domingo, 30 de junho de 2019

Confissões do Papa Francisco. 1

Anselmo Borges*

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1. "O que está em crise são estruturas que formam a Igreja, que têm de cair. Sejamos conscientes. O Estado da Cidade do Vaticano como forma de governo, a Cúria, seja o que for, é a última corte europeia de uma monarquia absoluta. A última. As outras já são monarquias constitucionais, a corte dilui-se, mas aqui há estruturas de corte que são o que tem de cair." "A reforma não é minha. Foram os cardeais que a pediram", quando se debatia a sucessão de Bento XVI.

Quem disse isto foi o Papa Francisco numa extensa entrevista à jornalista Valentina Alazraki, de Noticieros Televisa, México. Os temas debatidos, num imenso à-vontade, mesmo quando difíceis e até escaldantes, foram muitos.

2. O que aí fica quer ser um brevíssimo resumo desse longo diálogo leal, onde não faltou o bom humor.

2. 1. Um tema constante nas preocupações de Francisco: os migrantes e refugiados. Não se pode pretender resolver os problemas erguendo muros, como se "essa fosse a defesa. A defesa é o diálogo, o crescimento, o acolhimento e a educação, a integração ou o limite saudável do "não é possível acolher mais", saudável e humano." Referindo-se a Trump, disse: "Pode-se defender o território com uma ponte, não com um muro."

2. 2. Algo não funciona em relação à economia, que se tornou sobretudo economia da especulação financeira: "Já saímos do mundo da economia, estamos no mundo das finanças. Onde as finanças são gasosas. O concreto da riqueza num mundo de finanças é mínimo." Então, o mal-estar provém desta constatação: "Cada vez há menos ricos, menos ricos com a maior parte da riqueza do mundo. E cada vez há mais pobres com menos do mínimo para viver."

Francisco pronuncia-se contra uma economia neoliberal de mercado. É favorável a "uma economia social de mercado".

Aqui, eu acrescentaria: economia social e ecológica de mercado e chamaria a atenção para as tremendas, se não insuperáveis, dificuldades para impô-la, apesar da sua urgência em ordem à sobrevivência. Porquê? Num mundo globalizado, os mercados são globais, mas a política é nacional ou regional. Nesta situação, onde estão as instâncias de regulação dos mercados? Francisco sabe disso e, por isso, acrescenta que é necessário "procurar saídas políticas, eu não as sei dizer, porque não sou político. Não tenho esse ofício. Mas a política é criativa. Não nos esqueçamos que é uma das formas mais altas da caridade, do amor, do amor social."

Em conexão e interdependência com este mal-estar global da economia está "o maltrato do ambiente". Francisco tem sido incansável no apelo a uma nova política para a salvaguarda do ambiente, se quisermos ter futuro. E até pergunta: será que ainda vamos a tempo de salvar "a nossa casa comum"? Sobre a ameaça do colapso ecológico, escreveu uma encíclica, Laudato Sí, que fica para a História como decisiva, propugnando o que chamou justamente "uma ecologia integral". Neste sentido, o Vaticano acaba de avançar com uma iniciativa ecuménica global de oração e de acção precisamente em ordem à protecção desta nossa casa comum: durante um mês, de 1 de Setembro a 4 de Outubro, chamado o mês do "Tempo da Criação", os cristãos de todo o mundo são convocados para pôr em prática a Laudato Sí.

2. 3. Sobre o narcotráfico: "É como se eu, para ajudar a evangelização de um país, fizesse um pacto com o diabo..., ou seja, há pactos que não se podem fazer."

2. 4. Os jovens? "Os jovens não estão corrompidos. Estão debilitados." "A juventude corre o risco de, se é que o não fez já, perder as raízes." E cita Zygmund Bauman, num livro escrito em italiano com um seu assistente italiano, com o título: Nati liquidi, nascidos líquidos, isto é, sem consistência. No alemão apareceu com o título: Die Entwurzelten, os desenraizados, os sem raízes. "Os alemães perceberam a mensagem do livro. Isso é muito importante hoje: ir às raízes", o que nada tem a ver com "ideologia conservadora." "Assumir as raízes normais, as raízes da tua casa, as raízes da tua pátria, da tua cidade, da tua história, do teu povo..., de ... mil coisas." Por isso, acrescenta: "Eu aconselho sempre os jovens a falar com os velhos e os velhos a falar com os jovens, porque... uma árvore não pode crescer, se lhe cortarmos as raízes, como também não cresce, se ficarem só as raízes."

2. 5. As mulheres? Reconhece que a mulher "está ainda em segundo lugar... em segundo lugar." Mas "sem a mulher, o mundo não funciona. Não por ser ela que gera os filhos, deixemos a procriação de lado... Uma casa sem a mulher não funciona." Há uma palavra que está a desaparecer dos dicionários, porque "todos têm medo dela: ternura. É património da mulher. Daí ao feminicídio, à escravidão, vai um passo, não? Qual é o ódio, eu não saberia explicar. Talvez algum antropólogo o possa fazer."

Aqui, o Papa Francisco que me desculpe, mas vou fazer um reparo. E na Igreja? Ele vai repetindo que "a Igreja é feminina" e já na viagem ao Brasil avisou: "Se a Igreja perde as mulheres, na sua dimensão total e real, corre o risco de se tornar estéril." Então, porquê tanta hesitação em ordenar as mulheres como diáconos? Esse seria um primeiro passo da abertura que se impõe.

Francisco insiste na Igreja sinodal e essa ordenação deverá, tudo indica, acontecer já na sequência do próximo Sínodo para a Amazónia, em Outubro.

2. 6. Sobre os escândalos da pedofilia na Igreja. Aqui, Francisco reconhece que também se equivoca. Equivocou-se nomeadamente no que à questão da pedofilia no Chile se refere. E foram concretamente perguntas dos jornalistas, "feitas com muita educação" no regresso da viagem ao Chile, que o fizeram perceber que a informação que tinha não era verdadeira. Estava mal informado. E não exclui que tenha havido corrupção na informação prestada: "Nem sempre é corrupção assim... por vezes é estilo da Cúria - sim, no fundo há uma lei de corrupção -, mas é um estilo que é preciso ajudar a corrigir."

Concretamente quanto ao cardeal McCarrick, a quem acabou por retirar o cardinalato e reduzir ao estado laical, confessa: "De Mc Carrick eu não sabia nada, obviamente, nada, nada." "O cardeal Pell obviamente que está preso e está condenado, apelou, mas está condenado. O cardeal Errázuriz já não podia continuar, era óbvio". Conclusão: o grupo de cardeais consultores começou por ser constituído por nove e agora são seis. Quanto às acusações que o ex-Núncio Viganò lhe fez, respondeu, explicando o seu silêncio na altura: "Eu confio na honestidade dos jornalistas e disse-vos: "Estudai vós a questão e tirai as conclusões." E o trabalho que fizestes foi genial, e três ou quatro meses depois um juiz de Milão condenou-o."

