Estamos assistindo nos dias atuais a um preocupante recuo nas bases
populares e em vários movimentos sociais, em particular, de cariz
político, do engajamento por uma transformação da sociedade, seja a
nível nacional, seja a nível mundial. Importa reconhecer que vigora
pesado sentimento de impotência e também de melancolia. À parte desta
constatação, estamos igualmente assistindo nos países centrais (USA e
Europa) a juventude universitária se rebelando contra a desproporcional,
indiscriminada e genocida reação do estado de Israel contra a
população da Faixa de Gaza como resposta ao ato terrorista do Hamas a 7
de outubro do ano passado.
O stablishment político, dominante no mundo, a partir do
Norte Global, reage com violência inusitada contra os manifestantes. Na
Alemanha qualquer manifestação pro Palestina da Faixa de Gaza é
oficialmente proibida e logo reprimida ao menor sinal de apoio à
causa palestina e contra o genocídio que lá está ocorrendo. Nos USA a
repressão policial ganha expressões violentas contra estudantes e
professores universitários, até contra uma candidata à presidência do
país.
Entre nós no Brasil e em geral na América Latina se nota marasmo e
ausência de manifestações públicas, sequer contra o genocídio, em
especial de 14 mil criancinhas e a morte de cerca 80 mil cidadãos sob os
pesados bombardeios israelenses, usando de forma criminosa a
Inteligência Artificial (IA) para assassinar determinadas pessoas e sua
inteira família, dentro de suas próprias casas.
Precisamos tentar entender o porquê dessa inércia. Aduzo alguns
pontos que nos permitem vislumbrar algum entendimento da atual situação
seja face à grave situação concernente à Ucrânia sendo arrasada pela
brutalidade russa e seja ao massacre e ao genocídio na Faixa de Gaza.
Vigora em grande parte da sociedade, em particular no Sul Global mas
não excluindo porções no Norte Global, um forte sentimento de
impotência. Em primeiro lugar, objetivamente, o sistema
capitalista em sua expressão mais exacerbada do neoliberalismo da escola
de Viena/Chicago se impôs no mundo todo. Quem resiste sofre repressões
políticas, ideológicas e eventualmente golpes de estado como foi o caso
do impeachment da Dilma Russeff. Procura-se impor o que Carl Polanyi já
em 1944 chamou de “A grande transformação”: passar de uma sociedade com
mercado para uma sociedade de puro mercado. Vale dizer, tudo vira
mercadoria, a vida humana, órgãos, sementes, água, alimentos, tudo e
tudo é posto no mercado e ganha seu preço. Isso já fora previsto em 1847
por Marx em “A miséria da filosofia”.
Esse fato objetivo gera uma reação subjetiva:
começa-se a ver o mundo sem esperança, de que não há alternativa
viável à essa enormidade mundializada. Ela se exprime pela TINA(There is no Alternative):
“Não há outra Alternativa”. O efeito é um sentimento de impotência e de
desencanto recalcado. Daí se deriva uma atitude derrotista de que não
vale a pena ir contra o sistema, por ser grande demais e nós pequenos
demais. Obrigam-se a fazer concessões para sobreviver num mundo
profundamente desigual e injusto, produtor de melancolia. Esta irrompe
quando não se percebe nenhuma luz no fim do túnel. Então, por que se
engajar por algo alternativo que não tem chance de triunfar? Este tipo
de mundo não tem jeito mesmo, pensam não poucos. Devemos nos adaptar a
ele para sofrer o menos possível.
Um segundo ponto é a estratégia perversa de elaborada pelo sistema
dominante: criar uma cultura do consumo. Oferecer o maior número de
objetos desejáveis, mesmo que mais de 90% sejam totalmente fúteis e
desnecessários. Trata-se de manipular uma das forças mais poderosas da
psiqué humana: o desejo, cuja natureza já vista por Aristóteles e
confirmada por Freud é a de ser ilimitada.Já foi dito por notáveis
psicólogos (exemplo:Mary Gomes e Allen Kenner) que “este é o maior
projeto psicológico jamais produzido pela espécie humana”: impedir que
os cidadãos deixem de se considerar cidadãos para se transformarem em
simples consumidores e consumidores viciados no consumo.
Para seduzi-los, gastam-se trilhões de dólares em propaganda pela
mídia de massa e com todos os recursos possíveis da sedução. Isto
representa seis vezes mais investimento anual necessário para garantir
alimentação, saúde, água e educação de qualidade para toda a humanidade.
É difícil imaginar perversidade maior. Mas ela é predominante no modo
de vida geral da humanidade que daí emergiu.
A impotência e a melancolia internalizadas fazem com que a maioria
das pessoas, lastimavelmente, dos jovens, não se animem a engajar-se
social e politicamente em algum movimento ou projeto de transformação. A
educação em instituições formais é decisiva para a socialização desta
leitura da realidade. Vandana Shiva, grande cientista e
ecologista-feminista da Índia a chama de “monocultura das mentes”.
Essa monocultura gera nos estudantes consciências ingênuas que esse é o
mundo bom e desejável. Não se dão conta de que são cooptados pelo
sistema imperante e feitos seus reprodutores.
Contra tudo isso Paulo Freire lançou seu projeto educativo e
libertador, a começar com a “Pedagogia do Oprimido”, “Educação como
prática da Liberdade” e concluindo com a educação com amor e esperança.
Cunhou a expressão “esperançar”: não cruzar os braços (esperar
que as coisas por si mudem) mas criar as condições para que a esperança
alcance seus objetivos transformadores.
Como se libertar da consciência ingênua manipulada? Não basta apenas o
processo de conscientização, pois entender criticamente o que acontece,
não quer dizer mudar o que acontece. Temos que passar a uma prática
alternativa, enfrentar o sistema dominante com um paradigma de sociedade
diferente, igualitária, não consumista mas solidária com um modo de
produção fundado nos ritmos da natureza (agroeologia e economia
circular) e outro tipo de democracia ecológico-social, de baixo para
cima, na qual se reconheçam os direitos da natureza e da Mãe Terra,
criando o Todo, a humanidade e a natureza incluídas na grande Casa
Comum, a Mãe Terra.
(A reflexão,buscando as alternativas, virá no próximo artigo)
*Leonardo Boff, teólogo. Escritor. Publicou Cuidar da Casa Comum:pistas para protelar o fim do mundo, Vozes 2024.
"A ação coordenada de muitos países
acertou ao impor limites ao capital ao reduzir a jornada de trabalho e
criminalizar a contratação de mão de obra infantil.
Acertou ao abolir a escravidão. Acerta agora quando protege as
crianças contra a voracidade das mensagens publicitárias", escreve Frei Betto, escritor, autor
de “Por uma educação crítica e participativa” (Rocco), entre outros livros.
Eis o
artigo.
Em 15 de janeiro deste ano, o presidente Lula
sancionou a lei que criminaliza o bullying e o cyberbulliyng,
classificando-os “crimes hediondos” cometidos contra crianças e
adolescentes. O cyberbulliyng é tipificado como praticado nas redes
digitais, aplicativos, jogos online ou “qualquer meio ou ambiente digital”.
Agora, no Brasil, quem cometer cyberbulliyng pode ser preso por até
quatro anos. A lei impede fiança ou anistia aos criminosos. A pena para indução
ou auxílio ao suicídio ou à automutilação vai de dois a seis anos, e pode ser
dobrada se o autor for responsável, na internet, por um grupo, comunidade ou
bolha.
A edição 2022 do Pisa (Programa
Internacional de Avaliação de Estudantes) constatou que 11% dos alunos
entrevistados disseram sofrer bullying com frequência na escola. O
percentual de meninas que declarou ter sofrido várias vezes no mês chegou a
22%. Entre os meninos, 26%.
Qual a saída? Somente uma ação coordenada dos
governos pode impor limites a essa exploração do imaginário. A ação coordenada
de muitos países acertou ao impor limites ao capital ao reduzir a jornada de trabalho
e criminalizar a contratação de mão de obra infantil.
Acertou ao abolir a escravidão. Acerta agora quando protege as crianças
contra a voracidade das mensagens publicitárias. Mas ainda se omite quando se
trata de impedir que o mesmo capital explore o olhar e se aproprie dos dados e
dos códigos neuronais e pulsionais mapeando o desejo das crianças e dos
adultos.
Em seu livro “A superindústria do
imaginário - Como o capital transformou o olhar em trabalho e se apropriou de
tudo que é visível”, Eugênio Bucci afirma que “a
obra de Karl Marx nos entrega uma descrição objetiva do
caráter do século XIX e da Revolução Industrial. O trabalho infantil
grassava nas fábricas de Londres; os capitalistas recrutavam crianças
para jornadas que se estendiam por até 18 horas diárias; os pré-adolescentes, a
força de trabalho mais barata, davam mais retorno: e Marx viu e
descreveu tudo isso.”
