sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Isabel Allende: ‘A democracia está em perigo’.


 
 Em ‘Longa Pétala de Mar’, Isabel Allende relembra história de refugiados no Chile 
que escaparam da Guerra Civil Espanhola — Foto: Lori Barra/Divulgação

Isabel Allende lança livro sobre refugiados e diz que, apesar de preocupada com direita radical, já viveu 
‘o suficiente para saber que tudo passa’

Por João Bernardo Caldeira — Para o Valor, do Rio

Nascida no Peru, criada no Chile, exilada na Venezuela e residente nos Estados Unidos, onde vive desde 1987, Isabel Allende, de 77 anos, dedicou-se ao tema da expatriação em seus últimos livros. O recente “Longa Pétala de Mar” (Bertrand Brasil, tradução de Ivone Benedetti, 280 págs., R$ 49,90) conta a saga da família Dalmau, que embarcou no lendário navio Winnipeg, espécie de Arca de Noé organizada pelo poeta e diplomata chileno Pablo Neruda (1904-1973).

Selecionados pessoalmente pelo escritor em nome do governo do Chile, cerca de 2,2 mil refugiados conseguiram escapar da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), que opôs comunistas e nacionalistas liderados pelas tropas do general Francisco Franco (1892-1975). Após um mês de travessia, os espanhóis foram recebidos com efusivo clamor de boas-vindas, ao som de bandas e cantos, no porto de Valparaíso, no mesmo dia em que se declarou a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), em 3 de setembro.

 
“Dizem que é um país progressista e bem-sucedido economicamente, 
mas onde está o dinheiro? Concentrado nas mãos de poucas pessoas”, 
diz Isabel sobre Chile e protestos — Foto: Esteban Felix/AP

Os protagonistas da trama, o médico Victor Dalmau e a pianista Roser Bruguera, enfrentam outro golpe militar, no Chile, e também se refugiam na Venezuela, tal como a escritora. Seu romance de estreia, o aclamado “A Casa dos Espíritos” (1982), utiliza uma epopeia familiar durante a eclosão da ditadura chilena para trazer à tona conflitos e contradições de uma sociedade conservadora, católica e patriarcal. Se o primeiro livro surgiu de uma carta pessoal destinada ao seu avô, mais uma vez Isabel esmiúça suas impressões e memórias de personagens que conheceu na vida real, encorpados por minuciosos detalhes históricos.

Por trás dessas referências diretas à realidade está o desejo de estabelecer paralelos com questões atuais, como imigração, feminismo e outras formas de exclusões políticas, sociais e econômicas. No momento em que o Chile é tomado por inesperadas manifestações populares, também foi o período em que Isabel perdeu seu padrasto, Ramón, e, meses depois, sua mãe, Panchita. Assim se foram as conexões mais profundas com a sua terra natal.


Livro de Isabel cita a “Arca de Noé” do poeta e diplomata Pablo Neruda, 
que selecionou para o governo do Chile 2,2 mil refugiados 
da Guerra Civil Espanhola — Foto: Michel Lipchitz/AP

Crítica do presidente americano, Donald Trump, e cada vez mais enraizada nos EUA, a escritora - a mais vendida em língua espanhola no mundo - enxerga nas reviravoltas de seus livros os mesmos movimentos cíclicos que ocorrem na vida real.

“Sim, a democracia está em perigo, porque sempre existem forças fascistas que, durante circunstâncias erradas, podem emergir”, diz ao Valor Isabel Allende, de sua residência, em San Rafael, na Califórnia. “Mas talvez a democracia não seja a melhor solução política para o século XXI.”

Valor: Por que a senhora decidiu abordar o tema de “Longa Pétala de Mar”?
Isabel Allende: Estava pensando sobre o que escrever, e teria de ser sobre refugiados, que hoje vivem uma situação que realmente me aborrece. A perda das origens e a expulsão de casa é um tema que está no noticiário e me toca pessoalmente. Fui filha de diplomatas, viajei toda a minha infância, me tornei uma exilada política na Venezuela e hoje sou uma imigrante nos Estados Unidos. Tenho uma fundação que trabalha com imigrantes, conheço muitas histórias. Por isso abordei a questão em meus últimos três livros, “O Amante Japonês”, “Muito Além do Inverno” e “Longa Pétala de Mar”.