Mas, indo ao cerne dessa chaga que é a pedofilia na Igreja, concluiu que, com as medidas concretas que estão a ser tomadas, a "tolerância zero" é mesmo para implementar, salvaguardando também o princípio da presunção de inocência: "A tarefa do padre é levar o jovem a Jesus. Com os abusos, sepulta-o. Essa é a grande monstruosidade. Que é mais grave que tudo o resto." Mas não se pode ignorar os números aterradores de casos de pedofilia no mundo, a maior parte na família, também entre educadores, no desporto, etc., que apresentou no discurso final da Cimeira no Vaticano contra os abusos na Igreja, em Fevereiro passado. "Evidentemente, a percentagem de sacerdotes que caíram nisto faz parte do todo, uma corrupção mundial na pedofilia, é de terror... E por isso quis que todos tivessem as estatísticas da Unicef, das Nações Unidas, as mais sérias, as estatísticas sérias." "Seria importante aqui referir os dados gerais - na minha opinião, sempre parciais - a nível global e a seguir a nível da Europa, da Ásia, das Américas, da África e da Oceânia, para dar um quadro da gravidade e profundidade deste flagelo nas nossas sociedades. A primeira verdade que resulta dos dados disponíveis é esta: quem comete os abusos, ou seja, as violências (físicas, sexuais ou emocionais) são sobretudo os pais, os parentes, os maridos de esposas-meninas, os treinadores e os educadores. Além disso, segundo os dados Unicef de 2017, relativos a 28 países no mundo, em cada 10 meninas-adolescentes que tiveram relações sexuais forçadas, 9 revelam que foram vítimas de uma pessoa conhecida ou próxima da família." Um número aterrador, a título de exemplo, no nível global: "Em 2017, a OMS estimou em mil milhões os menores com idade entre os 2 e os 17 anos que sofreram violências ou negligências físicas, emocionais ou sexuais."
(Continua)
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*Padre e professor de Filosofia
Fonte:  https://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/anselmo-borges/interior/confissoes-do-papa-francisco1-11061377.html?utm_term=Alfundao%2C+a+aldeia+que+ganha+nova+vida+com+imigrantes+de+turbante&utm_campaign=Editorial&utm_source=e-goi&utm_medium=email 
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de Paris a Graissessac

Juremir Machado da Silva*

Passeios pela França da canícula

Caminho pelas ruas de Paris ao cair da noite. A temperatura beira os 40 graus. É o que os franceses chamam de canícula. O termo é assustador. Remete a milhares de mortes de pessoas idosas. O país prepara-se para enfrentar as temperaturas extremas com o zelo de quem sabe os perigos de uma catástrofe climática. Parques são autorizados a abrir durante as noites, vaporizadores são instalados nas ruas, áreas de frescor são indicadas às pessoas. Falta ar-condicionado gelado na maioria das linhas de metrô. A vida nos subterrâneos passa da penumbra ao suor que brilha e do brilho do suor ao multiculturismo universal.

      Ando por estas ruas que conheço há 30 anos e sinto prazer em ver, como na letra de uma famosa canção, “les filles à bicyclette”. Agora, charme dos novos tempos, as meninas andam juntas num mesmo patinete. Ou correm com seus namorados, deslizando entre monumentos, cabelos esvoaçantes, com seus vestidinhos coloridos de uma sofisticação simples como a simplicidade costuma ser. Nos cafés e nos restaurantes há tanta gente aparentando felicidade que reclamar do calor soa como uma desfeita. O dia só vai desaparecer pelas dez da noite. A cidade-luz esparrama a sua luminosidade natural até tarde.

      O Sena exibe a placidez das suas águas como que posando para mais um quadro impressionista ou complacentemente para mais uma selfie com um turista vindo de perto ou de longe. Ao fundo, porém, a Notre-Dame é como uma ferida exposta. O símbolo maior de Paris ainda não se curou do incêndio que o devastou não faz muito. As chagas cintilam por trás dos tapumes.  Os vitrais poupados pelas chamas parecem olhos tristes exalando cores em meio ao cinza de tudo que partiu em fumaça. A noite de verão não aceita tristeza nem melancolia. Cobra o seu preço em alegria. Quer pessoas dispostas a comemorar o bom tempo, os belos dias, a estação que todos esperam e temem com suas temperaturas impiedosas e seus amores inesquecíveis. Só o valor do euro, para os brasileiros, é mais implacável. Quem se importa quando tudo pulsa?

      Contato meu velho mestre Edgar Morin, que fará 98 anos em 8 de julho, para encontrá-lo em Montpellier, cidade que escolheu para estar sempre em companhia do sol e do mediterrâneo. Ele me pede para ficar mais uns dias, que o espere, pois foi convidado para ir ao Vaticano encontrar o Papa. Quem pode fazer alguma objeção? O tempo é senhor dos dias e também das noites, especialmente das noites de verão, quando muitos são tomados de uma vontade frenética de viver ou de sair por aí vendo viver. Caminhamos pelas ruas de Paris e não podemos deixar de comentar: a viagem parece cada vez mais longa e cansativa. Paris vai reconstruir a Notre-Dame. Não se contentará em fazer uma cópia do que foi queimado. A sua magia consiste em mesclar o antigo e o novo.

      Deus nos deu o Brasil prontinho. Rio de Janeiro é uma cidade esculpida por mão divina. Paris se contenta com a obra de homens. Paris, 40 graus, a capital francesa sempre queima. Não é melhor do que outras. É diferente. Faz questão de exibir-se em noite escaldantes.

*

Dia em Paris

      Não sou um grande amante do turismo e dos longos deslocamentos. Já fui. Canso cada vez mais nas viagens aéreas. Aviões e aeroportos me entediam. Sofro com fuso horário: cinco horas de diferença nesta época entre o Brasil e a França. Durmo logo que chego, acordo de madrugada e tenho insônia. Venho a Paris todo ano a trabalho. Deveria vir duas vezes por ano à reunião do conselho editorial da revista Hermès, do qual sou membro titular, dirigida por Dominique Wolton e publicada pelo Centro Nacional de Pesquisa da França. Por falta de tempo, negociei para vir uma vez a cada ano, em junho ou novembro. Há mais obrigações. Desta vez, um colóquio na Universidade de Montpellier.

      O que faço por aqui no pouco tempo que sobra? Leio o último romance de Michel Houellebecq, Serotonina, à sombra das árvores do Jardim de Luxemburgo. Encontro amigos. Faço entrevistas. Vim com um projeto de entrevistas com intelectuais: jogo de ideias, direita e esquerda, o que aproxima e separa os que se dedicam a pensar o mundo em 2019. Já entrevistei, no velho café Saint-Augustin, um dos mais clássicos de Paris, frequentado por jornalistas e políticos, o polemista da extrema-direita mais em voga, o mais contundente, Éric Zemmour, colunista do jornal Le Figaro e autor de alguns best-sellers como “Suicídio Francês”. Para ele, a imigração é o mal a combater.

      Claro que fomos ver a Notre-Dame pós-incêndio. É um monumento tão grandioso que, reduzido à carcaça, como um navio encalhado, despojos de um naufrágio, a igreja permanece imponente, majestosa, altiva, cercada de turistas, como se atraísse ainda mais gente para ver o que dela restou. Paris é uma cidade para caminhantes incansáveis. Nestes dias de canícula, temperaturas entre 35 e 40 graus, só camelos resistem bem aos passeios. É preciso transportar muita água. As bancas de jornais, espaços típicos de cidades de grandes leitores, estão em franca transformação. Ou viram pequenas lojas de conveniência ou desaparecem como as cabines de telefone.

