deram nos Estados Unidos, na
Europa não mo davam. Deram-mo voluntariamente, foram eles que me
seleccionaram, pelos meus escritos. Na Europa achavam que aquilo não
tinha muito interesse.
Revê-se mais no pragmatismo americano. No
caso da análise, sim. Noutras coisas não. Noutros aspectos têm muitos
defeitos. Mas os filósofos são muito mais pragmáticos. Os filósofos
europeus estão presos às abstracções todas.
Com a sua idade seria natural que o peso da experiência já tivesse uma prevalência maior do que o da tentativa de descobrir. As coisas evoluem investigando, não é acumulando conhecimentos.
Como é que se dá, por exemplo, com a revolução tecnológica? Não vejo aqui nenhum computador. Não,
porque os computadores já chegaram tarde demais e eu já não tinha muita
paciência para aprender a lidar com aquilo. A minha secretária é que
trata disso. Mas acho que é importante, aquilo é bom.
Nunca usa computador? Não. Mesmo o telemóvel, uso-o mal.
Sabe o que é o Instagram? Sei [risos].
Sabe o que é o Facebook? Também sei, mais ou menos.
As
redes sociais são apenas novas formas de comunicação ou parece-lhe que
há o risco de mexerem com características fundamentais das pessoas? Penso que se não forem em excesso, não. Como tudo.
A instantaneidade da comunicação terá alterado algumas das características relacionais que existiam na sua juventude? Não
sei. Ouço os meus colegas, na faculdade de psicologia, dizerem: “Esta
malta hoje não presta, no nosso tempo é que era bestial”. Pois, eu acho
que os alunos agora são muito melhores do que eram no meu tempo.
Muitíssimo melhores. Mais ávidos, mais interessados. A evolução é
positiva. No meu tempo de estudante a maior parte dos colegas só pensava
em futebol e em beber copos. Hoje vêem-se vários alunos e alunas
interessados em filosofia, política, história.
Não se reconhece, portanto, no discurso da crise de valores. Não, de maneira nenhuma. Os valores é que são outros. Em relação aos valores da religião, do pecado, são outros.
Quais diria que são hoje os valores estruturantes? O
primeiro de todos é a liberdade. E por outro lado o de haver menos
proibições. A minha liberdade só acaba quando perturba a liberdade do
outro. É a única proibição. Depois a moral: há um tipo de moral, a que
chamo exógena, ou heterónoma, que vem ditada pelo outro. Pela religião,
pelo partido político, pela cultura. E há uma moral endógena e autónoma,
que depende simplesmente de o indivíduo ter empatia e compaixão pelo
sofrimento do outro. Se me ponho no lugar do outro e fico preocupado se
ele não está bem, construo a minha moral. Aquela que me é ensinada não
tem interesse nenhum. Por exemplo, há uma coisa que é muito discutida e
em que várias pessoas não estão de acordo comigo: continua-se a dizer
que é preciso impor limites às crianças. Não é preciso impor limites
nenhuns às crianças, é preciso simplesmente mostrar-lhes que a realidade
tem limites; a realidade física e a realidade social. Se a criança bate
com a cabeça na parede magoa mais a cabeça do que a parede [risos]. Se
chama filho da puta ao pai, se calhar o pai fica chateado e deixa de
brincar com ele, já não lhe apetece jogar à bola. É só isto.
O espanhol Javier Urra. Sim.
Só diz idiotices [risos]. Mas tem cargos importantes: é professor
catedrático na Universidade Complutense de Madrid e é, ou foi, o
provedor dos menores em Espanha. Os livros dele têm várias edições mas é
um homem execrável. Numa entrevista que li dele, acaba dizendo que
castigava os filhos porque gostava muito deles. Bestial! [risos]
Está mais próximo, nesse aspecto, do Dr. Spock. O Spock era muito melhor.
Ou de Berry Brazelton. Esse
é bom. Mas tem uma teoria com a qual não estou totalmente de acordo:
diz que o bebé precisa de amor e disciplina. O bebé não precisa de
disciplina, precisa de um ambiente ordenado, de um ambiente
disciplinado. É diferente. Se um dia lhe derem a refeição às três horas,
no dia seguinte às seis da tarde, noutro dia deitam-no às oito, e
depois às onze...
Isso é desestruturante. É.
Se o ambiente for ordenado a criança integra-se nisso. Se eu, como
professor, protesto por os alunos chegarem tarde à aula, não dá em nada.
Agora, se eu chego a horas, ele habituam-se a chegar a horas.
E o que é que faz quando há prevaricadores? No
Centro de Saúde Mental e Infantil tínhamos dez ou onze equipas e fazia
uma reunião por semana com cada uma delas, e uma vez por mês uma reunião
geral com toda a gente. Essas reuniões eram às nove da manhã; das nove
às onze. E as pessoas chegavam sempre atrasadas. Fiz várias coisas até
que simplesmente escrevi num quadro, “quem chegar depois das nove e dez é
favor não interromper”. Começaram a ir a horas. As pessoas protestam
quando é imposto, mas se for dito com jeito acabam por colaborar. E há
outra coisa: a ideia do nosso governo anterior era a de que as
sociedades progridem por competição. Não, as sociedades progridem por
colaboração. Não é nos períodos de guerra que se fazem as grandes
descobertas, é nos períodos de paz.
Há uma ideia muito difundida de que é o investimento militar que tem providenciado grandes avanços... Não.
...até na área da psicologia. O Hitler é que dizia mais ou menos isso: que a guerra trazia desenvolvimento.
Como é que encara a questão com que todos temos de nos confrontar: a ideia da morte? Fiz
uma conferência aqui há tempos num congresso de filosofia em que me
convidaram para falar sobre isso. Primeiro recusei, depois insistiram
muito comigo. Pus uma condição: “Só se for falar ao mesmo tempo da
sexualidade e da morte” [risos]. Todos temos uma angústia, que não é
propriamente a angústia de morte, essa é comum nos animais; a angústia
perante a morte imediata, o risco. Os homens e os macacos superiores - o
orangotango, o gorila, o chimpanzé - já têm alguma consciência disso,
têm aquilo a que chamo a angústia essencial. Uma angústia perante a
finitude da vida. Têm consciência de que a vida tem um limite. Essa
angústia não é totalmente resolvida, mas é resolvida em parte pelo que
se chama a imortalidade simbólica. Sei que vou morrer daqui a uns anos,
mas também sei que fiz algumas coisas que ficaram, que foram úteis.