Valor: E então a senhora optou por escrever baseada em fatos?
Isabel: Lembrei da história de Victor Pey [1915-2018]. Conheci-o em 1976, na Venezuela, para onde tínhamos escapado por conta do golpe militar no Chile, onde ele chegou a ser preso. Victor retornou ao país quando a ditadura acabou, e lá viveu e constituiu família. Quando [Francisco] Franco morreu, em 1975, voltou para Espanha, mas não encontrou nada do país que se lembrava. Morreu ano passado, seis dias antes que eu pudesse enviá-lo o manuscrito deste livro, que dedico a ele. Aos 103 anos, ainda dirigia todos os dias o seu carro até o escritório, forte e totalmente lúcido. Foi uma fantástica fonte de informação. A história estava toda lá, só tive de escrevê-la.

Valor: Assim como em “A Casa dos Espíritos”, o livro aborda a ditadura militar chilena, os embates entre progressistas e conservadores e o peso das tradições familiares. Seriam essas as suas obsessões como escritora?

Isabel: Sim, acho que fico sempre retornando para a história que eu mais conheço, sob diferentes ângulos. Tendo a escrever sobre esse Chile do passado, o trauma do golpe militar, que eu vivi. Minha mãe criou três filhos. Meu pai a abandonou quando estava grávida do terceiro. Não tenho nenhuma memória do meu pai biológico, absolutamente ausente. Para sustentar os filhos, ela se mudou para a casa do pai dela, onde cresci. É como a família Del Solar deste livro: classe alta, muito conservadora, extremamente católica e patriarcal. O país já mudou completamente, mas as minhas raízes estão naquele ambiente pesado da casa do meu avô. Eu olhava para minha mãe e não queria ter uma vida como aquela, dedicada apenas a criar os filhos. Queria ter a vida do meu avô, que tinha poder, dinheiro, liberdade. Eu precisava escapar.

Valor: Podemos então dizer que é um livro autobiográfico?
Isabel: Minha vida é marcada pela ditadura chilena. Eu não seria uma escritora hoje se não fosse o golpe militar, que me forçou a sair do país e começar tudo do zero. Mas não é um livro autobiográfico, porque são histórias de outras pessoas. Algumas realmente existiram, mesmo que eu tenha modificado alguns detalhes. Victor foi realmente alto, magro e com tendência à depressão por ter testemunhado muitos horrores. Foi amigo de Salvador Allende [presidente do Chile até o golpe militar], com quem jogava xadrez. E pôde retribuir Neruda por tê-lo salvado no Winnipeg: o escondeu da polícia em sua casa. A história do padre que vendia bebês indesejados de famílias tradicionais, como está no livro, aconteceu muito próxima da minha família. O padre era primo da minha mãe, e não foi o único, aliás. E há ainda essa presença de mulheres que não eram passivas e submissas como muitos imaginam. Basta olhar para a história. Muitas trabalharam em fábricas, lutaram no front. No Chile, a mulher é o pilar da casa e da sociedade. Eu não inventei essas mulheres fortes, elas estão por aí, ao nosso redor. Utilizei muitos aspectos reais e fundi todas essas coisas.

Valor: Esse clima presente no livro, de polarização política, nervos à flor da pele e ascensão de forças conservadoras, procura fazer alusão à atualidade?
Isabel: Não escrevo para passar uma mensagem. Escrevo uma história porque preciso escrevê-la. Estou interessada, sim, em questões sociopolíticas. E preocupada com a atual ascensão da direita, de pessoas como Bolsonaro e Donald Trump. Mas vivi o suficiente para saber que tudo passa. Tivemos uma ditadura no Chile por 17 anos, com uma repressão brutal, censura à imprensa, partidos políticos proibidos. Nós pensávamos: como isso pode mudar, se eles detêm o poder? Mas um dia acabou. Estamos num momento muito ruim, mas vai mudar - espero que não para um governo repressor de esquerda. Não queremos algo como ocorreu na Venezuela. O país está quebrado. Governos de esquerda também não foram bem. Talvez os jovens que assumirão o poder daqui a alguns anos tragam novas formas de governar. Porque do jeito que está, não vem funcionando.

Valor: Ao retratar trajetórias de expatriados da história, a senhora assim humaniza os refugiados presentes cotidianamente no noticiário?
Isabel: Sim, são pessoas com sonhos, esperanças, medos. O maravilhoso nessa história é que os refugiados foram recebidos de braços abertos. Havia uma grande oposição da direita e da Igreja Católica, e o discurso era exatamente o mesmo que ouvimos hoje nos Estados Unidos: vão tomar nossos empregos, são criminosos, estupradores, ladrões, traficantes. Mas a população deu boas-vindas: ofereceram amizade, empregos e imediatamente essas pessoas foram incorporadas à sociedade, em vez de serem marginalizadas, como vem acontecendo hoje. Os descendentes do Winnipeg, professores, músicos, cientistas, astrônomos, contribuíram imensamente para a nossa cultura.