      O espetáculo que mais me agrada em Paris é dos finais de tarde: sentar num café de calçada e observar a humanidade passar. São homens e mulheres de todas as línguas, vestimentas, costumes e semblantes. Para quem gosta de detalhes práticos, uma garrafa de água custa cinco francos, quase 25 reais, nos bistrôs. A maioria prefere ir logo para os vinhos nacionais. O vinho da casa resolve. De qualquer maneira, para a sede os restaurantes servem água da torneira e quase ninguém recusa. Pouco coisa muda em cidades de tradição assentada. Gosto dessa permanência, dessa quase imutabilidade, dessa perseverança no que foi testado e aprovado. Paris parece não viver acossada pelos fanáticos por novidades. É um paradoxo: sempre nova e diferente, sempre a mesma.

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Depois, três dias em Montpellier num colóquio sobre Imaginário e cotidiano. Encontro com a França sempre iluminada e com amigos sempre encantadores. Evento forte.

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Por fim, uma noite e um dia em Graissessac, vilarejo natal de Michel Maffesoli. Um lugar de sonho, paz, ar puro, montanhas, verde, tranquilidade e pessoas amigas.

Sou da tribo do Maffesoli, aqueles que querem fechar o ciclo voltando para casa. Graissessac é a Palomas de Michel, onde tem um casa maravilhosa, uma adega, uma biblioteca, uma infância e livros para escrever sem a pressa de Paris.

Recebi aqui a notícia de que fui agraciado com a Medalha do Mérito Farroupilha por iniciativa do deputado Jeferson Fernandes (PT). Estou feliz. Agradeço a ele e à mesa diretora da Casa. Para quem foi guri em Palomas, de onde a alma não sai, é uma baita honraria. Gracias. Merci.
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Na foto, uma cena de Graissessac.
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* Jornalista. Sociólogo. Prof. Universitário PUCRS. Cronista do Correio do Povo. Escritor.
Fonte: https://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/de-paris-a-graissessac-1.348470 30/06/2019

sexta-feira, 28 de junho de 2019

Ouvir a voz pública da poesia

Ronald Augusto (*)

Ilustração: Daniel Rosa dos Santos.

Divido com os leitores do Sul21 esta entrevista que eu concedi à Carolina Veloso, estudante de literatura da UFSC que prepara artigo sobre o blog A Voz Pública da Poesia, um espaço para a poesia política em tempos de desamor ao debate de ideias.

Carolina Veloso – Como surgiu a ideia de criar um blog de poesia independente?
Ronald Augusto – Não é um blog de poesia independente. É um blog cuja pretensão é apostar na poesia política. Um espaço para o exercício de uma dimensão do fazer poético que não teme a imersão radical e crítica no presente nem a parcialidade de situar-se em termos históricos e políticos. Nos últimos cinco anos a vida político-social brasileira deu uma guinada desconcertante para a direita mais absurda possível, isto é, aquela que, ao mesmo tempo, consegue ser burra e violenta. Quando isso começou a tomar forma (digamos que do impeachment de Dilma pra cá) comecei a perceber que muitos poetas se mostravam soberanamente indiferentes aos sinais do que iniciava a surgir, era como se usassem luvas de pelica; seguiam fazendo seus poemas tão inofensivos quanto poeticamente corretos. Então, numa tarde de domingo, em conversa com amigos, falei sobre a minha indisposição com esses poetas isentões, fleumáticos diante do estado de coisas em que estávamos e estamos mergulhados; aventei a possibilidade de fazer algo, tamanha era a minha indignação. No mesmo dia, já no fim da tarde, criei a página no FB. Na manhã seguinte nasceu o blog.

CV – Como funciona a organização do blog e a seleção dos colaboradores/poesias? 
RA – Comecei convidando poetas que também experimentavam a mesma inquietação, a mesma disposição em promover uma narrativa poética coletiva que fosse capaz de denunciar o clima autoritário e reaça que estava a surgir. Depois um poeta foi indicando outro e mais outro e a coisa começou a andar meio que por conta própria. No início havia poucas poetas, então convidei a Adriane Garcia pra fazer um chamamento às mulheres, isso também ampliou a diversidade. O critério que eu procuro seguir para a escolha dos poemas envolve conciliar o gesto poético inventivo e a contundência mais crua possível em relação ao enfrentamento político. A salvaguarda superciliosa da “qualidade literária” não me interessa; o blog se inclina mais para o hard do que para o soft da poesia. Para quem não conhece a linha do blog adianto que os poemas devem ser de luta contra a onda reacionária (racismo, machismo, homofobia, transfobia, fanatismo religioso etc) e contra o governo Bolsonaro que, afinal de contas, sintetiza tudo isso. Quando topo com um poema porreta nas redes sociais (os poetas publicam muito aí) eu chego e pergunto se posso levar para o blog. Muitas vezes nem conheço bem o poeta ou a poeta, o que vale é o poema realizar aquela combinação da qual falei linhas acima. Às vezes os poetas me enviam algo que vai ao encontro da nossa linha editorial. Já recusei bons poemas não-políticos de amigos. Não abro mão do critério combativo que pensei para o blog.

CV – Os poetas são convidados ou não há ligação entre o editor e os poetas?
RA – Como dá pra ver pela resposta acima é uma combinação das duas alternativas. O que mais me agrada é quando publico poetas que não são meus amigos, ou seja, que ainda não conheço muito bem.

CV – As redes sociais aparecem atualmente como um meio alternativo para os artistas independentes. Nesse sentido, você considera as redes sociais enquanto um importante veículo e ferramenta  para a literatura contemporânea? Principalmente, no que diz respeito as editores independentes que vão contra a corrente mercadológica das editoras “oficiais”? 
RA – Acho que sim, as redes sociais, blogs, todos esses dispositivos virtuais, são fundamentais para as atividades e reflexões tanto de poetas e escritores em busca de afirmação, como de escritores já entronizados. O mesmo vale para as grandes e pequenas editoras em suas relações comerciais e também no contato com os leitores. As grandezas nas formas de investimento são, obviamente, bem diferentes, mas todas editoras, “oficiais” ou não, precisam beber dessa água.

CV – Quem é o leitor do blog? Tem alguma ideia sobre a receptividade e alcance do blog? Já foi realizada alguma pesquisa sobre esses dados? Ou você recebe retorno dos leitores?
RA – É o leitor que gosta de poesia. O leitor que aprecia a diversidade de vozes. O leitor-cidadão que não transige com nenhuma forma de autoritarismo. Não faço um acompanhamento profissional do alcance do blog. Dou uma olhada nas estatísticas e constato que as visualizações são regulares e com bom número de leitores. Como são muitos os poetas publicados, o blog está ficando conhecido em várias regiões do Brasil e também no exterior. A professora Regina Dalcastagnè (UnB) tem se revelado uma grande entusiasta e divulgadora do blog.

CV – Você considera o blog como uma ferramenta de resistência literária?
RA – É apenas mais uma ferramenta, um veículo, um suporte expressivo adequado às condições do nosso tempo.