“A exploração capitalista mudou de código, mas
aí está, embora não se mostre. (...) Nas big techs o grau de
exploração da Superindústria do Imaginário chegou a um patamar de
tapeações e ocultamentos tão requintado que nem os mais sovinas, sagazes e
impiedosos barões da Revolução Industrial ousariam supor.”
“Numa rede social ou num grande site de busca,
o ‘usuário’, que imagina usufruir de um serviço que lhe é ofertado em generosa
cortesia, é a mão de obra (gratuita), a matéria-prima (também
gratuita) e, por fim, a mercadoria (que será vendida, no todo ou em
partes, em esquartejamentos virtuais, e nem desconfia da gravidade disso).
Nunca o capitalismo desenhou um modelo de negócio tão perverso, tão
acumulador e tão desumano.”
Bucci detalha o
requintado sistema de exploração. “O ‘usuário’ é a mão de obra gratuita porque
é ele quem digita, fotografa, posta, filma e faz tudo. Os conglomerados digitais não
precisam gastar um centavo com digitadores, editores, revisores, fotógrafos,
cinegrafistas, locutores, modelos, atrizes, roteiristas, nada. Absolutamente
nada. O ‘usuário’ trabalha sem parar em frêmitos de gozo, sem cobrar um tostão.
“Não bastasse isso, o mesmo ‘usuário’, além de
mão de obra gratuita, é também a matéria-prima, pois as histórias narradas são
as dele, os gatos e os pratos de comida fotografados são os dele, os delírios
postados, aos quais a Superindústria dá o nome pernóstico de
‘conteúdos’, são os dele.”
“Por fim, o ‘usuário’ é também a mercadoria. A
Superindústria o colhe de graça, como se fosse mato espalhado pelo chão,
e vai comercializá-lo em seguida, no todo ou em partes, no varejo e no atacado,
em sacas ou a granel, a preços trilionários. Os olhos serão vendidos aos
anunciantes. Os dados pessoais serão mercadejados com organizações que
manipulam eleitorados em favor dos neofascistas.”
“Do ponto de vista ético, o que se passa hoje
é pior do que o que se passou na Revolução Industrial. Não, não é
exagero. Pensemos por um minuto. O que é o capital que se apropria de 16 ou 18
horas diárias de trabalho de uma criança comparado ao capital que, dois séculos
depois, se apropria dos processos mais íntimos da formação da subjetividade de
outra criança, durante as 24 horas do dia?“
“O que é o capital que não respeita o
esgotamento das forças físicas do corpo humano comparado ao capital que viola
todas as fronteiras da privacidade e da integridade
psíquica de uma pessoa?”
“O que é o capital que se apossa da mais-valia
do trabalhador comparado ao capital que, além da mais valia do olhar, rouba os
segredos sobre os medos, suas ansiedades e as paixões daqueles a quem chama
cinicamente de ‘usuários’?”
“O que é o capital que extenua até a alma seus
operários comparado ao capital que, além de explorar o trabalho,
transforma o tempo de lazer em formas não declaradas de exploração e de ainda
mais trabalho?”
“O que é o capital que rouba a força muscular
de uma criança comparado ao capital que lhe rouba, além da infância, a
imaginação que ela poderia ter?”
“O que é o capital que manda a polícia
reprimir greves comparado ao capital que se instila no desejo de garotos e
garotas, ainda na primeira infância, de matar, lá dentro, qualquer centelha de
rebeldia futura?”
“As democracias ainda consideram os meios
de comunicação meros distribuidores de ‘conteúdos’, e não meios de produção
que empregam o olhar para a fabricação da imagem da mercadoria. Sofremos de um
déficit de paradigma teórico.”
“As autoridades reguladoras ainda não
assimilaram a verdade evidente de que os meios de comunicação, mais do
que um dispositivo de entrega de informação e divertimento, são meio de
produção de valor de gozo, que exploram o trabalho do olhar sem remunerar
ninguém por isso.”
“Há outras coisas das quais as autoridades nem
desconfiam. Elas ainda não compreenderam devidamente que, quando as tecnologias
rastreiam e extraem dados dos usuários – como fazem todos os serviços de
streaming e todos os sites disponíveis na internet -, engrenagens
ocultas corrosivas entram em ação.”
“Os dados coletados gratuitamente pelos conglomerados
contêm chaves do desejo inconsciente, de tal maneira que, como já se tornou
comum dizer, os algoritmos dispõem de mais conhecimento sobre as predileções
dos sujeitos do que os próprios sujeitos.”
“Os dados fornecem uma espécie de
mapeamento das pulsões, dos impulsos, dos instintos, dos reflexos, dos
ritmos e dos circuitos neuronais de cada indivíduo. Os algoritmos do capital
conhecem a fundo os códigos mais íntimos do desejo inconsciente de cada
indivíduo, mas esse mesmo indivíduo não conhece nada sobe os códigos secretos dos algoritmos.”
Em resumo: ou os governos estabelecem limites
legais para esse modo de produção, ou seguirão cada vez mais limitados.
Neste feriadão aproveitei para reler alguns textos
de Celso Furtado. Não me surpreendi com a pertinência e a acuidade de
um dos maiores pensadores a influenciar a visão de Brasil de minha
geração. "A Formação Econômica do Brasil”, que li aos dezoito anos, me
abriu a vocação de servidor do Estado brasileiro.
Chamo Celso Furtado de pensador e não de economista.
Celso foi sobretudo um humanista no sentido amplo da palavra e a cada
ano sua visão de Brasil ultrapassa os limites temporais em que atuou
como membro do Executivo brasileiro. Na Economia e na Cultura.
A releitura dos textos me fez olhar com grande tristeza
para os anos do período autoritário iniciado em 1964, quando a
intolerância ao contraditório expulsou deste país intelectuais e
políticos como Furtado e JK, diplomatas como Antonio Houaiss, homens que
inegavelmente instilaram no pensamento político brasileiro a dimensão
inegável de nosso país e de seu destino evidente de ser um dos maiores
países democráticos a serviço da paz e do desenvolvimento econômico.
Na esteira desta nostalgia, me vieram à lembrança
alguns momentos de exaltação cívica, alguns de que participei, outros
que acompanhei à distância, todos porém sempre aguardados e bem-vindos
por serem evidências de uma resistência à prepotência e à supressão dos
direitos fundamentais do cidadão e do Estado Democrático de Direito.
A clareza com que Celso Furtado analisa as
consequências do modelo econômico da ditadura para o futuro brasileiro -
futuro que hoje é o nosso presente - me fez deplorar que a rigidez
ideológica das autoridades de então nos tenha privado da contribuição de
Celso Furtado, àquela altura já apontava as distorções a advir de um
remendo indevidamente chamado de “milagre brasileiro”.
De melancolia em melancolia, não me surpreendeu
igualmente o uso abusivo da palavra milagre no contexto da situação das
contas públicas, da dívida externa e da inflação que marcou o fim do
regime autoritário a nos deixar por muitos anos com a soberania política
cortada.
E a palavra milagre parece soar como advertência para
os tempos que correm, onde decididamente se incluiu a religião com se
ideologia fosse, a colocar em risco um dos direitos mais privados do
cidadão. Sem procurar assinalar os diversos pontos para os quais a
análise de Furtado merece reflexão contemporânea, assinalaria
basicamente a questão da desigualdade social sobre a qual ele tece
observações que poderiam ser extraídas dos livros mais contemporâneos.
A referência imediata é Piketti, cujos trabalhos sobre a
desigualdade social vem sendo o maior contraponto ao neoliberalismo,
raiz da maior transferência de recursos dos mais pobres aos mais ricos.
E aqui chego à razão de ter escolhido o pensamento de Furtado como pano
de fundo para este artigo de hoje. A visão prospectiva com que nos
brinda Furtado deveria nos alertar para os riscos que correremos se
permanecermos nesta dicotomia, nessa incapacidade de perceber que a
solução para os problemas econômicos e sociais do Brasil - mas não
apenas dele - não se encontra em fórmulas de um passado que não deu
certo e sim na compreensão de que os tempos de hoje exigem soluções
solidárias.
Durante trinta anos, o neoliberalismo, e sua parceira
globalização, procuraram esvaziar o desenvolvimento econômico de seu
componente mais sensível, o desenvolvimento humano. Desde os anos 80,
governos de países ocidentais acreditaram que apenas com a remoção das
proteções ao emprego, aos sindicatos, das leis anticompetição se poderia
chegar ao crescimento do "bolo", cuja hipotética divisão beneficiaria a
todos.
O resultado da eliminação dos controles governamentais
liberou o espírito do lucro a qualquer preço e levou a fenômenos
políticos hoje estudados como anomalias em crescente expansão.
Obviamente, a maior preocupação ocorre com o trumpismo a se transformar
num quase culto à regressão política de mistura com uma efervescência
religiosa muito pouco cristã.