Ensinei algumas coisas porreiras a umas pessoas. Sei que vou morrer mas
diverti-me mais ou menos. Fiz umas asneiras, mas também fiz algumas
coisas bem feitas. Há uma certa satisfação, não vou vazio e
insatisfeito.
Essa consciência aumenta com o passar do tempo, ou nem tanto? Nem
tanto. Temos é de ter sucesso em algumas coisas que fazemos. Se só se
tem insucesso isso deprime, causa mau estar. Os americanos falam muito
dos três “g”, a propósito do amor. Good, giving and game. Bom, generoso e divertido. O mundo deve ser bom, generoso e divertido.
Isso é aplicado ao amor? Sim, ao amor e às relações em geral. Mas eles falam disto a propósito do amor. O bom amor é aquele que é good, giving and game (jogo, mas que eu traduzo para divertido).
Também temos de aprender a viver com os momentos menos divertidos para não desistirmos à primeira contrariedade. Isso
é outra teoria. A teoria da psicanálise clássica é a de que as dores
são boas, que é preciso sofrer para ficar mais forte, para enrijecer o
carácter. Não é nada a minha teoria. A dor é inevitável, não é boa. Há
sempre insucessos, há sempre dores.
Eu estava a referir-me à chamada gratificação imediata, cuja necessidade, segundo se diz frequentemente, tem vindo a crescer. Pois,
a teoria clássica é a de que a gratificação imediata é má e que se deve
educar para a frustração. Reduzir a frustração lenta e
progressivamente, é o que ensinam os clássicos. Não é de facto a minha
teoria. A frustração é sempre má e deve evitar-se. O que se deve fazer é
outra coisa: é desenvolver a capacidade de espera, o que é diferente.
Estou suado, vim a correr, apetece-me beber uma cerveja gelada. Mas
percebo que se descansar um bocado a cerveja me vai saber muito melhor.
Não é a mesma coisa que manter a frustração, ou que considerar a
frustração útil.
Há hoje patologias mentais novas? É difícil dizer mas há algumas.
O DSM [o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais] agora é maior. O DSM é uma porcaria. Aquilo é um catálogo condicionado pela indústria farmacêutica para venderem mais medicamentos.
Todos temos lá um lugarzinho. Sim, sim. E um medicamento apropriado.
Quais são então as novas patologias? Há
uma maior quantidade de traços de psicose, narcisismo, borderline.
Porque há uma menor intimidade entre as pessoas. As relações são mais
superficiais, menos íntimas, menos vinculadas, mais anónimas. De maneira
que não há familiaridade. Deixou de haver a confiança, a colaboração
mútua.
Isso é um efeito da vida urbana por contraponto à vida rural? Claro,
das grandes cidades. E do estilo de vida que as pessoas levam, também.
Hoje as pessoas só são íntimas entre dois ou três amigos. No meu tempo
era íntimo de todas as pessoas da minha aldeia. Mesmo nas cidades havia
aquela coisa de bairro, as pessoas iam a casa uns dos outros. Hoje temos
mais conhecidos do que amigos. Há uma diminuição da espessura afectiva
dos laços.
Não
haverá, por outro lado, uma maior liberdade? Porque essa situação de
antigamente era também de um grande controlo sobre os indivíduos. Sim. Nesse aspecto, sim.
O que é que é preferível? Bom,
os extremos serão sempre maus. Mas não sei se a situação de antigamente
era assim de tanto controlo. As pessoas respeitavam mais os segredos,
por exemplo. Hoje respeitam menos. Se pedir a um amigo seu para
respeitar um segredo, ele di-lo logo na primeira esquina.
Não tem grande confiança na natureza humana, pelos vistos. A vida actual é mais insegura.
Existe isso da natureza humana? Existe, é um bocado diferente da natureza dos macacos, por exemplo [risos].
Mas reconhece a existência de padrões de comportamento, independentemente da cultura, da origem, do meio em que se cresceu? O
problema dos valores é um problema posto do ponto de vista moral, quase
religioso. Do ponto de vista ético, estético, também. Mas o importante é
aquilo que tem valor para a vida, aquilo que é vital. O que acontece é
que para o homem, por comparação com o macaco, é importante a beleza de
uma rosa, o perfume de uma mulher. O que tem valor para a nossa vida não
é só o cheiro a cio.
Ou seja, não é só o aspecto pragmático. Também
é pragmático: isto permite escolher melhor, saber quem é a pessoa. A
selecção é muito mais complexa porque o número de dados que recolhemos é
muito maior.
Há muito mais variáveis em jogo. Muitíssimo
mais. Para um macaco interessa que a fêmea esteja receptiva. Para o
homem interessa que a mulher seja simpática, que goste dele; uma série
de coisas. Agora, o que acho que tem pouco interesse são esses valores
com sentido ético e moral. Como dizia um amigo meu que já faleceu: “O
que interessa na mulher são as características morais, mas se for bonita
ajuda”.
Pode dizer-se que é um optimista? Sou.
Acha que estamos a aperfeiçoar-nos? Sim,
não tenho dúvidas. Apesar de todos os defeitos, cada vez se vive
melhor. A curva da civilização é isto [desenha no papel uma curva], é
ascendente. Mas a ascensão na subida não é contínua, há ciclos. E depois
há a visibilidade social. Aqui há uns anos numa conferência com o Dr.
Jorge Macedo – o historiador que foi director da Torre do Tombo –, houve
uma coisa que não me agradou: ele falou muito da violência, referindo
que a violência era muito grande nas cidades. E eu disse-lhe: “Parece
impossível um professor de História estar a dizer-me isso; sabe melhor
do que eu que no tempo do Marquês de Pombal a média de assassinatos era
de um ou dois por dia em Lisboa, e Lisboa tinha cento e tal mil
habitantes. Hoje tem 600 mil e se calhar são dois ou três por mês”. Há
aqui um problema interessante: no tempo do Marquês de Pombal matava-se
uma pessoa no Rossio e em Alfama ninguém sabia; hoje matam uma pessoa em
Nova Iorque e logo à noite já sabemos. É uma ilusão, é um problema de
visibilidade social.