Valor: O mundo necessita de mais Winnipegs, em vez de fronteiras fechadas?
Isabel: Precisamos de uma solução global para um problema global. Construir muros não resolve nada. Também não adianta mais guerras, nem dividir o mundo entre os que possuem e os que não possuem. Não podemos manter pessoas em centros de detenção, como acontece na fronteira dos Estados Unidos. As pessoas só abandonam sua terra natal porque estão desesperadas. Como acontece agora na Síria, por exemplo. Por que as pessoas fogem de Honduras, Guatemala, El Salvador? Porque são países controlados por gangues e traficantes, em que a população vive com medo. Se isso não mudar, vão continuar fugindo. Precisamos encontrar soluções nos lugares de origem. Muito desta atual crise na América Central foi causada pelos Estados Unidos, que apoiaram os governos errados.

Valor: Como está a atmosfera nos EUA diante das tensões com o Irã?
Isabel: Existe a suspeita de que Trump possa iniciar uma nova guerra para ser reeleito. Porque nenhum presidente americano perdeu uma eleição durante uma guerra. Há uma preocupação muito grande, porque ninguém quer uma nova guerra. O conflito no Iraque foi um desastre total. É muito fácil entrar numa guerra, mas muito difícil sair dela.

Valor: A senhora não concorda com quem defende que o bom desempenho da economia americana será capaz de reelegê-lo?
Isabel: Esse êxito é percebido apenas pelo mercado financeiro e beneficia um certo grupo de pessoas. As classes média e baixa, a maioria das pessoas, está estrangulada. Os cortes de impostos beneficiaram apenas corporações. Como no Chile, observando os números não há distribuição de renda. Quem vive endividado não está interessado no mercado financeiro, que não o afeta.

Valor: A senhora ainda costuma visitar o Chile? Acompanhou as manifestações?
Isabel: Ia muito porque meus pais estavam vivos. Mas ambos morreram no ano passado. Minha mãe tinha 98 anos, e meu pai, 102. Não tenho dúvidas de que a desigualdade social foi o que detonou os protestos. Quando você visita o Chile, não parece um país pobre. Mas as pessoas estão endividadas e vivem graças ao crédito. Parcelam até as compras de supermercado, porque não têm dinheiro para comprar um frango. E não importa quão duro trabalhem, nunca irão zerar suas dívidas.

Valor: Como explicar esses súbitos protestos?
Isabel: Foi uma grande surpresa, porque o Chile possui essa reputação de ser o único país da América Latina a gozar de estabilidade social e econômica. Dizem que é um país progressista e bem-sucedido economicamente, mas onde está o dinheiro? Concentrado nas mãos de poucas pessoas. Tudo foi privatizado, inclusive a água que bebemos. E 40% da população não pode pagar por serviços básicos como eletricidade, educação, saúde, água e transporte. Toda essa pressão manteve-se soterrada por 30 anos, e o aumento de alguns centavos na passagem do metrô foi a gota d’água. Subitamente o país explodiu. Milhões de pessoas nas ruas de Santiago quebrando o metrô, queimando lugares, sem um líder, sem ideologia, sem um partido político, apenas raiva. Especialmente os mais jovens, estão furiosos e pensam: “Que espécie de sociedade é esta em que algumas poucas pessoas detém todo o poder político e econômico?”.

Valor: As manifestações de 2013 no Brasil também foram detonadas pelo aumento de passagens, seguidas pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff. Algumas figuras próximas ao atual governo deram declarações sobre a possibilidade de fechar o Congresso ou o Judiciário. A democracia está novamente em risco?
Isabel: Sim, a democracia está em perigo porque sempre existem forças fascistas que, durante circunstâncias erradas, podem emergir. Quem imaginaria que haveria uma ascensão de novos partidos nazistas? Não há nada novo. Escrevi diversos romances históricos e vejo que as coisas sempre retornam. Os nazistas são muito anteriores a Hitler. As pessoas que votaram em Trump já estavam lá antes dele surgir. Então, claro que há muitos perigos contra a democracia, ainda mais na América Latina, onde infelizmente existe essa tradição de ditaduras e repressão. Mas talvez a democracia não seja a melhor solução política para o século XXI. Precisamos procurar opções melhores.

Valor: A violenta repressão às manifestações chilenas seria uma herança do passado militar?
Isabel: Há décadas existem muitos problemas com a polícia chilena. Claro que começa pelo fato de que, durante 17 anos, eles podiam fazer o que quisessem impunemente. Já na democracia, as instituições militares permaneceram intocáveis, para evitar uma nova crise. E não há muito diálogo entre militares e a polícia. Uma das coisas que os protestos estão reivindicando é justamente a reorganização completa da polícia, envolvida com violência e corrupção.