No Brasil, há quem se esqueça de que o neoliberalismo
parece ser uma nova forma de ópio a anestesiar nosso civismo em prol de
um Brasil finalmente liberto e definitivamente sintonizado com a justiça
social que perseguimos desde sempre.
Mais do que nunca, o divisionismo político chega às
raias do cinismo e do deboche a impor uma reflexão sobre o que queremos
realmente fazer deste país. Somos até hoje possuidores de recursos
naturais e minerais que nos permitem um salto tecnológico para um futuro
de prosperidade. O atraso não é nossa herança. Nossos erros do passado
são talvez parte essencial para neles não reincidir por ódio ou
ignorância.
Enquanto tivermos nossa Constituição de
1988 como parâmetro civilizacional, enquanto tivermos o voto como
manifestação de nossa soberania, enquanto aceitarmos o que é de Deus sem
confundir com o que é de Cesar, não há nada que nos possa desviar de
nosso destino de povo amante da paz, solidário com o futuro de nossos
semelhantes sejam quais forem nossas diferenças de cor, sexo e religião.
A felicidade é uma construção coletiva.
FOTO: Hannibal Hanschke/REUTERS - 07.JUL.2017Protesto contra o G20 em Hamburgo, na Alemanha
O
‘Nexo’ conversa com Marcos Nobre, presidente do novo Centro para
Imaginação Crítica, do Cebrap, sobre as alternativas que emergem da
crise do neoliberalismo
O neoliberalismo, enquanto ordem global, está em crise. E o que se desenha no mundo inteiro — com particularidades em cada local — é uma disputa pelo que vem depois. Em outro momento, embate similar resultou em guerra, algo que é preciso evitar.
É o que disse ao Nexo Marcos Nobre, professor titular de filosofia política da Unicamp e presidente do CCI (Center for Critical Imagination, ou Centro para Imaginação Crítica), lançado no âmbito do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) na sexta-feira (26).
Com apoio da organização Open Society Foundations, o novo centro de pesquisa se propõe a discutir a crise do neoliberalismo, as diferentes crises que derivam dela e os caminhos alternativos. Também pretende trazer a discussão para o debate público brasileiro, considerando também o contexto do país.
O Nexo conversou com Nobre sobre o momento do neoliberalismo e sobre os cenários que se desenham na disputa sucessória da ordem global.
Como o sr. define ‘neoliberalismo’?
MARCOS NOBRE ‘Neoliberalismo’ é um termo em disputa. Portanto, a compreensão do que seja neoliberalismo muda ao longo do tempo. Por exemplo, a noção de neoliberalismo, tal como foi empregada nos anos 1990, 2000 e até mais ou menos meados da década de 2010, foi majoritariamente no sentido de um processo de economicização das relações sociais no seu todo. É como se uma determinada concepção do que deva ser a economia invadisse todas as esferas da vida social.
A partir de meados da década de 2010, passa a ser predominante uma concepção — não negando o caráter de economicização — de incluir também o neoliberalismo como um projeto de organização da sociedade num sentido mais amplo, o que envolve uma determinada concepção do que seja a moral e o bom comportamento dos sujeitos em uma sociedade. A partir daí, você começa a ter uma concepção do neoliberalismo que é muito mais ampla do que só um imperialismo da economia sobre o conjunto da sociedade.
A ordem neoliberal não é só uma ordem econômica que a partir da economia invade toda a sociedade. Ela é uma ordem econômica, moral, política, social… É realmente uma ordem.
O termo ‘neoliberalismo’ é muito usado no debate político. Por exemplo, uma parte da esquerda diz que o atual governo Lula encampou premissas neoliberais na sua condução da política econômica. É o mesmo sentido da palavra?
MARCOS NOBRE É preciso fazer uma distinção. Uma coisa é usar os termos ‘neoliberal’ e ‘neoliberalismo’ na disputa política, como um elemento de caracterização do adversário. E outra coisa é o neoliberalismo como ordem global.
É importante essa distinção, porque, por exemplo, não há a menor dúvida de que o PT, ao chegar ao poder federal em 2003, se colocou contra [o neoliberalismo] e se apresentou desta maneira. Esse é o sentido político, narrativo da palavra ‘neoliberal’.
Mas há um sentido no qual não há como não ser neoliberal. Porque a ordem global é neoliberal. Não tem como um país, dentro de uma ordem global neoliberal, não ser neoliberal. O que dá para fazer é, dentro da ordem global neoliberal, resistir e tentar encontrar a margem de ação possível para ir contra o princípio dessa própria ordem.
Por que o sr. traça a mudança da concepção do neoliberalismo a meados da década de 2010?
MARCOS NOBRE A crise de 2008 é o marco geral do início do declínio do neoliberalismo. Uma crise como a de 2008 é um sinal de que essa maneira de organizar o capitalismo entrou em crise. Afinal, ela produziu uma crise global de efeitos sociais devastadores. Nenhuma ordem social sobrevive a uma crise dessas dimensões sem algum tipo de transformação.
Nos momentos em que o capitalismo entra em crise, é que ele se mostra claramente. É a crise que revela as estruturas do próprio capitalismo.
As lutas sociais que se instalam na década de 2010 são lutas sociais sobre o que será o pós-neoliberalismo. Então você tem as revoltas de 2011 até 2013. Depois, você tem, na segunda metade [da década de 2010], a eleição de líderes que na época eram chamados de populistas. Tudo isso é a crise do neoliberalismo.
Quando na segunda metade da década de 2010 há todos esses fenômenos autoritários emergindo, inclusive em democracias consolidadas, é que fica claro que aquele projeto lá no início, há 40 anos, não era apenas um projeto de liberalização da economia para, a partir da liberalização da economia, alcançar um imperialismo dessa lógica econômica sobre o restante da sociedade. Não. Era algo muito mais amplo, com alianças políticas e coalizões sociais muito mais amplas do que simplesmente uma coalizão econômica.
É possível comparar com a crise de 1929, que também produziu uma grande crise no capitalismo?
MARCOS NOBRE A crise de 1929 foi a crise do liberalismo, enquanto a crise de 2008 foi a crise do neoliberalismo. Esse paralelo é importante. Da crise do liberalismo no final da década de 1920 veio o surgimento de vários modelos de organização social — nazismo, fascismo, o New Deal nos EUA, o nacional-desenvolvimento no Brasil, e havia ainda naquele momento a alternativa da União Soviética.
Na situação em que nos encontramos [agora], também já ficou claro — mesmo para as elites que acumularam poder e que estão estabelecidas na ordem neoliberal — que não é mais possível sustentar essa ordem. Não é algo só acadêmico, é algo prático.
Já estão acontecendo movimentos de transformação interna dessa ordem neoliberal. Mas isso está em disputa. Ou seja, uma ordem pós-neoliberal tem alternativas, assim como havia alternativas na década de 1930.
Quais são as principais alternativas?
MARCOS NOBRE Hoje parece que temos quatro em disputa. Temos a alternativa das autocracias; a alternativa do regime de partido único; a saída do novo progressismo dentro dos países que ainda são democráticos; e a saída autoritária dentro dos países que ainda são democráticos.
Não são as mesmas possibilidades da década de 1930, mas elas estão aí. A enorme diferença é que não temos diante de nós — pelo menos neste momento — um conflito de escala global certo, como foi a Segunda Guerra Mundial, que foi uma solução bélica para essas alternativas.
A tentativa hoje é de transitar da crise do neoliberalismo para uma nova ordem, sem que sempre se passe por um conflito de natureza global. É isso que está em jogo hoje. E essa saída pode ser tanto uma saída autoritária como uma saída democrática.
Não temos ainda uma vitória definitiva de alguns modelos — porque é claro que não vamos ter um modelo só, assim como na década de 1930 havia modelos diferentes. Não sabemos qual vai ser o resultado, mas esperamos que não seja necessária uma guerra global para resolver essa disputa.
O modelo para superação do neoliberalismo é necessariamente capitalista? Ou há espaço para alternativas?
MARCOS NOBRE Não está no horizonte uma alternativa não-capitalista de superação da crise do neoliberismo. A não ser, claro, para as pessoas que consideram a China como uma alternativa não-capitalista. Mas não acho que seja o caso. Pode ser que surja algo nos próximos anos. Mas hoje não é possível enxergar isso.
O sr. destacou que duas das alternativas se dão dentro dos países democráticos. Por que esse destaque?
MARCOS NOBRE É aquela velha discussão sobre a tal da terceira via. A terceira via nas opções como estão configuradas hoje simplesmente não existe. Dentro das democracias consolidadas, você tem uma disputa entre um bloco que eu chamo de novo progressismo, que é um herdeiro do neoliberalismo progressista.
E você tem um outro bloco que é o que chamo de direita sem medo. É a parte da direita que não tem medo de se aliar à extrema direita. Essa é a disputa hoje nos países ainda democráticos.
Esses campos não têm nada em comum do ponto de vista político. É uma divisão política, não uma polarização, porque são dois projetos de sociedade pós-neoliberal que não podem ser compatibilizados.