A visibilidade social tem a ver com um papel progressivamente maior dos media; os media são indutores de ansiedade? Não.
Isso é outra história. Fiz parte de um grupo de trabalho organizado
pela Maria Barroso, da Fundação Pro Dignitate. Fui um dos fundadores
daquilo. E ela tinha essa ideia: porque se mostram as mortes, as
revoluções? Isso não tem mal nenhum, a informação elucida as pessoas.
Mas ainda há tempos ouvi o professor Daniel Sampaio, que é um tipo
inteligente, dizer que não se podia falar do suicídio dos jovens porque
isso contaminava, induzia outros. Pelo contrário; sabendo as pessoas os
perigos que existem, não vejo perigo nenhum nisso. O perigo é não
informar.
Não vê sequer a possibilidade de isso contribuir para um acréscimo da ansiedade? Aí,
o que acho é que o grande modelo é a própria natureza. O que não
podemos é dar um acidente de automóvel e mostrar só o carro todo
esborrachado, um tipo a deitar sangue. É mostrar a cena toda, mostrar a
vida. Salientar só aquilo é que pode ser prejudicial e provocar grande
ansiedade.
Hoje
temos a ameaça terrorista, a ameaça dos vírus, agora a ameaça do
mosquito. Estamos a receber permanentemente estas doses de alarme… Já pensou que em vez de estarmos aflitos com o mosquito que transmite o Zika,
devíamos pensar que isso pode ser um processo de resolver as
dificuldades de proteínas, e começar a comer esses mosquitos num prato
especial? [risos]. Com manteiga, um bocadinho de mel...
Por qualquer razão não é nas proteínas do mosquito que as pessoas pensam em primeiro lugar. Mas podem começar a pensar nessa vantagem.
Se por absurdo tivesse à disposição uma máquina do tempo, para onde escolheria viajar? Para
o futuro. O passado passou, que é que ia fazer com o passado? Não
gostava nada de voltar atrás, gostava de ter mais 100 anos à frente. O
bife que me interessa é o que vou comer logo à noite, não é o que comi
ontem [risos].
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Fonte: Site de Portugal: http://www.publico.pt/sociedade/noticia/-1723592?frm=esp
O cientista político equatoriano diz que
a derrota de Evo Morales no referendo sobre a reeleição na Bolívia não
implica a reprovação do seu governo pelos bolivianos
TERESA PEROSA
Adversários e críticos do governo do presidente boliviano Evo Morales
comemoraram a derrota sofrida no referendo convocado por ele, realizado
no último dia 21, e que poderia lhe garantir uma terceira reeleição – e
um quarto mandato. Seria mais uma derrota dos governos bolivarianos, na
esteira da saída de Cristina Kirchner da Casa Rosada argentina e da
vitória da oposição nas eleições parlamentares da Venezuela. O professor
equatoriano Adrián Bonilla pondera que o revés de Evo –
e da esquerda latino-americana – não deve ser superestimado. “Ninguém
pode dizer de maneira certeira que a esquerda na Bolívia não voltará a
ganhar as eleições em quatro anos, ou em outros países. O que temos é
sim é uma recomposição do cenário eleitoral”, afirma. Bonilla é doutor
em Relações Internacionais pela Universidade de Miami e secretário-geral
da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso).
Em entrevista a ÉPOCA, Bonilla falou sobre os resultados do referendo
na Bolívia, o governo de Morales e o estado atual da democracia e da
esquerda na América do Sul.
ÉPOCA - Entre os países da América do Sul que têm governos de
esquerda, a Bolívia é a que continua com o melhor desempenho,
considerando as taxas de crescimento e de desemprego, além do ritmo de
investimentos estrangeiros no país. O presidente Evo Morales também
sustenta índices de aprovação positivos. A derrota no referendo do
último dia 21 é evidência da fadiga do eleitor boliviano com a liderança
de Morales e com o seu partido, o Movimento ao Socialismo (MAS)?
Morales começa a sentir o desgaste depois de 10 anos no poder?
Adrián Bonilla – Creio que existem várias coisas. Se alguém
compara os resultados do referendo com as altas taxas de aprovação da
gestão governamental na Bolívia e com a popularidade da imagem do
presidente vai perceber que a aprovação da gestão e a popularidade de
Evo Morales são superiores à votação alcançada. Uma explicação pode ser
que os eleitores bolivianos não estavam de acordo com a ideia de abrir
de forma indefinida a reeleição presidencial. Então, o conceito de
eleição indefinida provavelmente é a questão contra a qual votaram os
eleitores bolivianos, independentemente de que alguns deles tenham sido
motivados pela imagem do presidente. Foi o conceito de reeleição que
perdeu, não necessariamente o presidente Morales, ainda que sua imagem
estivesse vinculada a essa campanha.
ÉPOCA – Depois de duas reeleições, a oposição boliviana também
não conseguiu emplacar um candidato para se opor ao MAS. Isso corrobora
essa ideia de que a rejeição dos eleitores bolivianos foi à reeleição,
não ao projeto político?
Bonilla – Não era um referendo revocatório ou aprobatório do
presidente Morales. Por isso, a rejeição concreta foi à ideia da
reeleição. A oposição efetivamente está fragmentada, mas também me
parece ser muito cedo falar sobre vitória ou derrota, porque transcorreu
apenas um ano do mandato de Morales. Faltam quatro anos para as
próximas eleições. Isso é muito tempo e é muito difícil com tanta
antecipação começar a pensar em candidaturas.
ÉPOCA – Quem disse não para Morales?
Bonilla – O que saiu da votação é que a população urbana das
cidades votou pelo não, de forma majoritária. O presidente Morales
continua sendo muito popular no mundo rural, no campo. Essa é a primeira
observação evidente. A segunda é que as províncias do oriente
boliviano, aquelas que sempre tiveram uma agenda que tem mais a ver com
autonomia, voltaram a votar contra as teses do presidente. Foi
reconstituído o antigo mapa boliviano em que as províncias centrais e do
oeste - La Paz, Cochabamba, Oruro, etc - votam de uma maneira, e o
oriente, a planície amazônica e tropical votam de outra maneira. A
divisão histórica da Bolívia voltou a ser evidente. Não temos ainda
dados que nos permitam analisar como foi a votação por segmento social. O
que foi mais evidente é que a cidade e o oriente votaram pelo não,
enquanto o presidente Morales sustenta uma alta votação no campo e nas
províncias centrais.