CV – O que te motiva a dar continuidade a esse trabalho?
RA – Desafortunadamente, o governo Bolsonaro. Enquanto a direita obtusa, de caso pensado com o fascismo, estiver dando as cartas com o suporte do ultraliberalismo, A Voz Pública da Poesia continuará sendo ouvida.
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(*) Ronald Augusto é poeta e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012), Oliveira Silveira: poesia reunida (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com e é colunista do portal de notícias Sul21: http://www.sul21.com.br/editoria/colunas/ronald-augusto/
Fonte:  https://www.sul21.com.br/colunas/ronald-augusto/2019/06/ouvir-a-voz-publica-da-poesia/

quarta-feira, 26 de junho de 2019

Žižek: Bem-vindo à Guerra Civil!

Slavoj Žižek*

A única forma de realmente derrotar Trump é a esquerda vencer a guerra civil que está sendo travada no interior do Partido Democrata – o nome apropriado dessa “guerra civil”, aliás, é luta de classes.


Nos últimos dois anos, fui frequentemente indagado por amigos (e por “amigos”) se ainda sustentaria minha preferência por Trump sobre Clinton, ou se agora não admitiria ter cometido terrível equívoco. É fácil adivinhar minha resposta: não apenas refirmo o que disse, como penso que os acontecimentos dos últimos anos confirmaram plenamente minha escolha. Por que?

Como observou Yuvai Harari, em seu Homo Deus,

“as pessoas só se sentem efetivamente compromissados com as eleições democráticas quando partilham um vínculo básico com boa parte dos demais eleitores. Se a experiência dos outros eleitores for estranha a mim, e eu acreditar que eles não compreendem meus sentimentos e não ligam para meus interesses vitais, então mesmo se meu voto for derrotado por cem a um, eu não tenho absolutamente nenhum motivo para aceitar o veredito. As eleições democráticas são um método para resolver discordâncias entre pessoas que já concordam a respeito do básico.”

Quando esse acordo a respeito dos básicos falha, os únicos procedimentos que restam à nossa disposição são negociações ou guerra (civil).

De que modo, então, isso se aplica à crescente carência de concordância sobre o básico na política estadunidense? O que complica a situação é que o desacordo que explodiu é duplo: primeiro, Trump quebrou a ordem estabelecida do lado da direita populista, e em seguida os democratas de esquerda (Sanders e outros) a quebraram pela esquerda. Essas duas rupturas não são simétricas. O conflito entre Trump e o establishment liberal é uma disputa cultural-ideológica no interior do mesmo espaço do capitalismo global, ao passo que os democratas de esquerda começaram a questionar essa própria ordem capitalista global. É por isso que a única verdadeira luta em curso hoje está ocorrendo no interior do próprio Partido Democrata.

Os liberais que estão em pânico diante de Trump ignoram a ideia de que a vitória dele pode deflagrar um processo a partir do qual uma esquerda autêntica poderia emergir. O contra-argumento deles aqui consiste basicamente em traçar um paralelo com a ascensão de Hitler ao poder. Muitos comunistas alemães viram na tomada de poder pelos nazistas uma nova chance para a esquerda radical (“agora a situação é clara, desfizeram-se as ilusões democráticas, estamos diante do verdadeiro inimigo”), mas, como sabemos, a apreciação deles se provou um equívoco catastrófico. A questão é: o mesmo se dá com Trump? Seria Trump um perigo que deveria mobilizar uma ampla frente, ao modo das frentes populares anti-fascistas, uma frente em que conservadores “decentes” lutarão ao lado de progressistas liberais do mainstream e (o que quer que tenha sobrado) da esquerda radical?

Penso que uma frente ampla dessas contra Trump configura uma perigosa ilusão: ela redundaria na capitulação da nova esquerda, seu rendimento ao establishment liberal. O medo de que uma vitória de Trump transformaria os EUA em um Estado fascista é um exagero ridículo: os EUA possuem uma textura rica o suficiente de instituições políticas e cívicas divergentes de modo que sua Gleichschaltung fascista direta não pode ser realizada (em contraste com, digamos, a França, onde a vitória de Marine Le Pen teria sido muito mais perigosa). O que ocorreu nos EUA é que a vitória de Trump desencadeou um processo de radicalização do Partido Democrata, e esse processo é nossa única esperança. A coluna de opinião de Saritha Prabhu publicada recentemente no Tenessean merece ser citada aqui – ela quase me levou às lágrimas com sua descrição de uma simples verdade:

“Prepare-se: há uma guerra civil se aproximando no Partido Democrata. Reside no coração do Partido Democrata de hoje uma crise de identidade e uma luta ideológica. Para começar, o Partido Democrata seria um partido dos ricos ou um partido dos de baixo? Por muitos anos, eles foram o partido dos ricos e fizeram um bom jogo de fingir defender os de baixo. E o establishment Democrata o faz de formas insidiosas e arrogantemente espertas: eles defendem o sujeito marginalizado nas questões de raça, gênero e sexualidade porque, veja, isso não fere tanto assim o bolso de seus constituintes abastados. Mas nas questões econômicas que importam, eles frequentemente desancam o eleitor Democrata médio da classe trabalhadora: nos acordos globais de comércio que provocaram o offshoring de postos de emprego e dizimaram a base manufatureira do país; quando fizeram vista grossa para o arrocho salarial provocado pela entrada de imigrantes ilegais ao mercado de trabalho, e por aí vai. Mas desde que eles falem, falem e falem mais um pouco – sobre aborto, direitos da população trans e racismo (não que essas questões não sejam relevantes) –, conseguem se safar quanto a isso. Tudo isso funcionou até 2016, mas não cola mais. A ala do establishment Democrata ainda está perdida ou simplesmente teimosa, mas quer que o bom e velho Joe Biden volte para salvá-los e Faça a América Oligárquica Grande de Novo. Quando você arranca a máscara deles, o que se revela é preocupante: o Partido de Davos, disfarçado de Partido de Scranton, Pennsylvania, essencialmente ludibriando boa parte do eleitorado.”
Saritha Prabhu, “The coming civil war in the Democratic Party won’t be pretty”, Tenessean, 21 jun. 2019.

Sim, “tudo isso funcionou” até 2016 – até que Trump apareceu. Sejamos claros: foi o surgimento de Trump que deflagrou a “guerra civil” no Partido Democrata – e, aliás, o verdadeiro nome dessa “guerra civil” é luta de classes. Então não percamos nossos nervos, usemos a oportunidade inadvertidamente aberta por Trump. A única forma de realmente derrotar Trump é a esquerda vencer a guerra civil que está sendo travada no interior do Partido Democrata.
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 *Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009), Em defesa das causas perdidas, Primeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011), Vivendo no fim dos tempos (2012), O ano em que sonhamos perigosamente (2012), Menos que nada (2013), Violência (2014),  O absoluto frágil (2015) e O sujeito incômodo: o centro ausente da ontologia política (2016). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
- TEXTO ENVIADO DIRETAMENTE PELO AUTOR PARA SUA COLUNA NO BLOG DA BOITEMPO. A TRADUÇÃO É DE ARTUR RENZO.
Fonte:  https://blogdaboitempo.com.br/2019/06/26/bem-vindo-a-guerra-civil/

Nicholas Negroponte: “Pensamos no capitalismo como sinônimo de democracia, mas não é assim”

 http://www.ihu.unisinos.br/images/ihu/2019/06/26_06_2019_tecnologia.jpg

Como aquele anúncio que há tempo causou furor, Nicholas Negroponte (Nova York, 1943) veio do futuro. Não nos trouxe candura, mas, ao contrário, algumas previsões do que nos aguardava ao virar da esquina, sobretudo em matéria tecnológica. Algumas delas se cumpriram (todo o ambiente digital em que nos movemos, hoje, já sabia de cor antes que a Web fosse Web). Outras, felizmente, não. Hoje, quase 35 anos após fundar o MIT Media Lab, segue convencido que é possível continuar inovando. E veio falar disso em Madri, onde participou do fórum “Cruce de Caminos”, organizado pelo 
Banco Caminos e Bancofar.