Mas eles têm em comum que partem da herança do neoliberalismo. O que os distingue é o que deve ser preservado e o que deve ser descartado do período de 40 anos de neoliberalismo. Essa é a disputa.
Como essa crise se espelha no cenário político brasileiro atual?
MARCOS NOBRE Nós temos essa divisão entre um novo progressismo e a direita sem medo aqui no Brasil. Temos, de um lado, o governo Lula. E, do outro, o bolsonarismo. São exemplos claros, para mim, dessa divisão global. O Brasil não escapa disso: existem dois projetos do que deve ser preservado e o que deve ser descartado do período neoliberal.
O que é imaginação crítica e por que ela é uma ferramenta para este momento de crise do neoliberalismo?
MARCOS NOBRE A imaginação crítica quer dizer muitas coisas. Porque a imaginação crítica não deve ser limitada previamente por uma descrição do que seja.
Existe um lado que é o de mapear alternativas pós-neoliberais que não estão limitadas a essa divisão entre o novo progressismo e a direita sem medo. Precisamos entender o resultado global. É entender o que tem de proposta para paradigma pós-neoliberal no debate atual. E poder apresentar para a sociedade como uma síntese daquilo que está sendo imaginado hoje como pós-neoliberalismo. Essa é outra maneira de entender imaginação [crítica].
Outra maneira é: se são as tendências globais de reorganização, como o Brasil se posiciona nesse contexto? A gente não pode só olhar as tendências globais, e também não pode olhar só o local. Temos que olhar as duas coisas. E nesse momento fica claro que o Brasil não está sozinho. Ele faz parte de um grupo de países que se inserem nessa ordem internacional de maneira subordinada. Precisamos entender a posição do Brasil nesse sistema global.
Precisamos também entender nossa própria história e como nos relacionamos com o neoliberalismo. Nesse sentido, nossa imaginação é a seguinte: o que foi o período neoliberal no Brasil? O que ele produziu? Quais as tendências que podemos ver no Brasil? Isso exige imaginação, porque temos que olhar para trás, na nossa história, de uma maneira diferente do que olhamos até hoje.
Quais são essas particularidades brasileiras que podem interferir no exercício de pensar alternativas ao neoliberalismo?
MARCOS NOBRE Um dos pontos que dividem o novo progressismo e a direita sem medo é a ideia de que é necessário fazer uma transição ecológica, o que começa por uma transição energética. Isso falando no sentido global.
No caso brasileiro, pensemos no caso do petróleo, da exploração mineral brasileira, o que vem sendo chamado de neo extrativismo. Para o novo progressismo que está no poder com o governo Lula, se ele abre mão de explorar petróleo e minérios, ele perde uma capacidade importante de produzir políticas de combate à pobreza e de combate às desigualdades, porque o Estado brasileiro está numa situação fiscal muito complicada, em termos de capacidade de investimento.
Então há uma situação em que o novo progressismo está no poder, a sua agenda necessariamente tem de ser a agenda de uma transição ecológica, mas ao mesmo tempo ele não pode abandonar o neoextrativismo se quiser continuar como a força política dominante. É uma armadilha.
E o Brasil não está sozinho. Vários países do sul global estão na mesma armadilha: para defender o projeto do novo progressismo em sentido nacional, você, ao mesmo tempo, tem que negar alguns elementos centrais do novo progressismo no seu sentido global, no sentido das suas articulações internacionais. Então existe um descasamento, um descompasso entre a política nacional e a geopolítica, entre o que é o novo progressismo num contexto nacional e o que é o novo progressismo em sentido global.
Correio do Povo entrevista o doutor em Sociologia e professor universitário, Marcos Rolim
Marcos
Rolim é doutor em Sociologia e professor universitário. Ele também é
membro fundador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Rolim
concluiu seus cursos de mestrado e doutorado na Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS), onde também realizou seu pós-doutoramento.
Ele é especialista em Segurança Pública pela Universidade de Oxford, na
Inglaterra. Rolim também é jornalista graduado pela Universidade Federal
de Santa Maria (UFSM).
Ele é professor do curso de mestrado em
Direitos Humanos da UniRitter, membro fundador do Instituto Cidade
Segura, integrante do conselho administrativo da ONG Artigo 19 e ainda
membro da Assembléia Brasil da Anistia Internacional. Rolim é autor de
livros, entre os quais estão “A Síndrome da Rainha Vermelha,
policiamento e segurança pública no século XXI”, publicado pela editora
Zahar, o “Bukying o pesadelo da Escola”, publicado pela Dom Quixote e “A
Formação de Jovens Violentos: estudo sobre a etiologia da violência
extrema”, publicado pela Appris.
Em uma fala sua, durante o Connex, o senhor se mostrou contrário ao fim das saídas temporárias dos presos. Por quê?
Porque as saídas temporárias beneficiam
apenas os presos do regime semiaberto, ou seja, aqueles que já trabalham
ou estudam fora da prisão e que se recolhem à noite no estabelecimento.
O benefício permite que, em algumas datas, como o Natal, os presos
desse regime passem alguns dias com suas famílias. Quando o Congresso
acaba com esse benefício, vende a ideia de que está reduzindo o risco de
fugas, sem que as pessoas saibam que o próprio regime semiaberto já
envolve a presença do preso no convívio social e é baseado na confiança.
O pior, entretanto, é que o projeto aprovado reintroduz a necessidade
dos laudos técnicos para a progressão de regime, o que irá fazer com que
o tempo de encarceramento em regime fechado aumente para todos os
presos, porque não há técnicos suficientes para elaborar os laudos e a
superlotação impede que os presos sejam classificados e suas penas
individualizadas.
Devido à subnotificação de crimes, como chegar aos verdadeiros índices de criminalidade?
A maioria das vítimas não registra
ocorrências criminais, o que ocorre por muitos motivos, sendo que,
quanto menor for a confiança da população nas polícias, maiores serão as
taxas de subnotificação. Por essa razão, registros policiais não devem
ser usados para diagnóstico e para acompanhamento das tendências
criminais, porque eles refletem apenas parte do problema. Por isso,
muitos países lançam mão de pesquisas de vitimização, um recurso que
permite estimar com muito mais precisão o que, de fato, está ocorrendo.
Como prevenir para que a violência ocorra?
Há muitas formas de violência e seria
preciso tratar cada uma delas para definir medidas correspondentes de
prevenção. Toda supressão arbitrária de direito é violência, embora
situações como a fome, por exemplo, não costumam ser classificadas como
violentas. Se estamos pensando na violência física letal, por exemplo, é
preciso saber o perfil dos autores e das vítimas, as circunstâncias, os
locais e os horários onde os fatos se concentram para que seja
possível, por exemplo, realizar o policiamento de “pontos quentes” (hot
spots), uma das estratégias mais exitosas de policiamento preventivo no
mundo. Se lidamos com homicídios correlacionados ao abuso de álcool,
podemos estabelecer regras mais restritivas para o consumo de bebidas
alcoólicas, como foi o caso da experiência preventiva de Diadema (SP);
se lidamos com homicídios provocados por disputas entre gangues juvenis,
as estratégias serão outras. Aqui, como em todos os demais problemas de
segurança, não há remédios genéricos e quem imaginar que há uma solução
simples é porque não sabe sobre o que está falando.
Para o senhor como alguém que caiu no mundo do crime pode verdadeiramente se recuperar?
50 anos de pesquisas criminológicas em
todo o mundo demonstraram que sim, sem qualquer dúvida. As evidências
disponíveis comprovam que a grande maioria das pessoas que se envolveram
com o crime desistem desse caminho diante de determinadas situações ou
oportunidades como maior escolarização, emprego formal, casamento,
conversão religiosa, etc. Então, não se trata de opinião, mas de uma
dinâmica conhecida como desistência do crime que é muito conhecida em
todo o mundo.
O que seria uma repressão mais qualificada?
Chamamos
de repressão qualificada aquela que atua com foco e a partir de um
planejamento a respeito dos objetivos a serem alcançados. Se a polícia,
após cuidadoso trabalho de inteligência, efetuar a prisão de um matador,
isso irá impedir que muitos homicídios ocorram e protegerá também a
vida dos policiais que hoje são expostos a riscos desnecessários por
conta de um discurso a favor do “confronto”. Se a polícia passa o tempo
todo prendendo jovens pobres que sobrevivem no varejo do tráfico, essas
prisões não causam qualquer prejuízo ao modelo de negócio, porque essa
mão de obra é rapidamente substituída. Tais prisões, entretanto,
terminam por recrutar jovens para as facções criminais que atuam nas
prisões. O encarceramento em massa produzido pela política de “Guerra
contra as drogas”, aliás, só favorece o poder das facções e amplia os
termos do problema que se pretendia enfrentar. As apreensões de drogas
ilegais, por seu turno, estão muito provavelmente, produzindo migração
para roubos – forma de resgatar os compromissos com os fornecedores.