Valor: O livro sugere que Salvador Allende não cometeu suicídio. Qual era a sua relação com o então presidente do Chile, morto quando a senhora tinha 29 anos?
Isabel: Salvador Allende era primo do meu pai [biológico], com quem, como disse, não tive relação. Depois de separar-se, minha mãe se casou com um amigo de Salvador, que o nomeou embaixador da Argentina quando chegou à Presidência. Nos víamos regularmente num contexto familiar. Pode ser que ele tenha cometido suicídio, mas não acho que essa informação seja relevante. O fato é que morreu no palácio presidencial, durante a deflagração do golpe.

Valor: O presidente Bolsonaro afirma que não houve ditadura no Brasil. Um juiz do Supremo Tribunal Federal optou por chamá-lo de “movimento”. A senhora acredita que existe uma tentativa de reescrever a narrativa desses episódios da história?
Isabel: Terríveis atrocidades e abusos dos direitos humanos foram cometidos. Não há como esconder, nem no Brasil nem no Chile. É fascinante como tentam modificar as narrativas quando querem fazer a cabeça das pessoas. No Chile, logo depois do golpe, algumas palavras foram proibidas. Não se podia mais dizer “companheiro” ou “democracia”. Os livros escolares foram reescritos. Tentaram transformar o golpe em movimento patriótico em reação ao comunismo, de resgate dos valores ocidentais e cristãos. Esse era o slogan. Enquanto isso, torturavam e atiravam pessoas a partir de helicópteros. Essa era a realidade. Hoje, nos Estados Unidos, há toda uma controvérsia sobre o discurso a ser praticado nas escolas. O país esta dividido entre a narrativa dos que apoiam Trump e os que não apoiam. Então podem chamar de movimento, revolução ou o que quer que seja, mas foi uma ditadura. É possível esconder a verdade e enganar as pessoas por algum tempo, mas não para sempre.

Valor: A intenção com esse livro foi também homenagear Neruda, cuja poesia dá título ao livro e é citada ao longo da obra?
Isabel: Sim, toda aventura do Winnipeg não teria sido possível sem Neruda. Ele teve a ideia, convenceu o presidente [Pedro Aguirre], conseguiu o navio e os fundos necessários, selecionou as pessoas e se certificou de que chegariam ao Chile. As feministas mais jovens, do movimento #MeToo, estão furiosas com Neruda porque ele confessou em suas memórias que estuprou uma mulher. Talvez ele tenha cometido esse crime, eu não sei. Mas não devemos censurar um trabalho por conta da vida de seu criador. Quem possui uma vida completamente limpa? Teríamos de eliminar o trabalho de praticamente todo mundo. Devemos censurar a música de Michael Jackson [1958-2009], um grande artista mas com uma vida esquisita, por causa do ser humano que ele foi?

Valor: A senhora se considera feminista? Como observa essa nova geração?
Isabel: Claro! Toda mulher inteligente deveria ser feminista ao observar a situação da mulher no mundo. Cada geração cria as condições para quem vem depois, é uma continuidade. O que acontece hoje é muito interessante, colocaram o movimento em outro patamar. Há uma nova conscientização, não falávamos dessas coisas quando nasci. A existência de jovens que não são racistas é algo totalmente novo.

Valor: A literatura ainda é escrita sob o ponto de vista masculino?
Isabel: Quando publiquei “A Casa dos Espíritos”, 38 anos atrás, diziam que eu era a única voz feminina na literatura latino-americana. Não é verdade, havia muitas vozes. Mas com o sucesso do meu livro subitamente os editores perceberam que havia outras escritoras e que mulheres gostam de ler livros escritos por outras mulheres. Então hoje há um enorme mercado para literatura feminina. No mundo todo, a maior parte dos leitores e compradores de livros são mulheres, o que mostra como a indústria editorial mudou. Há tantos escritores homens quanto mulheres. Ainda assim, homens conseguem mais atenção: seus livros recebem mais resenhas, são melhor avaliados e ensinados nas universidades.

Valor: A senhora pretende um dia retornar ao Chile? Sente-se uma refugiada ou eterna estrangeira?
Isabel: Quando eu volto ao Chile, fico muito feliz por uma semana, mas na segunda já começo a me sentir como uma estrangeira em meu próprio país. Não me sinto uma refugiada, mas uma pessoa que não possui raízes em apenas um lugar. Eu poderia viver aqui na Califórnia, no Chile ou onde for. Não sei o que será do futuro. Minhas raízes estão em meus livros.
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