A entrevista é de Inés Martín Rodrigo, publicada por ABC, 24-06-2019. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Você, que esteve tantas vezes no futuro, mostra-se otimista em relação ao presente?
Sim. Visitar o futuro é como visitar um país, e, sim, me sinto muito otimista em relação ao presente. Estamos vivendo momentos muito confusos em países como os Estados Unidos, mas tecnicamente sigo otimista como sempre.

Tendo em conta essa confusão reinante em tantos lugares, quais são os desafios fundamentais que a sociedade enfrenta?
O desafio fundamental, nesse momento, é o resultado de trinta anos ao longo dos quais dissemos a nossos filhos que só deveriam se preocupar com eles mesmos. A avareza perdeu o controle e estamos pagando as consequências. Por isso, escutamos os jovens nos dizendo que deveríamos nos preocupar mais com o “nós” do que com o “eu”. O dano provocado pelo “eu” gerou coisas como Trump e o Brexit, um mundo no qual recompensamos aquelas pessoas que fazem coisas unicamente pelo seu interesse próprio e não pelo interesse geral. Mas, estamos em uma situação geral de recuperação, vamos nos recuperar.

Mas, como?
Uma das coisas que nos força a isso é a mudança climática, porque é muito maior, muito mais importante que todos nós. Note quem luta contra a mudança climática.

Os jovens, só eles.
Claro, porque são eles que a vão sofrer, eu já não estarei aqui. Não se trata apenas da voz dos jovens, mas, sim, de fazer com que as pessoas repensem o que é importante. Estou decepcionado de que tenhamos demorado tanto para nos dar conta e que tenhamos passado por um período tão longo, por uma escola de negócios tão avarenta.

Os jovens lutam pela mudança climática, enquanto Trump a nega.
Sim, mas não é necessário ser muito inteligente para perceber que Trump não acredita realmente nisso. Diz isso porque pensa que irá lhe ajudar nos negócios, mas não engana ninguém. Simplesmente, é decepcionante que existam pessoas que neguem a mudança climática e, sobretudo, que algumas dessas pessoas estejam no poder, mas isso não irá durar muito tempo.

É o que espero... Admiro sua capacidade analítica, de invenção e engenho, mas não sei se, justamente, a tecnologia que você tanto defende não está nos tornando um pouco preguiçosos do ponto de vista criativo.
Não nos torna mais preguiçosos, não. É algo que ocorreu com todas as tecnologias. Com a escrita, houve gente que pensou que ao poder escrever, já não seríamos capazes de memorizar. Com as calculadoras, pensou-se que iriam nos tornar mais débeis, porque não faríamos cálculo mental... Mas, aconteceu justamente o contrário: temos uma sociedade muito mais criativa que antes, e isso vem da capacidade de poder nos expressar de formas que antes não existiam. Há uma mudança que facilitou isso.

Mas, todas as mudanças assustam.
As mudanças não causam medo em você, estou certo.

Não, é claro que não.
É verdade que conforme vamos ficando velhos, deixamos de gostar da mudança, as pessoas se sentem mais cômodas quando as coisas não mudam. Mas, houve uma modificação em nosso ponto de vista sobre a mudança, estamos mais preparados para a mudança. Pense, por exemplo, nas uniões do mesmo sexo. Chegamos a tudo isso em apenas dez anos, em um período muito curto de tempo. Mudamos nossa perspectiva de mudança, e isso continuará.

Continuando com as mudanças, como a superabundância de informação afeta a nossa memória? Pergunto isso, porque para mim é cada vez mais difícil recordar um nome, o título de um livro, de um filme, porque sei que a internet irá me dar a resposta.
Mas, não acontece nada. O que tem de ruim nisso? A possibilidade de poder buscar algo na internet não tem nada de ruim. Eu acredito que a memorização está superestimada.

Nisso estamos de acordo.
O importante é ter o maior número de experiências possíveis, centenas delas. Antes era um grande privilégio viajar, e agora todo mundo pode fazer isso, e ter experiências inclusive sem a necessidade de viajar. Agora, vivemos um momento de consumo muito mais rápido. Hoje, em um só dia, posso fazer o que meus pais faziam multiplicado por três ou por quatro, e eram pessoas muito cultas, não se acomodavam no sofá. Agora, tudo está entrelaçado, ao alcance de sua mão, em seu telefone... Antes, todo mundo vivia no passado, era como um ovo frito, tudo estava muito separado, e já não é assim, agora está tudo misturado, como um omelete.

Como é possível compatibilizar o respeito à ética e a privacidade com a comercialização de nossos dados pessoais na internet? É possível alcançar um equilíbrio?
Veja, se você sai agora do hotel e é atropelada por um carro, vem uma ambulância e, nesse momento, você não se preocupa com seus dados pessoais. Mais que isso, o que deseja é que saibam tudo sobre você. Mas todos os seus dados precisam estar em algum lugar para que possam tirar daí a informação que necessitam. Todos comercializamos nossa informação pessoal em troca de certos serviços de qualidade.

Se alguém está há muito tempo trabalhando contigo e conquistou um grau de confiança a ponto de apenas com uma palavra sua saber ao que está se referindo, essa pessoa tem tal conhecimento a seu respeito que, caso você seja raptada, terá muita informação a seu respeito que poderá utilizar. O mundo digital é um pouco o mesmo: estamos comercializando nossos dados sabendo do que estamos fazendo, não nos enganemos.

O Gmail funciona gratuitamente porque comercializam anúncios, e você chega a esse acordo, aceita. Sendo assim, protestar é um pouco contraditório, um pouco falso, porque funcionou muito bem para nós, nos ajudou.

O interessante é que, graças a isso, você tenta viver uma vida em que não tenha nada a esconder, portanto, não é tão ruim, pois, inclusive, faz com que nos comportemos melhor. A regulamentação precisa sair de si mesmo, devemos regulamentar nós mesmos, e não é um preço muito alto a pagar.

É curioso porque Trump é um grande defensor das redes sociais, faz seu uso como microfone, especialmente o Twitter, mas se mostra muito crítico aos meios de comunicação tradicionais. São repercutidas, por exemplo, suas broncas com a CNN.
Não levo a sério Trump. Não consigo descrever a enorme vergonha que sinto por ele ser o presidente dos Estados Unidos. Faz com que Berlusconi se pareça com Winston Churchill. É incrível.

Parece que terá um segundo mandato...
Eu não estou tão certo disso... A única forma de Trump não ser reeleito é os jovens votarem. Mesmo que apenas 35% da população entre 18 e 31 anos votassem, essa porcentagem seria suficiente, porque foram os que não votaram. A única coisa que é necessário fazer é mobilizar os jovens para que votem, basta.