Falando em prevenção, qual a sua opinião sobre o Proerd da Brigada Militar?
O Proerd possui
a melhor das intenções e mobiliza policiais que se dedicam à prevenção
voluntariamente. O problema do Proerd é que todas as pesquisas já
realizadas no Brasil a respeito dos seus efeitos mostram que ele não
funciona. Ou seja, não se verifica redução de violência ou de consumo de
drogas entre os estudantes que participam do Proerd quando comparados
aos grupos de controle. Então, trata-se de um exemplo impressionante de
um programa que existe há mais de 25 anos em todo o Brasil e que não se
sustenta com base em evidências. Mais uma vez, não se trata de opinião,
mas de fato.
Mergulho nas ideias do pensador indígena,
em possível diálogo com Heidegger e Butler. Eurocentrismo, diz, gesta a
humanidade zumbi, sem memória e identidade. A perda do nós plural e criativo é o fim do mundo. E o ancestral, antídoto
Publicado 26/04/2024 às 17:10 - Atualizado 26/04/2024 às 18:23
Imagem: Mavi Morais (@moraismavi)/Elástica
I. Eduardo Viveiros de Castro, no posfácio de Ideias para adiar o fim do mundo,
do intelectual e ativista indígena Ailton Krenak, contextualiza as/os
leitoras/es do livro que se trata, assim como faz Davi Kopenawa e Daniel
Munduruku, de uma reflexão em busca da história da descoberta do Brasil pelos índios.
Quer dizer, uma contra-história e, também, uma contra-antropologia
atravessa o ensejo de Krenak. Seu objeto é a desnaturalização da
história única da humanidade, aquela mesma da cultura dominante do
Estado-nação moderno que se voltou belicosamente contra as populações
indígenas. Krenak é propositor, segundo Viveiros de Castro, de perguntas
inquietante: somos uma humanidade? Uma humanidade única e não diversa?
Uma humanidade e não uma rede “inextrincável” e “interdependente” de
humanos e não humanos? Quem seria esse “nós” no questionamento
krenakiano? “Nós” relativo a quem? Ao quê? Uma pergunta sobre
identidade? Sobre o quem somos? Estamos ante, pois, de questionamentos
existenciais, em que esse “nós” deixa de se portar unívoco e
unidimensional, voltando-se para um nós pluralista, móvel, criativo e
variável – diferencial. Para os Krenak isso incluiria a terra, as
pedras, as montanhas, os rios, os seres em geral. Esses são alguns dos
questionamentos, ou ideias propositivas, para se lançar, então, o adiamento do fim do mundo.
Talvez tenhamos perdido uma percepção um tanto quanto elementar em
termos de existência humana: nos esquecemos que coabitamos o mundo, que o
compartilhamos com outras pessoas, sendo ele, pois, a nossa grande
morada. Esse questionamento, contudo, não passou desapercebido na
história da filosofia ocidental, dado que já tratado por Martin
Heidegger. Também ele se ocupou de refletir sobre os modos (im)possíveis
de sermos e de estarmos na terra, logo, coabitando-a. O habitar
encontra-se, de uma maneira ou de outra, implícito em todas as dimensões
da existência humana, ao ponto desse gesto se confundir com o próprio
viver. O modo como vivemos decorre de uma extensão, ou de uma
conservação, do nosso repertório de crenças, de valores e de intenções
que, ao verterem-se enquanto escolhas, se concretizam no habitar.
Habitar incorre, nesse sentido, na própria existência, na própria
maneira como decidimos ser. Como podemos, enfim, coabitar o mundo? A
questão colocada pelo filósofo alemão, conhecida através da sua
influente conferência Construir, habitar, pensar, de 1951, nos
servirá, então, como uma espécie de horizonte dialogal para refletirmos
os alcances do pensamento do indígena, ambientalista, filósofo e
escritor brasileiro Ailton Alves de Oliveira Krenak.
II. As relações entre construir e habitar se
imbricam na explicação de Heidegger. São dialogais e retroalimentares.
Isso porque o objetivo da construção é o habitar, contudo, é na própria
ação de habitar que o construir encontra o seu sentido. Assim, o
desempenho de uma atividade implica habitar. A reflexão de Heidegger se
inicia com a própria pergunta: “O que é o habitar”? Não se trata da
simples relação com o morar, com o plano utilitário das edificações.
Entendendo a linguagem não apenas como veículo, mas como força criadora
do mundo, recorre ao emprego do termo no antigo alto-alemão para situar o
significado de construir: baun. A descoberta do filósofo é de que, em sua origem, construir significava, justamente, habitar. A vocábulo baun
não se referia, pois, apenas a ação de habitar, mas englobava o
permanecer, o morar, que indicaria um aceno de “(…) como devemos pensar o
habitar que aí se nomeia” (HEIDEGGER, 2012, p. 126). De todo modo, não
se encerra, aí, a definição do habitar. Isso porque baun, o construir, derivou do verbo bauen,
que, também, guarda relação direta com aquele, mesmo que, naquela
atualidade, tenha deixado de implicar nessa significação. Contudo,
Heidegger recobra o seu esteio original: “que amplitude alcança o vigor
essencial do habitar” (HEIDEGGER, 2012, p. 127)? É interessante o
movimento percorrido por ele, dado que essa percepção o leva a entender
que bauen seria a mesma expressão alemã para bin, que não seria outra coisa que o verbo ser conjugado em eu sou e tu és.
Se ser é habitar, logo, eu habito e tu habitas. Havendo, dessa maneira,
a abertura para a coabitação. Essa disposição resultaria, nessa
direção, nos modos de existência que se dão através do habitar, o que
implicaria, no limite, dizer que o “(…) o homem é a medida que habita
(HEIDEGGER, 2012, p. 127).
Byung-Chul Han disse que Heidegger teria sido o último defensor da
ordem terrena (2018). Porém, ele não foi o último. O filósofo alemão
encontra contemporâneos na atualidade, sendo um deles, além do próprio
Han, o indígena Ailton Krenak. Heidegger, que via na linguagem modos de
instituição de mundos, se ocupou com esmero ao estudo da linguagem. Por
isso se faz necessário explicar o significado de Krenak. Krenak seriam
dois termos, adverte Ailton: kre, uma partícula que significa cabeça, e o complemento nak,
que seria justamente terra. Vejamos o alcance da filosofia da terra do
escritor indígena, que alcança o diálogo proposto por Heidegger: “Krenak
é a herança que recebemos dos nossos antepassados, das nossas memórias
de origem, que nos identifica como ‘cabeça da terra’, como uma
humanidade que não consegue se conceber sem essa conexão, sem essa
profunda comunhão com a terra” (KRENAK, 2012, p. 48). Ailton Krenak
deixa em evidência em seus escritos que a terra, conforme concebida por
seu povo, não seria, pois, um mero sítio, como se designa hoje em dia,
avançando para aquilo que o filósofo alemão também se preocupava: a terra como esse lugar que todos nós compartilhamos.
Heidegger e Krenak, enquanto contemporâneos, estão preocupados com os
modos de “desraigamento” no mundo terreno, do próprio planeta enquanto
moradia.
Podemos expandir um pouco mais a reflexão heideggeriana, colocando-a
em diálogo com a filosofia krenakiana, se recobrarmos que há dois
significados subjacentes e complementares em bauen (construir):
proteger/cultivar e edificar. O filósofo da floresta se empenha na
recuperação desses significados originais de habitar, o que o leva ao
seu entendimento de que bauen é permanecer, bem como um de-morar-se. Além disso, e recobrando o gótico wunian,
se poderia especificar ainda mais o âmbito dessa experiência, quer
dizer, ser e permanecer em paz. Paz, ainda explorando o potencial da
linguagem conformadora do mundo, seria o mesmo que “livre”, que de
acordo com a sua a origem denotaria resguardado, que, no limite, seria a
devolução “(…) de maneira própria, alguma coisa ao abrigo de sua
essência” (HEIDEGGER, 2012, p. 129). Resguardar mantém relação com
libertar-se: “(…) libertar para a paz de um abrigo” (HEIDEGGER, 2012, p.
129). A discussões propostas pela filosofia de Martin Heidegger nos
leva, potencializada a partir das reflexões do pensador indígena Ailton
Krenak, que o traço fundamental do coabitar seria, não outro, o estado
de permanecer pacificado envolto na liberdade de um pertencimento,
resguardando as coisas em sua autenticidade possível.
II. A evidência de que viveríamos o antropoceno,
para Ailton Krenak, seria motivo suficiente para a ação, para um
reencontro com o mundo, para um despertar para a coabitação pacífica da
terra, para a sua preservação e de seus viventes. Em sua opinião, o
antropoceno, considerado um era geológica caracterizada pelos impactos
da exploração humana sobre o planeta, deveria soar como um alarme nas nossas cabeças.