ÉPOCA – Isso é uma evidência de polarização do eleitorado boliviano?
Bonilla – A polarização não é só um fenômeno boliviano
contemporâneo. É um fenômeno latino-americano e tem a ver algumas
explicações. Há polarização na Venezuela, houve polarização na
Argentina, há polarização no Brasil. O que ocorre na Bolívia não é
excepcional. E não é deste momento, mas desde o princípio da
administração de Morales. O que ocorre é que, até este momento, o polo
de oposição era bastante menor e insignificante em relação à quantidade
de votos que as forças que aprovavam o presidente Evo Morales.
ÉPOCA – Analistas argumentam que a esquerda não é uma só na
América Latina. Alguns economistas apontam duas tendências: uma
"bolivariana", baseada em forte intervenção do Estado na economia –
casos da Venezuela, Equador e da Argentina kirchnerista. Outra mais
"liberal", que combinaria políticas econômicas ortodoxas com programas
sociais, como Peru, Chile e a Bolívia de Evo Morales. O que acha dessa
divisão?
Bonilla – Há várias formas de classificar a esquerda. Uma
delas tem a ver com o manejo da economia. Mas me parece que não há uma
tendência homogênea. Creio que cada país, independentemente do governo,
maneja a economia de acordo com os recursos e a capacidade do Estado de
conseguir regulá-la. A Venezuela não se parece com nenhum outro país.
Não se pode dizer que o manejo econômico da Venezuela seja igual ao do
Equador, ou ao do Brasil, ou ao da Bolívia, para citar os governos de
esquerda mais identificáveis na América do Sul. Há questões também de
ordem internacional. Aqueles países que se agrupam na Alba (Aliança
Bolivariana para os Povos da Nossa América) têm uma forma de compreender
a ordem internacional que não coincide necessariamente com outros
países que tem governos que se identificam com a esquerda.Então creio
que, para resumir, há várias maneiras de classificar a esquerda e ela
não é homogênea na América do Sul.
ÉPOCA – Essa divisão entre a esquerda bolivariana e liberal seria simplista, na sua opinião?
Bonilla – Pela maneira como se manejam os recursos econômicos,
é muito simplista,sim.Tende-se a superdimensionar o modelo venezuelano,
que só se aplica à Venezuela. Os outros países não se identificam com
ele.
ÉPOCA – Alguns analistas também argumentam que a esquerda com
tendências mais liberais na economia teria dado certo, dado que a
situação das contas públicas no Chile, na Bolívia e no Peru é positiva,
com crescimento econômico e inflação baixa. O senhor concordaria com
essa avaliação?
Bonilla – Creio que o Peru não faz parte dos governos que se
identificam com a esquerda. E me dá a impressão que o raciocínio se
aplica de forma contrário: naquelas economias mais prósperas uma
esquerda mais liberal se adaptou melhor. No Uruguai, na Argentina, no
Chile temos um dos modelos mais liberais em termos de direitos, de
mobilização, de expressão, por várias razões. Uma delas foi a
experiência ditatorial nos anos 1970 e 1980. Outra razão é que são
historicamente sociedades mais prósperas que as do arco andino, por
exemplo. E creio que o caso venezuelano é ó único caso visível de crise
geral, política e econômica. No caso do Equador, por exemplo, o país
está enfrentando de forma dramática uma redução das divisas como
consequência da dolarização que é uma política extremamente liberal, mas
que o governo persiste em sustentar. Então esses casos não me parecem
comparáveis. Por causa das circunstâncias extremas do entorno
internacional e da ausência de moeda, o Equador está fazendo o possível
para superar essa crise. Não creio que se trate de um fracasso da
política econômica e sim de um contexto internacional duro. O caso da
Venezuela é distinto, porque há um programa econômico que foi dilatado
em sua adoção. Da mesma maneira, a economia boliviana, cujo presidente
tem um discurso radical, se viu menos afetada que outros pela crise das
exportações de bens primários.
ÉPOCA – Por quê?
Bonilla – A Bolívia é menos vulnerável, porque não depende
tanto de suas exportações e porque tem uma sociedade que se globalizou
menos que as outras. Assim como o Paraguai.
ÉPOCA – Os críticos do modelo bolivariano dizem que a derrota
de Morales é mais um sinal do enfado do eleitor com a esquerda na
América do Sul. Estaríamos próximos do fim de um ciclo na região, em
termos da esquerda no poder?
Bonilla – Estamos diante de um cenário diferente. Da mesma
maneira que a chegada de vários governos de esquerda na América Latina
não acabou para sempre com as forças que vão do centro até a direita,
este é um momento do ciclo em que as forças de esquerda não têm o êxito
que antes tiveram. Isso não significa, porém, que elas vão desaparecer.
Seguem sendo muito fortes. Ninguém pode dizer de maneira certeira que a
esquerda na Bolívia não voltará a ganhar as eleições em quatro anos, nem
pode afirmar sobre um resultado distinto no Equador, ou em outros
países. O que temos é sim é uma recomposição do cenário eleitoral, não é
um "fim da história". Nós temos uma esquerda sul-americana, sobretudo,
que vai permanecer como um ator político muito forte em seus países e
uma direita que tampouco terminou ou foi extinta durante o triunfo de
mais de uma década da esquerda. Isso não pode ser compreendido sem
entender que também que há um novo ciclo econômico em toda a América do
Sul, que se caracteriza pela estagnação dos índices de crescimento.
ÉPOCA – É culpa exclusiva da situação econômica e das políticas nessa área?