De fato, muitos deles estão se envolvendo na política. Veja o caso de Alexandria Ocasio-Cortez.
É fantástica! Ela é uma dessas pessoas que fazem você se sentir mais otimista. Nem Biden e nem Sanders, os mais velhos não fazem você se sentir assim.

Há alguns anos, você não se mostrava especialmente otimista em relação ao futuro da imprensa em papel. Como o vê agora, que futuro aguarda os jornalistas?
Sempre disse que a criação de palavras, de histórias, é uma das profissões mais nobres, é uma vocação, as pessoas a fazem por motivos muito nobres e eu admiro muito isso. Mas, o envio de um papel me parece que não faz sentido. A ideia de que se torne algo eletrônico muda a natureza da distribuição, agora tudo é acessível em todo o mundo.

É claro que algo mudou, mas eu sempre fui um grande admirador dos jornalistas, de todas essas pessoas capazes de digerir a informação, entendê-la, e repassá-la para uma linha editorial.

Mas, não acredita que qualquer pessoa possa ser jornalista.
Não, e você percebe rapidamente se alguém é ou não, se tem esse espírito.

Sim, basta ler certas coisas...
Sim (risos).

Nesta semana, o Facebook apresentou uma moeda própria. Pergunto-me se estamos preparados, do ponto de vista econômico e social, para o que está por vir.
Eu sou um grande defensor do bitcoin. Até agora, foi o equivalente ao ouro. Mas, não teve êxito em termos de transações, e talvez o Facebook consiga, e isso é interessante, com pouco custo ou inclusive custo zero. Por exemplo, com os micropagamentos, que nunca pudemos executar.

Exponho os jornais como exemplo: eu utilizo Flipboard, uma página web que permite a você reunir jornais que publicam histórias, mas os jornais obrigam você a fazer uma assinatura e eu não quero fazer isso. Sim, pagaria por uma história em concreto, mas não quero fazer uma assinatura. Deixe-me pagar por uma história com um micropagamento.

Talvez a moeda do Facebook nos permitirá fazer isso, e isso seria fantástico. Desse modo, jornalistas como você ou jornais como o seu poderão receber pagamentos. Não é tudo ou nada, fazer a assinatura ou não. É possível que a moeda do Facebook mude isso.

Todas as vezes que entrevisto um pensador, um filósofo, todos concordam em destacar que a desigualdade é um dos traços que melhor define a fase do capitalismo em que estamos.
Oh, é que é um capitalismo sem nenhum tipo de limite. Tendemos a pensar no capitalismo como sinônimo de democracia, e não é assim. Chegou a um ponto em que precisa mudar, e só há uma forma: com os impostos, fazendo mais pela sociedade civil. E não me refiro só aos ricos. Todo mundo precisa participar mais na sociedade civil. Não é tão difícil mudar isso. Mas, pagar impostos não é algo que seja muito popular.

E por que, se ao final é algo que impacta a sociedade?
Os Estados Unidos, e acredito que a Europa, possuem sua própria versão disto: o conceito de pagar impostos é contraditório com todo o espírito do país. Há pessoas que acreditam firmemente que não deveriam pagar impostos. Ronald Reagan e Margaret Thatcher convenceram a muitas pessoas de que o melhor governo era um governo pequeno, um não governo.

É a essência do liberalismo.
Sim, pode chegar tão longe como isso.

Mas, veja a situação na Europa, onde a extrema direita tem uma presença cada vez maior.
A extrema direita está no auge, é certo, mas nas últimas eleições europeias não subiu tanto como se esperava. Na Europa, sim, tem o problema dos refugiados, que torna as coisas mais difíceis ainda. Nos Estados Unidos não temos um problema de imigração, ainda que Trump pretenda fazer acreditar que sim. Se há algo que não temos é um problema de imigração, e a falsidade de tudo isso. O surpreendente é que pintam você como se houvesse uma guerra na fronteira sul.

Mas, olhe o que Trump conseguiu do México.
Não está tão claro que tenha conseguido algo. Mas, a ideia de utilizar taxas para negociar é terrível, é algo que vai além do ódio.

Interessa-me muito como a cultura, as humanidades, podem e devem dialogar com a tecnologia, com a ciência, e você é um bom exemplo de que esse diálogo pode ser muito frutífero. No entanto, fico desanimada em ver como as humanidades desaparecem dos planos de estudo.
Concordo com você. Todo o conceito de colégio, de aprendizagem, é preciso repensar, reconsiderar. O melhor que você pode fazer, se tem a sorte de ter pais que possam ser um exemplo, é aprender deles... A empatia não é algo que se aprende na escola, se aprende na vida.

Por que sempre precisam nos fazer escolher entre ciências e letras?
Bom, Leonardo da Vinci não teve que escolher. É uma dicotomia falsa. Por exemplo, pense na relação entre a música e as matemáticas, têm um acoplamento muito básico, muito palpável, muito natural. Eu sempre fui bom em letras e matemáticas, e decidi estudar arquitetura, porque me parecia uma boa combinação de ambas. Muitos anos depois, percebi que a combinação de ambas, das artes e as matemáticas, era a informática, e isso foi possível quando os computadores se tornaram mais visuais, porque em um dado momento não eram.

Para terminar: resta algo a inventar, senhor Negroponte?
Sim, muitas coisas. Mas, não será uma extrapolação de mais internet, mais informática, mais computadores. Será mais biológico, biologia sintética. Nós, seres humanos, temos sido capazes de fazer coisas que são cada vez menores. Antes, só a natureza podia chegar até aí: células, genes... E, de repente, podemos fazer isso, e estamos fazendo coisas que são artificiais e reais ao mesmo tempo.
Por exemplo, no MIT Media Lab nunca poderia ter imaginado que desenharíamos ratos, e agora fazemos e esses ratinhos estão correndo por aí. São reais ou artificiais? Devem ser reais, mas não existiam antes de criarmos esta engenharia, portanto, são também artificiais. Todas estas coisas emocionantes que acontecerão no futuro têm a ver com que agora somos capazes de melhorar a natureza.

Podemos fazer isso?
É claro: podemos eliminar doenças, as deficiências... A resposta é: sim, podemos. E isso é o importante, o interessante, por aí passará o futuro.
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Fonte:  http://www.ihu.unisinos.br/590329-pensamos-no-capitalismo-como-sinonimo-de-democracia-mas-nao-e-assim-entrevista-com-nicholas-negroponte 26/06/2019

Internet já traz mais problemas aos jovens que o álcool ou a droga

A maioria dos jovens portugueses passa até 3 horas por dia a jogar na internet

As conclusões são do serviço do Ministério da Saúde que avalia os comportamentos aditivos e dependências.

Esta é uma das conclusões do relatório "Comportamentos Aditivos aos 18 anos - Inquérito aos jovens participantes no Dia da Defesa Nacional - 2018" que ouviu 66 mil jovens.

A percentagem de jovens que relata problemas com a internet (25,9%) aumentou em relação ao último inquérito realizado em 2017 (22,9%) pelo Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) do Ministério da Saúde. Os casos mais comuns, a afetar 15,9% dos jovens, envolvem "problemas de rendimento na escola ou no trabalho" por causa do tempo online. Com 11,5% seguem-se as situações de mal-estar emocional e problemas com comportamentos em casa (9,6%).