A grande morada é a preocupação dos dois filósofos, pois como explica
Ailton Krenak: o planeta terra, de onde se exaure as fontes de vida, é o
que possibilita ao seu povo o sentimento de estar em casa, de que havia
“uma casa comum que podia ser cuidada por todos” (KRENAK, 2020, p. 47).
Contudo, a escritor indígena pensa que essa disposição diante do mundo,
que já vinha sendo assolada pela noção eurocêntrica de humanidade,
teria entrado num estado alarmantemente expansivo devido à exclusão de
toda organização de vida que estivesse fora dos domínios do capitalismo
consumista. Aqui entra, então, a sua filosofia da terra, ou do
enraizamento, que se lança ao perspectivismo e contrário à
unidimensionalidade do mundo. O povo Krenak, esclarece Ailton, foram
animados justamente pelo coabitar o mundo de maneira diversa,
pluralista, sendo também partes constitutivas do próprio planeta, não
percebido, pois, como objeto a ser explorado, “(…) em que havia
corresponsabilidade com os lugares onde vivemos e o respeito pelo
direito à vida dos seres, e não só dessa abstração que nos permitimos
construir como uma humanidade, que exclui todas as outras e todos os outros seres” (KRENAK, 2020, p. 27).
Os Krenak pertencem, assim sendo, à ordem da terra, estando, então,
em movimento interacional, um estar submetido em modo atento e aberto em
escuta ao nomos da terra. Nomos é um conceito que deriva da
mitologia grega, podendo ser interessante junto às reflexões de Ailton
Krenak. Falar em nomos da terra representaria o daemon das
leis, estatutos e normas. Krenak e Heidegger se movem, assim sendo, para
a sua ordem mais elementar, isto é, a existência na terra. Também o
filósofo alemão, em seu texto Construir, habitar, pensar, se move para a factualidade e para o pluralismo terreno-imanentista, percebendo a vida como uma quadratura terra e céu, mortal e divino.
Os dois autores sabem que o ser humano é mortal, não agente. A
responsabilidade diante do habitar reside nisto: poderia não haver novas
natalidades em muitos sentidos. Também ouvem os seus Deuses, que mais
do que entidades apartadas do mundo – nele se encrusta e enuncia
sentidos passíveis de escuta. Naquele lugar, tanto na floresta negra
quanto ao longo do Rio Doce/MG, ele tem o seu lugar num recanto
encantado e com sentidos, sendo a condição para isso o saber habitar, o
que implicaria o saber ser com outrem no mundo.
A terra, de acordo com Ailton Krenak, deve ser entendida como um
organismo vivo, sendo ela, não apenas para seu povo, considerada uma mãe
e provedora, mas em um nível que vai além da substância ou uma
provedora de recursos, mas “(…) também na dimensão transcendente que dá
sentido à nossa existência” (KRENAK, 2020, p. 43). Ou seja, o mundo
terreno, para os Krenak, oferece a oportunidade de um habitar que
implica mais do que um conhecimento ativo sobre o mundo, mas dele
recebendo aprendizados, o que os tornam intérpretes da natureza, posto
que ela lhe oferece sentidos e modos pluralistas de ser. O filósofo
indígena, contudo, percebe o progressivo esquecimento da terra e do
habitar, onde se verificaria todo um afastamento dos lugares de origem.
Obviamente que não se trata, aqui, de alguma explicação que poderia
levar ao entendimento da atualização de uma disputa entre modos de vida
sedentário e nômade. O que Ailton Krenak busca refletir é sobre a perda
dos sentidos de deslocamento na atualidade tecnológica, questão para ele
importante por afastar as pessoas do mundo: “Se é certo que o
desenvolvimento de tecnologias eficazes nos permite viajar de um lugar
para o outro, que as comodidades tornam fácil a nossa movimentação pelo
planeta, também é certo que essas facilidades são acompanhadas por uma
perda de sentido dos nossos deslocamentos” (KRENAK, 2020, p. 43). Aqui
entramos no âmago do apontamento de Ailton Krenak sobre a alienação do
mundo, sobre o desenraizamento descomprometido com relação à existência
terrena, do esquecimento da facticidade do ser no mundo, que se opera no
habitar e na duração. A sensação percebida pelo filósofo indígena é de
que as pessoas, na atualidade, estariam vivendo, paralelamente, em “um
cosmos vazio de sentido” e “desresponsabilizados de uma que possa ser
compartilhada, mas sentimos o peso dessa escolha sobre as nossas vidas”
(KRENAK, 2020, p. 44).
Krenak acredita, em todo caso, que estaríamos vivendo em uma espécie
de situação de cegueira coletiva, isto é, impossibilitados de nos
situarmos junto à facticidade terrena, que invoca sentidos pluralistas
de existência e, de modo correlato, imprime gravitação existencial. Essa
cegueira avançaria pelo âmbito individual e social, posto que de a
unidimensionalidade da noção de humanidade eurocêntrica estaria em risco
não somente o habitar, mas, sobretudo, o coabitar – condição para a
“cooperação dos povos, não para salvar os outros, mas salvar a nós
mesmos” (KRENAK, 2020, p. 44). Para tanto a necessidade de um despertar
diante da perda de sentidos, da perda dos sentidos de coabitação do
mundo, não sendo este um problema apenas dos povos originários. A perda
da possibilidade de imprimir sentidos alternativos e pluralistas ao
mundo, e com isso invocar novas possibilidades de imaginação social e
política, que pelo encontro a partir da coabitação e da cooperação
instituem acontecimento geradores de novidade e de diferença, deveria se
voltar para o recontro com a ordem terrena. Esse gesto se daria, de
qualquer maneira, em função do caráter totalizante da modernidade
eurocêntrica e da dinâmica do capitalismo, elementos que conjugados
estão levando à “(…) iminência de a terra não suportar nossa demanda”
(KRENAK, 2020, p. 45). Ailton Krenak é sabedor, de toda maneira, da
unidimensionalidade artificial elaborada pelo capitalismo, especialmente
a partir da noção de mercadoria, que por meio das suas fantasmagorias
fetichistas impedem a visão sobre a terra, ou ambiente planetário, para
além da reificação.
III. A vida humana e terrena, agora não somente
entre os povos originários, enfrentaria uma tragédia que atingiria a
todos nós. O pensador indígena percebe apenas movimentos paliativos,
muito em função de decisões políticas regionalizadas e localizadas, que
abririam, em sua perspectiva, algum “espaços de segurança temporária”
para as comunidades em geral. Mas ainda avançando sobre a reificação do
mundo pelo capitalismo hegemônico, que seria algo bastante diverso da
observância da sua tangencialidade, o que presenciamos, desenvolve
Ailton Krenak, é o “esvaziamento sentido do compartilhamento dos
espaços”, quer dizer, os próprios sentidos de coabitar o mundo. O que se
vê, na atualidade, são medidas paliativas ou ações orientadas pela
razão cínica neoliberal, que “(…) depende cada vez mais da exaustão das
florestas, dos rios, das montanhas, nos colocando num dilema em que
parece que a única possibilidade para que as comunidades humanas
continuem a existir é à custa da exaustão de todas as outras partes da
vida” (KRENAK, 2020, p. 46). O que se deve ter em mente é que o
voltar-se para terra gera, correlatamente, gravitação e pluralismo junto
aos modos de existência, dado que na ordem planetária há o acidental, o
desviante, o sinuoso e as multiplicidades – disso a possibilidade de
oferecer sentidos ao mundo, pois passamos a ter o entendimento em modo
vetorizado ante à existência em si, sem o movimento sujeito/objeto,
fazendo do habitar uma forma de afirmação da vida pela possibilidade da
saída do tempo único, o qual o capitalismo presentista faz parecer como
modo padrão, ou absoluto, de existir.
Além disso, a suspensão dos modos reificados de habitação do mundo,
amparados pela lógica do consumo da vida planetária, dariam condições de
possibilidade para a produção de espaços e para a coabitação. Ora, o
espaço único, a unidimensionalidade proposta pelo capitalismo, não
oferecia outra coisa, ainda mais em seu nível neoliberal, do que a
competição por espaços amparados na lógica na coabitação e da partilha,
mas da exploração e da individualização não (inter)colaboracionista.
Ora, a subjetividade neoliberal não abarca o dissenso e o congregar –
não reparte e não partilha. Está focada na unidimensionalidade, na
medida em que, em seu modo de conceber o mundo, só há espaço para o seu
Eu, abrindo, em último modo, todo um processo de expulsão do outro. Esse
processo é assimilado por Krenak através dos projetos de exaustão da
natureza.