Bonilla – Creio que sim. Trata-se de um problema de economia,
mas também de um problema de política. O caso boliviano é ilustrativo,
porque a economia da Bolívia está, nos seus indicadores, bastante melhor
do que o resto dos países da América Latina. No entanto, se alguém
olha, por exemplo, para o que acontece no Peru, onde tivemos mudanças de
governo constantes, onde a votação nos últimos 20 anos tem dado as
costas ao governo que acaba seu mandato, de todas as tendências, é algo
que precisa ser relativizado. Na Argentina, o triunfo de Macri foi muito
apertado, como acaba de ser na Bolívia. Então nada disso nos leva a
presumir que tenhamos um cenário sem esquerda nos próximos anos, mas que
teremos um cenário em que as forças políticas estão mais equilibradas.
Perder por dois pontos em 100% de votantes não é uma tragédia pra
ninguém. Não foi na Argentina e não foi na Bolívia.
ÉPOCA – Até que ponto esse revés que sofreu Evo Morales,
seguido da derrota do kirchnerismo na Argentina e da derrota do chavismo
nas últimas eleições parlamentares na Venezuela, representa a adesão
das populações a políticas econômicas liberais?
Bonilla – É difícil dizer que haja um voto nessa direção
porque nas campanhas o tema da economia sempre está ocultado por outros
temas. Ninguém pode afirmar certeiramente que os eleitores argentinos
votaram por uma proposta econômica, porque este não foi o tema, ao menos
do presidente (Mauricio) Macri. Foram outros os elementos simbólicos
que motivaram sua campanha. O que é necessário entender é que os
eleitores de toda a região estão buscando renovação, mudança. E isso é
lógico de se entender, independentemente das ideologias dos governos,
pelo momento de estagnação econômica, que se expressa na recessão de
economias importantes da América do Sul.
ÉPOCA – O resultado do referendo do último domingo se refletirá
de alguma maneira nas eleições presidenciais de 2020 na Bolívia?
Bonilla – É difícil adivinhar. O que segue evidente é que o
conjunto das políticas públicas bolivianas e da ação do partido do
governo MAS girou ao redor da fortaleza e da figura do presidente
Morales. O uso simbólico da figura do presidente perdeu força nessa
eleição.As forças que o respaldam precisam buscar outras pessoas, outros
nomes e outros motivos mobilizadores. Isso parece evidente. Mas eu acho
que uma votação de 49% não significa necessariamente que o movimento do
governo será derrotado nas próximas eleições. É um cenário aberto.
Podem ganhar ou perder.
ÉPOCA – Esse resultado terá algum impacto na situação política da região?
Bonilla – Sim, claro. O que temos nesse momento em toda a
região é um um cenário de maior heterogeneidade. O presidente Morales
era um dos líderes de maior prestígio da esquerda latino-americana e
sul-americana e esse é um golpe político que se refletirá
internacionalmente. No entanto, a agenda de entidades como a Unasul ou a
Celac sempre se constrói por consenso. De maneira que o peso do voto de
um presidente é muito relativo porque os temas de interesse coletivo
multilateral na América do Sul requerem unanimidade. Obviamente há algum
tipo de impacto, mas na prática isso não será notado.
ÉPOCA – Em alguns países da América do Sul, as instituições
democráticas parecem mais fortes que em outros. Por que isso acontece?
Bonilla – Eu não estou seguro de integrar a Argentina nas
democracias que tem debilidade institucional. Desde a substituição do
presidente De La Rua, há estabilidade. O que acontece é que a política
argentina tem uma retórica muito forte. Mas se alguém observa a
fortaleza das instituições, não houve nenhuma grande erosão. Há um
debate intenso entre os atores políticos, mas não há perigo de golpe de
Estado ou nada do estilo. Não há sequer conflito entre os poderes
Executivo, Legislativo e Judiciário. Não colocaria a Argentina nesse
grupo. Temos democracias estáveis de larga data em vários países da
região, com grandes conflitos. Esse é o caso da Colômbia. Se crermos que
a América Latina é maior que a América do Sul, temos democracias muito
estáveis, como a da Costa Rica que tem sido muito estável. Ela é
provavelmente a mais estável no continente em termos históricos, assim
como a do Uruguai. Eu acho que, em termos gerais, as crises política e
econômica afetam muitos poucos países. Dentro da América do Sul, o caso
mais dramático é o da Venezuela. Mas não encontro outro na região nessa
situação. Na Bolívia, acabamos de ter um referendo para resolver um
problema constitucional importante. P povo votou e foi resolvido o
problema. E não tivemos cenários dramáticos em outros países nos últimos
anos. Se compararmos a América Latina deste momento, da segunda década
do século XXI, com a dos anos 1980 e 1990 do século XX, vamos perceber
que a situação é bem melhor em termos de estabilidade institucional.
ÉPOCA – O resultado do referendo, seguido do anúncio do
presidente Morales de que aceitava a decisão, são indicativos positivos
do estado da democracia na Bolívia e na região?
Bonilla – A aceitação do resultado por parte do presidente
Morales expressa a vigência da institucionalidade boliviana e da
democracia e seus instrumentos para dirimir a política, ainda que em
contextos de alta polarização. Que um tema de importância suprema, como é
o da reeleição, tenha sido resolvido em um referendo, com consulta ao
povo, envia uma mensagem positiva para o conjunto da região.
Depois que nos enamoramos de um desafio, ele vai
possuir nossa mente, como qualquer paixão.
Fala-se
muito em foco, em concentração, dando a ideia de que na busca de uma
solução para um problema deveríamos centrar nele o pensamento. Sim e
não, às vezes é justamente quando nos distraímos que a questão pode usar
todos os recursos de nosso cérebro e achar a saída do labirinto. Como
sou muito avoada, passei a vida lutando para prestar atenção no que
devia. Por isso mesmo, custei a entender que era preciso relaxar para
criar.
Costuma acontecer que na distração aconteçam as melhores
ideias. Quando travo no momento de escrever, é hora de ir para baixo da
água! Lá, invariavelmente, vem uma solução, calmamente, sem precisar
persegui-la. Uma frase redonda, aquela abordagem para um tema árduo que
já tinha desistido de procurar. Por alguns anos achava que a mágica
morava na minha banheira, até que fiquei sem ela e descobri que a pausa é
a dona do segredo.
Já recorri a soluções piores, fui tabagista,
uma forma péssima de fazer pausas. Mas o que têm em comum tomar um banho
e fumar? No banho, cantamos sem preocupação com quem ouve, para
tristeza dos que escutam, diga-se. Há quem ria sozinho das piadas que
faz para si mesmo. As crianças cantarolam, fazem vozes, brincam por
horas. Tomar banho é sempre uma forma de cair dentro de si; fumar
também. Significava sair de cena, mesmo quando se fica no mesmo
ambiente.