Internet
25.9
Consumo de álcool
21
Consumo de drogas
9


O número de jovens de 18 anos com problemas pelo uso da Internet (25,9%) é mesmo superior ao número de jovens que diz que já teve problemas devido ao consumo de álcool (21%) ou drogas (9%).
Por exemplo, a Internet gera mais do triplo de casos de problemas de rendimento na escola ou no trabalho do que o álcool (15,9% vs. 4,4%) ou quatro vezes mais que o consumo de substâncias ilícitas (2,9%).

Nos comportamento tidos em casa, a Internet também é um fator bem mais problemático do que o álcool ou as drogas, com a presença online a perder, apenas, para o álcool nas situações de mal-estar emocional junto dos jovens de 18 anos.

Parte do tempo em que os jovens estão na internet é passado a jogar, com o estudo a revelar que "a maior proporção de jovens joga até 3 horas por dia, seja durante a semana ou ao fim de semana (por exemplo, 23,5% jogam 1 hora por dia e 14,7% durante 2 a 3 horas por dia, ao fim de semana; enquanto 18,7% jogam até 1 hora por dia e 14,3% jogam 2 a 3 horas por dia, se for um dia útil)". No entanto, o documento faz questão de sublinhar que "é de salientar como perto de 10% dos jovens mencionam jogar durante 6 horas ou mais por dia".
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Fonte: https://www.tsf.pt/portugal/sociedade/interior/internet-ja-traz-mais-problemas-aos-jovens-que-o-alcool-ou-a-droga-11045488.html?utm_term=Ensino+nao+e+igual+para+todos.+Alunos+mais+pobres+ficam+fora+dos+cursos+com+notas+mais+elevadas&utm_campaign=Editorial&utm_source=e-goi&utm_medium=email

segunda-feira, 24 de junho de 2019

Fabrício Carpinejar: Seja no celular o que você é à luz do dia

TUDO ÀS CLARAS - Carpinejar: as pessoas só devem escrever no celular aquilo que não causará arrependimento depois (Claudio Fonseca/Divulgação)

O autor de 'Minha Esposa Tem a Senha do Meu Celular' diz que as pessoas têm de aprender a resguardar a intimidade (e a honestidade) na vida digital

Você diz, no seu livro, que celular não é “cofre de intimidade”. Por quê?  Ele é um aparelho de uso comum. É uma tranquilidade não ficar em pânico por uma mensagem ou um telefonema. Se você usa o smartphone para esconder informações do seu relacionamento, algo está errado. Conversas com amigos, memórias, encontros: nada disso está no meu celular.
Sergio Moro é a mais recente figura pública a se envolver em um escândalo porque confiou que suas conversas não vazariam. Devemos mudar a maneira de usar os aparelhos?  Você pensa que está em segredo no celular, escondido, protegido, inviolável, mas não é verdade. Escreva no celular aquilo de que não vai se arrepender depois. Seja no celular aquilo que você é à luz do dia.

Você costuma contar que escreveu os textos de seus últimos livros no celular, em trânsito. Não tem medo de ver seus livros roubados? Se isso acontecesse, seria a maior prova de evolução cultural no país. Hackear autores! Demonstraria um interesse por literatura inimaginável e futurista diante do atual descaso com a arte.

Há alguma coisa comprometedora no seu celular que você teme ver publicada? Não. Não tiro sarro com piadas preconceituosas. Não sei rir nem de vídeos em que as pessoas sofrem.

Em conversas privadas, existe o momento certo de interromper a comunicação por celular para falar ao vivo?  Se você está cometendo alguma trapaça, tanto faz se for ao vivo ou por escrito. A cultura da malandragem deve ser derrubada no país. Honestidade não deve ser uma exceção.

Políticos devem dar a senha do celular para a esposa? Seria perfeito. Celulares todos desbloqueados. Os políticos precisam entender que a função deles é como um sacerdócio. Estão representando os outros, não a si mesmos.
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Fonte:  https://veja.abril.com.br/entretenimento/fabricio-carpinejar-seja-no-celular-o-que-voce-e-a-luz-do-dia/ 21/06/2019

Nacionalismo suave



 

 

 

  

(Philippe Wojazer/Reuters)

O chanceler Ernesto Araújo ameniza antagonismos com a China e reconhece que a tentativa de Juan Guaidó de derrubar Maduro na Venezuela foi uma frustração

Arrolado entre os ministros mais “ideológicos” do governo — ao lado de Damares Alves, dos Direitos Humanos, e de Abraham Weintraub (e seu antecessor Vélez Rodríguez), da Educação —, Ernesto Araújo, 52 anos, colecionou alguns tropeços na pasta das Relações Exteriores desde que tomou posse. Entre outros percalços, o chanceler irritou o setor agropecuário com declarações contrárias à China e decepcionou a bancada evangélica por não transferir a embaixada brasileira em Israel para Jerusalém, uma promessa de campanha do presidente Jair Bolsonaro. Ao sentar por pouco mais de uma hora com a reportagem de VEJA, no seu gabinete no Palácio Itamaraty, Araújo mostrou sua formação de diplomata: conciliador, procurou minimizar conflitos e atritos. Rechaçou a possibilidade de intervenção militar na Venezuela e disse que a tão debatida embaixada brasileira em Jerusalém ainda está “em estudo” — reafirmou, aliás, o compromisso brasileiro com a solução de dois Estados, um israelense e um palestino. O chanceler só se agitou na cadeira quando instado a responder sobre a interferência dos ministros militares no Itamaraty. Na entrevista a VEJA, defendeu Olavo de Carvalho — que o indicou para o cargo — e falou sobre China e terraplanismo.

Seus críticos dizem que o Brasil está perdendo protagonismo na arena internacional. O senhor se responsabiliza por isso? O Brasil já vinha perdendo protagonismo, e essa é uma das coisas que tentamos inverter. Não buscamos o protagonismo pelo protagonismo, mas buscamos influenciar mudanças em foros e situações importantes para o país. Tentamos recuperar a atividade produtiva da nossa política externa e creio que estamos conseguindo inverter essa tendência de queda. Na América do Sul, o Brasil está na vanguarda do processo para uma mudança democrática na Venezuela, e na construção do Prosul, uma nova entidade que substitui a Unasul para tentar consolidar a economia de mercado na região. Mas o maior destaque foi a conquista dos apoios necessários para a entrada do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O processo de adesão ainda não começou, mas já está todo armado.

Juan Guaidó, presidente autodeclarado da Venezuela, fez uma tentativa frustrada de derrubar a ditadura de Nicolás Maduro. O Brasil não mostra otimismo exagerado quanto às possibilidades de Guaidó redemocratizar o país? Houve, sim, uma frustração com aquela tentativa de conquistar o poder de maneira mais rápida por meio da convocação de grupos militares na Venezuela. Mas naquele momento ficou demonstrada uma possível fratura na cúpula militar venezuelana, por causa de uma série de conchavos que não sabemos exatamente como foram feitos. E isso significou um ganho político. Não foi um passo definitivo, mas foi mais um passo. Trata-se de um ganho lento.

Todas as opções estão na mesa em relação à Venezuela? Da nossa parte, só trabalhamos com a hipótese dos meios diplomáticos e políticos. Não é necessária uma intervenção militar porque há uma construção política que está ganhando corpo e criando raízes com a atuação de Juan Guaidó e a continuação do apoio internacional.