IV. Essa discussão pode encaminhar, com forma de
potencializarmos a reflexão de Ailton Krenak, a partir das discussões
realizadas entre Judith Butler (2015, p. 75-77) e Hannah Arendt. De
acordo com a filósofa estadunidense, quando Arendt refletiu sobre a
pólis grega e o fórum romano ela estava pensando para além do âmbito
normativo e físico das cidade-estado, mas para as próprias relações
instituídas entre as pessoas, o que abriria, naquele espaço de aparição,
a comunicação e a ação entre elas. A leitura de Butler, então, caminha
para a compreensão dos espaços partilhados entre as pessoas. Esses
espaços mediados pelo entre abrem margem para a heterotopia ou para
diversidade. Assim, os horizontes públicos dependem, em sua acepção, de
dinâmicas que estão para além da disposição infraestrutural e objetiva,
apontando para a substância das organizações políticas, que se deseja
reguladas pela pluralidade. Os espaços públicos, e aqui levamos em conta
o mais primordial de todos, a própria terra, para nos voltarmos ao
diálogo com Krenak, são estabelecidos se nos movimentarmos para além da
superfície institucional, voltando-se para as fronteiras estabelecidas
entre os corpos. Há um movimento disciplinarização dos espaços, em que
nem todos os corpos que habitam, ou querem habitar um espaço, são
incluídos. Essa é a questão colocada por Butler: como instituir a
pluralidade ante às fronteiras? Quem faria parte desse horizonte comum
pluralizado? Parece mesmo que Krenak está em um diálogo virtual com a
filósofa estadunidense, haja vista também o seu intuito de transformar
esses apontamentos como ação política. Ambos, cada qual com seus
horizontes mais particulares de preocupações, estão em busca da
coabitação e a da produção de espaços interrelacionais, dialógicos e de
convívio.
A esse respeito, Ailton Krenak é bastante contundente, flexionando
toda uma ontologia do perspectivismo ameríndio: “Definitivamente não
somos iguais, e isso é maravilhoso saber que cada um de nós que está
aqui é diferente do outro, como constelações” (KRENAK, 2020, p. 33).
Agora é Krenak quem potencializa as reflexões de Judith Butler, pois
para ele o fato de coabitarmos um espaço possível não implica que somos
iguais, mas, e aqui a força do seu pensamento: “(…) significa exatamente
que somos capazes de atrair uns aos outros pelas nossas diferenças, que
deveriam guiar o nosso roteiro de vida” (KRENAK, 2020, p. 33).
Encontra-se, em sua perspectiva, um olhar para um coabitar que percebe a
humanidade, e os modos de existir, de maneira pluralista – não através
do protocolo da humanidade enquanto singular-coletivo, que, segundo
aponta, retiraria a nossa alegria de estar vivos (KRENAK, 2020, p. 33).
V. Ailton Krenak explica a dimensão espacial por
onde os povos Krenak habitam o Brasil. Do nordeste até o leste de Minas
Gerais, onde encontra-se o Rio Doce, bem como na fronteira do Brasil com
o Peru e a Bolívia, no Alto do Rio Negro. O pensador ameríndio deixa em
evidência os sentidos efetivos da luta dos Krenak diante dos tensos
contextos políticos nacionais que envolvem os direitos dos povos
originais de habitarem e existirem em suas terras. Krenak faz, então, um
retrospectivo que dos modos como os povos originários habitam, pensam e
existem em suas terras e como isso foi, historicamente, pervertido
através da história colonial-expansionista-administrativa. Passados
séculos de colonialismo, e superando as expectativas de que as
populações indígenas não sobreviveriam aos movimentos de ocupação dos
seus territórios, com previsões de que já não se manteriam as
originárias formas de organização existencial, vemos os Krenak
permanecendo em luta: “Isso porque a máquina estatal atua para desfazer
as formas de organização das nossas sociedades, buscando uma integração
entre essas populações e o conjunto da sociedade brasileira” (KRENAK,
2020, p. 39). Os sentidos do habitar krenakianos são assim, postos em
evidência, sendo a terra considerada, por eles, não apenas como um
reduto onde a natureza é prospera e oferece alimentos e moradia: ali
está onde sobrevive os modos que cada uma dessas sociedades tem de se manter no tempo.
A interação com o planeta, com o mundo terreno, está muito distante
de uma separação sujeito e objeto, mas volta-se para imanência radical,
por onde se faz possível percebê-lo em modo de agência e, então,
assimilar os seus sentidos, longe da razão instrumental ocidental. Por
exemplo, o rio Doce, para os Krenak, que sofrera ecocídio através do
rompimento da Barragem do Fundão em Mariana/MG, que liberou 55 milhões
de metros cúbicos de lama que armazenava, é considerado por essas
pessoas como Watu, ou seja, ele é tido como o seu avô. Em
seguida é explicada a tensão existente entre fronteiras e coabitação, em
que a perspectiva krenakiana do habitar-existir é abordada: “Ele não é
algo de que alguém possa apropriar; é uma parte da nossa construção como
coletivo que habita um lugar específico, onde fomos gradualmente
confinados pelo governo para podermos viver e reproduzir as nossas
formas de organização (com toda essa pressão externa” (KRENAK, 2020, p.
40). De qualquer maneira, o que estaria em curso na história brasileira
não seria outra coisa do que a não coabitação, ou dialogando abertamente
com Krenak, a incapacidade de se acolher os seus habitantes originais.
O projeto colonialista está em curso, desdobrando-se pelas malhas do
capitalismo neoliberal ao invisibilizar e impedir os povos originários
do seu existir por não reificarem o mundo natural e planetário, mas o
habitando-o e existindo com ele – por não se ampararem em sua lógica
unidimensional e totalizadora, derivada duma lógica de mundo
individualizada e não aberta à coabitação, posto que se move pela
subjetividade concorrencial e libertarista. Esta é a tônica da história
brasileira majoritária, de acordo com ele, através das suas seguidas
atualizações: “sem recorrendo a práticas desumanas para promover
mudanças em formas de vida que essas populações conseguiram manter por
muito tempo, mesmo sob o ataque feroz das forças coloniais, que até hoje
sobrevivem na mentalidade coletiva de muitos brasileiros” (KRENAK,
2020, 41). O ecocídio enfrentando pelo o avó dos Krenak, o rio Watu,
que fora encoberto pela lama tóxica da Barragem do Fundão, apresenta-se
como uma imagem síntese do perspectivismo ameríndio, que invoca uma
ontologia do enraizamento relacional com o mundo: “Faz um ano e meio que
esse crime – que não pode ser chamado de acidente – atingiu as nossas
vidas de maneira radical, nos colocando na real condição de um mundo que
acabou” (KRENAK, 2020, p. 42).
Ailton Krenak recobra, em um gesto decolonial, os horizontes modernos
do significado de humanidade, percebida como história única ou singular
coletivo. A colonização realizada pelos brancos europeus se amparou, em
sua concepção, “na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que
precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para
essa luz incrível” (KRENAK, 2020, p. 11). É, em última medida, o
processo civilizador, que implicou dois movimentos simultâneos: a
implementação de uma lógica de como habitar a terra e, correlatamente, a
instauração de modos de verdade, informados por uma dimensão de sujeito
que perscruta o objetivo, algo que teria orientado as escolhas
realizadas em diferentes momentos históricos. A questão para Krenak é
esta: haveria uma humanidade no singular? Torna Krenak a mover um
questionamento propositivo: “Por que insistimos tanto e durante tanto
tempo em participar desse clube, que na maioria das vezes só limita a
nossa capacidade de invenção, criação, existência e liberdade” (KRENAK,
2020, p. 13)?
A humanidade eurocentrada seria, para ele, uma espécie da
liquidificador. Arrisca a dizer que 70% porcento das pessoas, hoje,
estariam alienadas dos modos de ser em razão dos processos
modernizadores, que retirou as pessoas do campo e das florestas para
lançá-las em favelas e periferias, tornando-se mão de obra nas cidades.
Seria pessoas desenraizadas, privadas dos seus modos de ser e de habitar
o mundo. Um processo, dito de outra maneira, de esquecimento comandado:
“Se as pessoas não tiverem vínculos profundos com sua memória
ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão
ficar loucas neste mundo do maluco que compartilhamos” (KRENAK, 2020, p.
14). O que Krenak aponta é para o esquecimento do planeta, derivado do
singular coletivo humanidade e atualizado pelo “mito da
sustentabilidade”, o que levou a alienação do organismo que fazemos
parte, ou seja, a terra: “passamos a pensar que ele é uma coisa e nós,
outra: a terra e a humanidade” (KRENAK, 2020, p. 16). Daí a sua
ontologia do enraizamento, ou perspectivismo ameríndio, que se percebe
tudo como natureza. Ele é taxativo: “Tudo em que eu consigo pensar é
natureza” (KRENAK, 2020, p. 17).
Os povos originários, argumenta Krenak, estão enredados ao mundo –
são parte integrante e constitutiva do mesmo. A terra e os seres também
vivem. Montanhas são casais, tem família, trocam afetos, fazem trocas.