Como psicanalista, se ficar prestando atenção no que
dizem meus pacientes focada em um esforço racional de coerência e de
teorização, provavelmente farei apenas interpretações banais e inúteis. A
novidade, necessária para desvendar seus impasses, surpreende tanto a
mim quanto a eles: é uma palavra que soa diferente, um ponto de vista
inusitado. Freud chamava isso de “atenção flutuante”, um tipo de escuta
distraída e empática para o qual nos preparamos.
Para a grande
maioria dos distraídos, há um elemento essencial, que faz diferença para
que nos tornemos capazes de pensar algo que preste: é preciso
importar-se com o problema, a questão, a tarefa. Não se trata de
qualquer devaneio, ir janela afora atrás da borboleta azul, mas, sim, de
fazê-lo possuído, envolvido com alguma tarefa. É fato que por trás da
capacidade de concentrar-se está, sim, a possibilidade de relaxar, de
fazer pausas, seja um banho ou fazer como uma amiga, que lava louça
nessas ocasiões. Porém, a premissa é de que haja uma entrega. Portanto, o
segredo encontra-se na motivação, a qual só surge quando algo nos diz
respeito, nos agrada, envolve. Não é uma questão hedonista, de só fazer o
que se gosta, mas, sim, de fazer as coisas da forma menos alienada e
burocrática possível. Depois que nos enamoramos de um desafio, ele vai
possuir nossa mente, como qualquer paixão.
------------------------- *Psicanalista . dianamcorso@gmail.com Fonte: http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a4985422.xml&template=3898.dwt&edition=28481§ion=1012 Imagem da Internet
1.Quando regressou a casa, depois
da cimeira europeia em que conquistou um “estatuto especial” para o seu
país, David Cameron declarou o seu amor à pátria e esclareceu que não
amava Bruxelas. Muita gente se espantou com o sound-bite
do primeiro-ministro britânico, interpretando-o como um sinal, mais um,
do seu total desapego pela integração europeia, uma espécie de pecado
original que o Reino Unido trouxe para a Europa desde que aderiu. Uma
segunda linha de comentários foi mesmo no sentido de que a saída do
Reino Unido seria uma espécie de bênção para a Europa, que poderia
libertar-se da “chantagem” britânica e regressar aos seus valores
fundamentais, preservar o seu modelo social, restaurar a solidariedade e
prosseguir o caminho de uma “ever closer union”,
como dizem os tratados. Felizmente, nem o PS nem o PSD vêem a presença
do Reino Unido na Europa dessa maneira. Como disse o primeiro-ministro
em Bruxelas, para Portugal a paisagem europeia sempre incluiu e continua
a incluir o Reino Unido.
Mas a “falta de amor” de que
acusam Cameron merece uma reflexão pelo que significa sobre o que é a
União Europeia hoje, precisamente quando atravessa a sua mais grave
crise existencial, na confluência de muitas crises: da dívida e da
divergência económica, aos refugiados e à segurança, passando pelo seu
lugar num mundo cada vez mais multipolar e em profunda desordem. Não
vale a pena idealizar uma União Europeia que já não existe nem, muito
menos, diabolizar um dos seus membros. A Europa foi construída, desde o
seu início, pela razão contra a barbárie (sim, a nossa maravilhosa
Europa nasceu da barbárie em solo europeu). A razão não desperta emoções
e, por isso, é difícil de amar. Mas a História europeia é um verdadeiro
cardápio sobre a forma como as emoções e os mitos nacionais
(verdadeiros ou inventados) podem matar a razão. É essa a experiência da
Europa na primeira metade do século XX, quando duas “guerras civis”
quase a destruíram e quando um pequeno número de visionários, de Robert
Schuman a Alcide De Gasperi passando por Jean Monnet ou Winston
Churchill, decidiu que o melhor caminho para impedir mais guerras em
solo europeu era ir contra a própria História, criando um projecto de
integração política capaz de deslegitimar o nacionalismo. Fizeram-no,
cinco anos depois do fim da II Guerra, quando as marcas da barbárie
ainda estavam demasiado vivas. Fizeram-no também pelo impulso dos
Estados Unidos. Fizeram-no a partir da mais improvável das alianças,
entre a França e a Alemanha Ocidental. Fizeram-no, finalmente, a partir
do único critério seguro para afastar a guerra, que é o critério da
democracia. A Comunidade foi a obra de uma elite europeia corajosa e
lúcida que soube colocar a razão acima da História, provando que o
determinismo pode ser vencido. A ameaça soviética ajudou a consolidar a
integração europeia e a fortalecer a aliança transatlântica. Feitas as
contas, foi um tremendo sucesso que abriu as portas à prosperidade e à
paz.
2.Quando o Muro caiu e a União Soviética implodiu, foi
preciso encontrar uma nova razão para a Comunidade Europeia. De repente,
a perspectiva de uma grande Alemanha unificada de novo no coração da
Europa fez abalar algumas convicções e recordar alguns velhos demónios.
Foi, de novo, graças à obra de visionários, como Kohl ou Mitterrand, e
ao empenho dos Estados Unidos que a Europa conseguiu sobreviver.
Maastricht e o euro foram, uma vez mais, uma decisão política capaz de
moldar o rumo dos acontecimentos. A razão vencia de novo os medos e as
emoções. Apesar da guerra nos Balcãs, o regresso da História ficaria
adiado e o futuro parecia magnífico, graças à vitória do Ocidente que
pôs fim à Guerra Fria e ao início da globalização económica. As
economias ricas chegaram a acreditar que os ciclos económicos tinham
desaparecido perante o milagre da expansão dos mercados. O “fim da
História” de Fukuyama parecia ser possível. Por uma década, a integração
europeia transformou-se num exemplo para o mundo. Durante algum tempo,
entre Maastricht e o chumbo da Constituição (2005), a Europa tornou-se
ela própria numa ideologia. Em Paris, Londres (com Blair), Berlim,
Lisboa ou Madrid, a Europa era um programa político que o
centro-esquerda e o centro-direita partilhavam. Durou pouco, como durou
pouco o anunciado fim da História.