Em algum momento o senhor conversou com o presidente sobre a possibilidade de intervenção militar na Venezuela? Não.
“Admiro muito o presidente Trump. Ele oferece a perspectiva de revalorização da nação como um espaço político fundamental. Chamam de nacionalismo, mas é mais do que isso”

O governo de Jair Bolsonaro investiu muito no alinhamento com Donald Trump. Isso não cria um risco no caso de uma vitória democrata nas eleições de 2020? Existem convergências com o governo Trump, e há uma série de ações que tentamos implementar por conta dessa afinidade — como o apoio americano para a entrada do Brasil na OCDE. Se vier um governo com menos afinidade, veremos como fazer. Essa perspectiva não me preocupa, até porque há várias visões no Partido Democrata.

Haveria afinidades, digamos, com um governo de Joe Biden? Não queria comentar porque admiro muito o presidente Trump, por uma série de visões que, até onde sei, não estão presentes no pensamento do Joe Biden. Trump oferece a perspectiva de revalorização da nação como um espaço político fundamental. Chamam de nacionalismo, mas é mais do que isso. É uma visão de mundo que compartilho em grande medida porque acho que ela é boa para o Brasil e para outros países. Não vemos o mesmo tipo de atitude em várias correntes democratas, mas isso não quer dizer que não se possa trabalhar com elas. Estamos criando diversas ações permanentes na relação com os Estados Unidos.

A entrada do Brasil na OCDE poderia ser obstruída? Espero que não, porque essas coisas se baseiam no interesse compartilhado. Tanto o Brasil tem interesse em aderir à OCDE quanto os Estados Unidos em ver o Brasil lá. O mesmo vale para o acordo de salvaguarda tecnológica e de aliado preferencial extra-Otan. Não vejo os democratas retroagindo nessas questões.

A aproximação do Brasil com Israel e o aceno de uma futura embaixada brasileira em Jerusalém não trazem um ônus desnecessário para o comércio com os países árabes? Essa é uma falsa percepção, uma visão muito abstrata. Na prática, não é assim. Nossa realidade é de aprofundamento também da relação com os países árabes, sem nenhum prejuízo para os nossos negócios. Estamos criando várias oportunidades. O chanceler do Marrocos esteve aqui recentemente para tratarmos da questão agrícola, assim como o dos Emirados Árabes.

Representantes da Frente Parlamentar Evangélica reuniram-se com o senhor recentemente. Eles pressionaram pela abertura da embaixada em Jerusalém? Não vieram pressionar, não. Foi uma ideia que surgiu de uma conversa minha com o presidente da frente, Silas Câmara, para falarmos sobre a ampla agenda de objetivos comuns que temos. É muito benéfico que exista o interesse da bancada evangélica em Israel, pois dá raízes a esse relacionamento que só trará benefícios para o Brasil.

Em relação ao conflito Israel-Palestina, o Brasil ainda defende a solução dos dois Estados? É a nossa posição, da qual não saímos. Se houver toda a armação política para permitir a convivência pacífica de Israel com o Estado Palestino, será a solução que todos consideramos produtiva e promissora. Precisamos sair do engessamento da questão Israel e Palestina, pensar em novas perspectivas e ideias.

A embaixada brasileira será instalada em Jerusalém neste governo? Continua em estudo. No momento, queremos trabalhar com o que temos agora para abrir o escritório de comércio e investimentos na cidade.

O setor de agronegócios manifestou, no início do governo, receio por suas opiniões sobre a China. O que mudou na sua posição sobre o país asiático? Nunca houve um atrito com a China. Houve interpretações de que uma declaração ou outra que eu dei poderia resultar em algum problema, o que nunca se materializou. A minha visão coincide com a de todo o governo: a China é um parceiro econômico de primeira linha, com o qual queremos não só continuar como aumentar os negócios. O Itamaraty também apoia o esforço da ministra da Agricultura, Tereza Cristina, de ir até a China para tentar abrir novos mercados. Outros pensaram que a aproximação com os Estados Unidos seria vista como um problema pela China, mas isso não nos foi passado de forma nenhuma por quem quer que fosse.

Mas o senhor declarou que o Brasil não pode “vender a alma” para exportar minério de ferro e soja para a China. Mantenho inteiramente minha convicção de que no relacionamento com qualquer país o Brasil tem de manter seus valores e princípios, e não sacrificar sua visão de mundo.

A China é uma ameaça para o Brasil? Não. Vemos a China como um parceiro econômico de primeira grandeza, que de maneira nenhuma nos cerceia na capacidade de defender nossos valores.

Em artigos, o senhor já criticou a imigração ilimitada que estaria minando a identidade europeia. O Brasil imporá alguma trava à imigração? Não pensamos em travas. A imigração está sob controle. A crise da Venezuela cria uma pressão muito grande, sobretudo em Roraima, mas não vamos impor limites. A imigração é extremamente bem-vinda, sempre de acordo com as nossas leis e a nossa identidade. No caso da Europa, o que vemos é uma imigração maciça e que em muitos casos cria certo desafio à identidade nacional dos países europeus.

O governo concedeu isenção de vistos a americanos, canadenses, australianos e japoneses. A medida teve os resultados esperados? Existem números muito claros a partir da reserva e compra de passagens, que aumentou em 250% desde a medida. É um ganho efetivo e imediato: fala-se em 1 bilhão de dólares por ano em ingresso adicional pelo turismo.

“Para mim, a Terra é redonda. Mas talvez a intenção do professor Olavo seja chamar atenção para a necessidade de entender melhor o método científico. A ciência precisa de questionamento”

Há interferência dos militares no Itamaraty? Essa não é uma questão que se coloca dessa maneira. Temos um governo que procura ser coeso. É uma das grandes inovações do presidente Bolsonaro: tentar fazer com que o governo funcione como uma equipe, e não cada ministério isoladamente, como é a tradição no Brasil. Temos uma agenda ampla entre Itamaraty e Ministério da Defesa, por exemplo.

O vice-presidente Hamilton Mourão recentemente elogiou o secretário-geral do Itamaraty, Otávio Brandelli, que seria uma “força de moderação”. Também pediu mais pragmatismo na política externa. Foi uma ingerência na sua pasta? Não quero interpretar declarações do vice-presidente, com quem tenho um excelente relacionamento, aliás. Talvez haja a percepção equivocada de que existem diferenças de política externa entre mim e o secretário-geral. Não existem. Tudo é um esforço coerente e que converge para as nossas diretrizes, que são traçadas pelo presidente.

O senhor já ouviu alguma orientação do filósofo Olavo de Carvalho sobre política externa? Não, nunca discutimos nada tão específico. É sempre intelectualmente instigante conversar com o professor Olavo. Mas tenho falado com ele muito raramente.

Recentemente, Olavo de Carvalho levantou a discussão sobre terraplanismo nas redes sociais. Qual sua avaliação do tema? Para mim, a Terra é redonda. Mas é importante que haja esse espírito de questionamento. Talvez a intenção do professor Olavo seja chamar a atenção das pessoas para a necessidade de entender melhor o que é o método científico, e que a ciência precisa de um questionamento permanente. As pessoas devem ter os olhos abertos para o que é a evolução da ciência, sem se pautar por dogmas, que são contrários ao espírito científico.
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Fonte:  https://veja.abril.com.br/politica/nacionalismo-suave-ernesto-araujo/ 21/06/2019