A crescente tensão entre a realidade biológica e a realidade tecnológica resulta na condição inumana. A opinião é de
Ollivier Dyens, professor do Departamento de Estudos Franceses da Universidade de Concordia (Montreal), que estuda há mais de quinze anos o impacto das novas tecnologias na sociedade em entrevista ao Le Monde, 27-01-2008.
Dyens é autor do livro La Condition inhumaine (A condição inumana), assunto desta entrevista. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
IHU - O devastador aumento do poder da tecnologia digital vai transformar-nos profundamente?
Há alguns anos eu pensava que a tecnologia iria mudar o ser humano. Hoje, penso que vai mudar a percepção que temos do ser humano. Eu acredito cada vez menos no fantasma cyborg ou no homem-máquina. Mas a visão que temos de nós mesmos vai ter de mudar para se adaptar à realidade tecnológica de amanhã.
IHU - Seu último livro se intitula "A condição inumana". Por que o título?
O termo "inumano" não é usado aqui no sentido de crueldade, mas no sentido do que está para além do homem. Às questões essenciais que o homem se coloca desde o início dos tempos - Quem sou eu? De onde venho? -, a ciência e a tecnologia podem fornecer respostas que, cada vez mais, contrariam o que dizem nossos sentidos e nosso espírito. É essa crescente tensão entre a nossa realidade biológica e a nossa realidade tecnológica que eu qualifico de "condição inumana". Historicamente, consideramos as ferramentas e a linguagem como estruturas que existiam para atender às nossas necessidades. É fundamental repensar esta relação.
IHU - Por que a crescente interdependência destas duas realidades, biológica e tecnológica, nos perturba tanto?
Para explicar este mal-estar, um roboticista japonês criou uma imagem, a do ‘vale do desconhecido’. Tanto que robôs que continuam bem diferentes de nós, não nos perturbam. Mas se eles estão muito próximos caem no ‘vale do desconhecido’. A mão artificial se torna inquietante no momento em que ela se torna uma mão verdadeira, quando a podemos tocar ou fechá-la como se fosse natural. Estamos à volta com a revolução digital que está se tornando cada vez mais "inteligente", cada vez mais "viva"... Isso nos preocupa, porque se assemelha muito a nós.
IHU - A civilização das máquinas nasceu com este milênio?
Lembre-se do 31 de dezembro de 1999 e do famoso medo do bug do milênio. Este receio era real, inclusive entre as maiores empresas de informática do mundo. Naquele dia, a humanidade toda prendeu a respiração à espera do veredicto das máquinas, para saber se chegariam ou não à ‘compreensão’ dos três zeros da nova data. E o que aconteceu? Os softwares, em todo o mundo, conseguiram se adaptar, nenhuma catástrofe aconteceu. A moral da história é que os sistemas informáticos tornaram-se muito complexos para sermos capazes de determinar o que os torna eficazes ou não. Um pouco como a previsão meteorológica que se tornou muito complexa para prever para além de alguns dias.
IHU - Sendo assim, podemos ser esquecidos pelas máquinas que nós mesmos criamos, assustador não?
Para alguns, sim. Mas outros acreditam que este é um processo normal da evolução. Que o importante é a dinâmica da vida, que se encontra no DNA ou no silício. De qualquer forma, a tecnologia já nos obriga a redefinir o nosso lugar na hierarquia mundial. A nos situar não mais no topo da pirâmide, mas numa dinâmica tendo em conta as máquinas como parte integrante da espécie humana.
IHU - E se não chegarmos a isso?
Então corremos o risco de, num futuro mais ou menos próximo, desembocar num mundo polarizado, maniqueísta, violento, no qual a maioria da humanidade encontrar-se-á descolado de um mundo cheio de representações, idéias, teorias e da cultura. Um mundo de frustração e desespero e de uma nova alienação: aquela do conhecimento. Esse risco já está acontecendo: temos uma crescente dificuldade para distinguir claramente a informação de sua síntese – dito de outra maneira, do conhecimento.
IHU - Por quê?
Porque a cultura gerada pelas máquinas nos ultrapassa. Para usar uma imagem marítima: a quantidade de informações disponíveis na Net é um oceano, mas não conhecemos mais a arte de navegar. É cada vez mais claro que permanecemos na superfície desse oceano - "surfar" tornou-se uma questão de sobrevivência. Mas os seres humanos ainda navegam como antigamente tanto o conhecimento nos parece ligado à idéia do aprofundamento. A superfície e o profundo: vamos ter de aprender a conciliar essas duas noções.
IHU - A "condição inumana" terá conseqüências positivas?
Menos guerras, talvez. Quanto mais países estiverem enredados economicamente e culturalmente, menos razões teremos para ver os outros como estranhos, e, portanto, para combatê-lo. As tecnologias digitais e da Web são uma aproximação entre os seres. O e-mail, os chats, os blogs podem nos unir para além da geografia do corpo, da cor da pele. Em nossa história, nunca se gastou tanto tempo para se comunicar, mas também para enriquecer-nos e debater através das redes.
IHU - A internet vai gerar novas formas de inteligência coletiva?
Estou convencido de que sim. Os meios de comunicação oferecidos à humanidade, as redes digitais instantâneas parecem ter um objetivo principal: alimentar ou criar uma coerência global. Um blog adquire a sua legitimidade se for identificado com outros blogs, e o primeiro sítio que surge no Google é aquele que é ‘hyperligado’ pelo maior número de sítios... Essa legitimação por parte da coletividade carrega os seus perigos: ela se defende contra o individual e despreza aquilo que é marginal ou fora dos padrões. Mas também representa um enorme potencial que pode mudar profundamente a nossa relação com o mundo. O humano da condição inumana está bem mais próximo da formiga - que vive, existe e compreende o universo através de sua coletividade – que não é o de um indivíduo autônomo, consciente e singular. (IHU/Unisinos, 29/01/2008)