A queda das Torres Gémeas e a
queda do Lehman Brothers vieram pôr tudo em questão. A globalização
revelou-se mais útil para as potências emergentes do que para as
potências estabelecidas. O unilateralismo americano dividiu os aliados
europeus. A crise financeira fragmentou a união monetária, abrindo as
portas à crise da dívida. A Alemanha viu nisso uma possibilidade de
recriar o euro à sua imagem e semelhança, ignorando as suas
consequências politicas. Hoje, os egoísmos nacionais dominam a política
europeia, como a crise dos refugiados (mais ainda do que a crise do
euro) o prova todos os dias. As emoções estão a vencer a razão e o
nacionalismo, mesmo que ainda em forma mais ou menos benigna, envenena
de novo a integração europeia. Não é um problema de Cameron, apesar de
todos os seus erros. Racismo, xenofobia, medo do outro, passaram a ser
de novo moeda corrente. As fronteiras reerguem-se e os muros também.
Esta é a Europa que temos hoje, da qual só podemos sair se a razão
política voltar a dominar as pulsões nacionais.
3.Olhando para a
campanha de Cameron em favor do sim à Europa, até se poderia dizer que o
líder britânico ama mais a Europa do que se poderia esperar.
Finalmente, as verdadeiras razões que justificam ficar dentro foram
assumidas com total clareza, substituindo a imigração ou a “soberania”
ou os arranjos técnicos que negociou com os seus pares. Cameron já disse
que a influência britânica no mundo seria menor, que a segurança do seu
país e o combate ao terrorismo ficariam prejudicados, que a economia
britânica perderia milhares de empregos e o acesso ao Mercado Único
teria de ser negociado numa posição de fraqueza. A ele, juntou-se um
vasto coro de adeptos, desde os chefes militares aos grandes
empresários. Tudo isto devia ter dito antes da negociação em Bruxelas.
No dia 23 de Junho saberemos se foi demasiado tarde.
Os seus parceiros europeus não quiseram esticar a corda. Não há tripés
de duas pernas. O triângulo entre Paris, Londres e Berlim é fundamental
para a capacidade europeia de influenciar o mundo e para a coabitação
entre visões distintas sobre o que deve ser a Europa que são
necessárias.
4.Hoje, a crise dos refugiados tornou-se a prova de vida da integração europeia. O Monde escrevia a toda a largura da sua primeira página: “Refugiados: a Europa desintegra-se”. A cimeira europeia para encontrar uma solução,
marcada para o dia 7 de Março, pode ser o limite a partir do qual já
não haverá solução para preservar Schengen. Os rostos das crianças que
choram de medo junto a mais um arame farpado já não são suportáveis. A
destruição da Síria atinge uma dimensão diabólica. A Europa e os Estados
Unidos parecem totalmente impotentes perante esta catástrofe humana. Em
Shangai, os ministros das Finanças do G20, para além de avisarem para
as repercussões económicas globais de uma saída do Reino Unido, parecem
repetir o guião do início da crise financeira de 2008, defendendo a
utilização de todos os meios ao alcance dos Governos para intervir nos
mercados, para evitar nova descida aos infernos. A Alemanha opõe-se.
Os analistas admitem que esta nova crise pode não ser tão má como a de
2008 porque há novos instrumentos para a conter. Enquanto tudo isto
acontece, Bruxelas dorme sobre uma Europa de outro tempo, enquanto a
actual se desmorona.
Eddie Redmayne no Bafta 2016, em Londres (Foto: John Phillips/Getty Images/VEJA)
Acho que nunca vou me acostumar com o meu Oscar. Sempre que vejo a estatueta, parece brilhante demais para ser real"
Se Eddie Redmayne levar o Oscar de melhor ator neste domingo, por A Garota Dinamarquesa, repetirá o feito de Tom Hanks, que fez uma dobradinha em 1994 e 1995 por Filadélfia e Forrest Gump - O Contador de Histórias.
O inglês de 34 anos ganhou no ano passado por sua interpretação
detalhista do astrofísico Stephen Hawking, um dos maiores gênios do
mundo, portador de esclerose lateral amiotrófica, no filme A Teoria de Tudo.
Fato que uma nova vitória é difícil, já que Leonardo DiCaprio parece o
grande favorito na categoria. Mas não deixa de ser um feito para o jovem
Redmayne.
Como em seu filme anterior, aqui ele também enfrentou desafios
físicos. O ator vive o pintor dinamarquês Einar Wegener (1882-1931), que
assumiu a identidade de Lili Elbe e mais tarde se tornou uma das
primeiras pessoas do mundo a passar por uma cirurgia de mudança de sexo,
sempre com o apoio de sua mulher, a também pintora Gerda Wegener
(Alicia Vikander, indicada ao Oscar de atriz coadjuvante).
Não é a primeira vez que Redmayne faz uma mulher. Em seu primeiro
trabalho como ator profissional, ele foi Viola numa montagem da peça Noite de Reis,
de William Shakespeare. Nascido em Londres, filho de um banqueiro e de
uma empresária, frequentou a prestigiosa escola particular Eton, no
mesmo ano do Príncipe William. Depois, formou-se em história da arte
pelo Trinity College da Universidade de Cambridge. Além do Oscar, ganhou
um Olivier e um Tony por sua participação na peça Red. No cinema, foi dirigido por Robert De Niro em O Bom Pastor (2006), foi filho de Julianne Moore em Pecados Inocentes (2007) e cantou em Os Miseráveis, dirigido pelo mesmo Tom Hooper de A Garota Dinamarquesa. O ator conversou com o site de VEJA em um hotel em Londres, onde mora.
Gosta de se ver como mulher? Foi interessante o
primeiro dia em que apareci no set como Lili. Lembro do olhar dos
membros da equipe. Eu me senti escrutinado, e que o truque só funcionava
em determinados ângulos e sob certa iluminação. Ser observado e julgado
daquela forma realmente me deixou nervoso. E muitas mulheres trans
descrevem esse mesmo sentimento quando se revelam, o peso desse
julgamento. Para elas, ainda há o medo da violência. Eu estava
completamente seguro. Mas havia esse desconforto do olhar masculino. E
as mulheres que conheço me disseram: "Pois é, bem-vindo ao nosso
mundo!". Foi uma revelação interessante.