Essas montanhas, como em regiões andinas, são reverenciadas pelas
pessoas, dado que são sensíveis a sua alteridade. Mais um questionamento
de Ailton Krenak: por qual motivo essas narrativas não entusiasmam
mais, sendo esquecidas e apagadas? Por qual motivo elas são interditadas
em favor de uma narrativa global, universalizante, unidimensional,
superficial, única? É o abuso da razão, retomando a sua
expressão. O conceito moderno de história, a história única, o
eurocentrismo racionalista alienariam as pessoas de tudo, inclusive, as
medicalizando. Há a crítica ao conceito de progresso, modulação temporal
desta forma de história aludida, que em nome do dito bem-estar da
humanidade imprime todo um movimento de desenraizamento e de
deslocamento das pessoas do organismo terra. Esse movimento expande-se,
ainda hoje, para as “bordas do planeta” – margens de rios, beiras de
oceanos; na África, nas Ásia, na América Latina. São caiçaras,
indígenas, quilombolas, aborígenes, em suma, a “sub-humanidade”. A
humanidade moderna expulsa o outro, considerado sub-humano. Justamente
aqueles que não esqueceram a terra, que estão enraizados, que convivem
com as suas manifestações, que lhe emprestam dignidade para a sua
alteridade.
Uma organicidade que incomoda a dita humanidade, que cinde seus
filhos de sua mãe. Que expulsa aqueles que querem “comer terra, mamar
terra, dormir deitados sobre a terra, envoltos na terra” (KRENAK, 2020,
p. 22). É a crítica radical ao esquecimento do mundo. ao seu
descolamento da imanência em favor de uma abstração desfactizada. Um
movimento que interdita a diversidade, nega a pluralidade de modos de
coabitação e de existência – de modos de ser. No horizonte da humanidade
eurocentrada, da história única, a qual deve-se ser crítico invocando a
diferença, tornou-se majoritário um modo de existir que, amparado no
desgarramento da terra a partir da lógica sujeito e objeto, que se move
pelo consumo e interdita a cidadania. Deriva-se desse movimento, na
perspectiva krenakiana, toda uma lógica de expulsão do outro e de veto
às alteridades, disposição que acarreta, no limite, um estar no mundo
alienante, desprovido de crítica e consciência de si, dos outros e do
todo. “Essa ideia dispensa a experiência de viver numa terra cheia de
sentido, numa plataforma para diferentes cosmovisões” (KRENAK, 2020, p.
25).
VI. Dialogando com Davi Kopenawa, e abrindo-se para a possibilidade de adiar o fim do mundo,
Krenak move-se à contrapelo em busca dos sentidos ancestrais, dos
sentidos das cosmovisões ameríndias, que seria um modo de coabitar o
mundo. Tudo tem sentido na imanência radical krenakiana, o que lhe abre
para imaginações pluralistas de mundo. “As pessoas podem viver com o
espírito da floresta, viver com a floresta, estar na floresta” (KRENAK,
2020, p. 25). Em última instância, deseja-se recordar o mundo ante uma
situação produtora de ausências. Esse retorno à imanência terrestre
oferecia modos de viver em sociedade, num sentido de experiência e de
tangibilidade com a vida. Na história única, no singular coletivo
moderno, na humanidade singularizada, na identidade mesma
essencializada, há a intolerância em “relação a quem ainda é capaz de
experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar” (KRENAK,
2020, p. 26). A “humanidade zumbi” expulsa os mundos de sentidos
pluralistas, em que se invoca a “fruição de vida”. Chega-se ao ponto
chave da reflexão: “Então, prega-se o fim do mundo como uma
possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos”
(KRENAK, 2020, p. 27). A resposta de Krenak a esse estado de coisas é o
retorno aos modos de narração da experiência, de poder “contar mais
história”. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim do mundo.A
narração, os modos de imprimir sentido ao mundo para Ailton Krenak,
amparando-se nas cosmovisões de sentido ameríndias, demostram a
importância da facticidade concebida como experiência vertida
narrativamente.
Narrações enredadas em experiência como modo de existir. Questiona,
prepositivamente, Krenak: como os povos originários lidaram com a
colonização, com o fim dos seus mundos? Como superaram esse pesadelo
ainda desafiando a hegemonia da humanidade singularizada e excludente?
Ele voltou-se às narrativas experienciais antigas, ativando um recordar
de resistência pela criatividade, pela poesia, pela disposição de
enfrentamento. Cosmovisões cheias de sentido e de experiência foram
lidas, imprimindo um imaginar plural. “Muitas dessas pessoas não são
indivíduos, mas ‘pessoas coletivas’, células que conseguem transmitir
através do tempo suas visões de mundo” (KRENAK, 2020, p. 28). Krenak
leu, recordou, aprendeu, institui sentidos, entendeu o virtual dos
antepassados para resistir no presente – um alimento de “resistência
continuada desses povos, que guardam a memória profunda da terra, aquilo
que Eduardo Galeano chamou de Memória do fogo” (KRENAK, 2020,
p. 29). A narração lhe parece importante ante uma sensação de queda. Ele
invoca a capacidade crítica, criativa e pluralista ancestral para que
essa queda seja impedida por “paraquedas coloridos”. Contar histórias,
narrar histórias, aprender com histórias. “Há centenas de narrativas de
povos que estão vivos, contam histórias, cantam, viajam, conversam e nos
ensinam mais do que aprendemos nessa humanidade” (KRENAK, 2020, p. 30).
Bibliografia
BUTLER, Judith. Notes Toward a Performative Theory of Assembly. London: Harvard University Press, 2015.
CASTRO, Eduardo Viveiros de. Posfácio – Perguntas inquietantes. In:
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2020.
HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas sobre o digital. Petrópolis: Vozes, 2018.
HEIDEGGER, Martin. Construir, habitar, pensar. In: HEIDEGGER, Martin.
Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora
Universitária São Francisco, 2012.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
Acordar
com o sussurro de uma vassoura, erguer o tronco, depois o resto do
corpo, arrumar com preceito a roupa de cama e o colchão, pulverizar de
água as plantas, lavar a cara, vestir a roupa de trabalho, sair porta
fora com a calma devida, para ter tempo de olhar para o céu e sorrir,
quer faça chuva ou faça sol. A rotina não é enfadonha. A rotina é um
método.
Entrei numa sala de cinema no último dia
dessa fuga ao quotidiano a que chamamos de férias - há uma década seria
um evento costumeiro, de há uns anos para cá tem-se tornado excepcional -
para ver "Dias Perfeitos", último filme de Wim Wenders. A rotina que
comecei por descrever corresponde aos primeiros instantes dos dias de
Hirayama, um homem que vive consigo numa pequena casa de decoração
contida, limpa casas-de-banho de Tóquio com rigor e a quem ouvimos a voz
pela primeira vez já o filme vai a meio. É o protagonista do filme,
humano de mais para ser misantropo, recluso de menos para ser um
eremita. E no entanto ele move-se silencioso pela cidade, cumprindo o seu quotidiano perene, como se de um ritual se tratasse.
"Porque é que as coisas têm de mudar?", pergunta desgostosa uma das personagens. Hirayama tudo faz para o evitar. É
precisamente através da reincidência de gestos e hábitos que encontra
um reconfortante sentido de novidade. As músicas que escolhe ouvir no
carro, preservadas na fita de uma cassete, marcando o ritmo do início de
cada dia, as copas das árvores tingidas de luz que fotografa de forma
meticulosa, o olhar que lança todos os dias de manhã ao céu assim que
sai de casa. Não há dois dias iguais, ainda que o exercício de os
distinguir seja por vezes bem mais difícil do que aqueles passatempos
que nos pedem para encontrar dez diferenças entre duas imagens.
Aprendi
a não me preocupar e a amar a rotina após anos de um combate sereno
contra a ideia de repetição. Continuo a aprender a consenti-la. Se a
rotina é um método, a constância pode ser o seu remate, a garantia de
acesso às subtilezas que ficam nos intervalos entre o que é ordinário e o
que é extraordinário. O método não é infalível, tem os seus dias como
tudo.
De caminho, rumo ao trabalho, passo pela
estátua de Afonso Albuquerque, que continua no mesmo lugar, não tem para
onde fugir. Visto daqui, rodeado de copas de árvores, a sua cor
transfigura-se, de mês para mês, por vezes de dia para dia, e nem sempre
reparo nesses cambiantes. Mas nesta manhã o que vejo é uma ave pousada
no topo da cabeça da estátua e sorrio porque me recordo de quando, há
uns meses, a minha filha me acompanhou neste trajeto dois dias
seguidos. Esteve comigo também na rotina, no percurso que faço de olhos
abertos, mas que poderia fazer de olhos fechados. Ao segundo dia, após
ter percorrido quatro estações de metropolitano, caminhado até ao
torniquete nos passos curtos a que a multidão obriga, subido as escadas
rumo à plataforma do comboio, olhou para mim e disse de cara luminosa
"Parece que estamos a repetir o mesmo dia". "Isso é bom?", retorqui. "É
fantástico!"