O
ator britânico Eddie Redmayne no filme 'A Garota Dinamarquesa', em que
interpreta Lili Elbe.
O sorriso é uma parte tão integral da sua personagem. Foi seu ponto de entrada?
Certamente encontrar seu sorriso me pareceu importante. Mas para mim o
ponto de entrada é quando ela vai ao guarda-roupa da ópera, fica nua e
descobre seu corpo e a si mesma, inclusive seu sorriso. Fico admirado
com sua capacidade de sorrir. Depois de tudo o que ela passou, pois sua
transformação teve um custo alto, o sorriso significava a alegria de
encontrar a si mesma.
Houve algum momento em que percebeu que estava pronto? Não. Eu nunca sinto que estou pronto, que estou no lugar certo. A aspiração é pela perfeição sabendo que jamais vou chegar lá.
Mas como tem a autoconfiança necessária? Muitas
coisas me ajudaram no caminho. Conversei com uma mulher trans em Los
Angeles, cuja parceira ficou com ela ao longo de toda a transição. Ela
me falou uma coisa muito importante: que daria absolutamente tudo para
viver sua vida de maneira autêntica. Ser você mesmo parece a coisa mais
simples do mundo, deveria ser um direito humano. Mas, quando para ser
você mesmo é preciso passar pelo que Lili atravessou, seu parceiro ou
parceira precisa fazer a transição também. Essa pessoa em Los Angeles
sempre se perguntava qual era o nível de empatia da sua parceira. A Garota Dinamarquesa é uma exploração do amor. E do amor sendo algo além do gênero, dos corpos ou da sexualidade, mas entre almas.
Sabia alguma coisa da questão transgênero? Para mim
foi toda uma educação. Eu era incrivelmente ignorante quando comecei a
pesquisa. Muitas coisas eu entendia errado. Por exemplo, relacionava
gênero e sexualidade. E você pode ser um homem que faz a transição para o
gênero feminino e continua atraído por mulheres, por exemplo. Ou não.
Também achava que as pessoas trans precisavam obrigatoriamente ter
passado por alguma transformação física. E não é o caso. Tem a ver
puramente com o que você é na sua alma e na sua mente. Foram coisas que
eu aprendi.
Acha que o filme pode contribuir para a aceitação das pessoas trans? Nunca presumiria algo assim. Espero que A Garota Dinamarquesa
faça as pessoas sentirem o que eu senti: que era uma história de amor
única e profunda. Mas também é um filme sobre autenticidade. O que me
chocou quando li o roteiro é que faz quase cem anos que Lili e Gerda
viveram, e as pessoas como Lili ainda sofrem discriminação e violência.
Não houve grande progresso. Você pode ser demitido na maior parte dos
estados americanos por ser trans. Os índices de violência contra pessoas
trans, especialmente mulheres trans negras, é insano. E, ainda assim,
faz só uns dois ou três anos que a discussão sobre assunto tornou-se
mais pública. Se o filme puder, de qualquer maneira, continuar essa
conversa, seria maravilhoso. Mas não presumo que isso vá acontecer.
Você interpretou Stephen Hawking, que está vivo, com perfeição. Como foi replicar Lili, uma pessoa que nunca encontrou?
Primeiro, aceitei que não seria uma imitação. Vi fotos de Lili, não
pareço em nada com ela. E como é uma interpretação da história, não é um
registro histórico, me senti mais livre. Com Stephen foi diferente,
sabia que ele assistiria ao filme. A verossimilhança era necessária.
Aprendeu alguma coisa de sua mulher (a executiva de relações públicas Hanna Bagshawe) quando estava fazendo Lili?
Claro que a observação é muito importante, sempre. Não fiz muito,
talvez um pouco sorrateiramente. Foi interessante porque na outra noite,
antes de sairmos, ela estava passando rímel. E falei para Hannah que
tinham me perguntado tantas vezes se eu tinha observado quando ela
passava maquiagem, mas eu estava sentindo como se estivesse vendo pela
primeira vez! (risos)
Você teve de interpretar uma mulher na mesma época em que estava se casando. Foi estranho?
A cronologia foi apenas coincidência. Eu tinha aceitado fazer o filme
três ou quatro anos atrás. Só que o financiamento demorou esse tempo
para sair. Parecem coisas relacionadas, mas não sei... Deus, agora vou
ter de ir ao psicólogo!
Era possível deixar Lili na porta do estúdio e voltar inteiro como Eddie para casa?
Não sou um ator que fica no papel, geralmente. Acho que sou bom em
deixar o personagem fora de casa. Mas de vez em quando minha mulher diz
que há fantasmas de partes de personagens que ficam comigo, que eu não
vejo. Acho interessante essa ideia de que as cinzas de todas essas
pessoas que interpretei podem permanecer ao meu redor.
Então ela é casada com várias pessoas? Meio isso, sim!
Fico imaginando a cara dos seus pais, um banqueiro e uma empresária, quando você disse que queria ser ator.
Eles sempre me apoiaram. Meu pai, que está acostumado a lidar com
probabilidades, ficou preocupado porque não é fácil conseguir trabalho
como ator. Mas, se eles tiveram medo, sempre esconderam por baixo do
apoio que me deram.
Como se sentiu ao receber a Ordem do Império Britânico sendo tão jovem?
Foi incrível. E tão estranho! Porque com o Oscar você é indicado e aí
sabe que tem chances de ganhar. Aqui, não. De repente, você recebe uma
carta dizendo que vai receber a ordem! Com o papel timbrado da realeza.
Foi um susto.
Já se acostumou com seu Oscar? Não, acho que nunca vou me acostumar com o meu Oscar. Sempre que vejo a estatueta, parece brilhante demais para ser real.
Onde ela fica na sua casa? Na sala, perto de um sofá.
Sabia que existe um livro de colorir sobre você? Não!
E tem o Benedict Cumberbatch também. Sério? Então dá
para colorir nós dois? Vou dar para minha mãe de presente. Se bem que
ela provavelmente vai preferir apenas o do Benedict!
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Reportagem por Mariane Morisawa, de Londres - Atualizado em