sábado, 21 de novembro de 2015

Slavoj Zizek, tolerância entre culturas é necessariamente limitada


 
Filósofo esloveno diz que principais vítimas dos ataques em Paris serão os refugiados

RIO - Conhecido por seu jeito elétrico e suas declarações polêmicas, o filósofo esloveno Slavoj Zizek alcançou status de ícone pop. Seus vídeos no YouTube têm centenas de milhares de visualizações. Em “O absoluto frágil” (Boitempo Editorial), obra de 2000 que só agora chega ao Brasil, Zizek reflete sobre os três grandes monoteísmos — o cristianismo, o judaísmo e o islã — a partir da psicanálise e da filosofia hegeliana. Em entrevista ao GLOBO, o filósofo argumenta que as religiões são “construções abertas”, critica o discurso multiculturalista de tolerância e afirma que as principais vítimas dos ataques terroristas em Paris serão os refugiados.

Qual é a avaliação que o senhor faz dos atentados em Paris e das reações a eles?
Os ataques terroristas em Paris devem ser condenados de verdade. É preciso mais do que esse espetáculo patético de solidariedade de todos nós — pessoas livres, democráticas e civilizadas — contra o “monstro muçulmano assassino”. Na primeira metade de 2015, a Europa estava preocupada com o Syriza (na Grécia) e o Podemos (na Espanha), enquanto na segunda metade sua atenção se deslocou para os refugiados. Com os atentados em Paris, até esse assunto, que é muito mais uma questão socioeconômica do que de tolerância e solidariedade, será atropelado pelo envolvimento de todas as forças democráticas em uma guerra impiedosa contra as forças do terror. É fácil imaginar o que vem em seguida: uma busca paranoica por agentes do Estado Islâmico entre refugiados. As maiores vítimas dos ataques em Paris serão os próprios refugiados. Por isso devemos condenar de verdade os assassinatos em Paris. Não se deve tentar compreender os terroristas do Estado Islâmico, no sentido de que “seus atos deploráveis são reações às brutais intervenções europeias”. Eles precisam ser caracterizados pelo que são: o oposto islamofascista dos racistas europeus anti-imigração. São dois lados da mesma moeda.

E como a Europa deveria lidar com o enorme fluxo de refugiados que chegam?
A primeira coisa que eu faria seria instalar bases militares na costa da Líbia, da Síria, do Líbano. Não para ocupar esses países, mas para criar centros de recepção onde potenciais refugiados seriam registrados e, depois, haveria a definição de quem seria aceito e de quem não seria. E aí organizaria o transporte deles para a Europa. O que está acontecendo agora é uma catástrofe em potencial. Porque todo mundo fala sobre como se deve permitir aos refugiados se integrar, mas nós sabemos que o problema não é apenas que os alemães não querem aceitá-los. O problema é que muitos refugiados também não querem realmente se integrar. Eles querem manter seu próprio modo de vida. Isso pode te surpreender, por eu ser de esquerda, mas a melhor organização para administrar essa situação é o Exército. Se continuar desse jeito, os resultados serão horríveis. Teremos conflitos étnicos e um crescimento da direita anti-imigração no continente. Aliás, já há uma ascensão de populistas racistas e xenófobos por toda a Europa.

No seu livro recém-lançado no Brasil, “O absoluto frágil”, o senhor faz uma dura crítica ao multiculturalismo. Por quê?
Se você fala do multiculturalismo em geral, que diferentes culturas devem tolerar umas às outras, é claro que todo mundo é a favor disso, com exceção de alguns loucos fanáticos religiosos. Mas, ao olhar a questão de perto, os problemas começam a aparecer. Um Estado de Direito que garanta a coexistência de diferentes culturas não funciona. Por quê? Porque toda cultura não fala apenas sobre si mesma, mas prescreve como você deve lidar com outras. Uma cultura não tolera o que outra considera normal. É um problema limite do multiculturalismo. Quando atacaram o “Charlie Hebdo”, todos nós louvamos como na Europa somos liberais, podemos fazer graça de Deus, etc. É verdade, mas os muçulmanos não toleram que você faça graça da sua tradição sagrada. Por outro lado, na Europa também há coisas que não toleramos. Por exemplo: há todo um complexo de direitos individuais das mulheres que não toleramos que sejam violados. Quando os europeus dizem que podem fazer graça de tudo, não é verdade. Tente publicar um texto na Europa fazendo piada do Holocausto. Você seria imediatamente excluído. O que estou dizendo é que você tem que demarcar um limite.

 Policiais revistam os moradores de Molenbeek, na Bélgica, que se encaminhavam 
para uma vigília em memória das vítimas de Paris
 - Emmanuel Dunan/AFP/18-11-2015

Qual seria esse limite?
Devemos afirmar certos princípios básicos sobre nossas liberdades individuais, direitos das mulheres, e simplesmente dizer onde a tolerância multicultural acaba. Aconteceu na Eslovênia: uma garota de família cigana procurou a polícia porque não aceitava um casamento arranjado pela família. Os líderes da comunidade disseram que esse é o elemento básico de reprodução da sociedade deles. Mas nós devemos proteger a garota. Vão dizer que esta é uma perspectiva eurocêntrica, porque na Europa se valorizam mais os direitos individuais do que os coletivos ou da comunidade, mas devemos fazer isso. É preciso decidir quanto multiculturalismo você vai aceitar. Problemas como esse não podem ser resolvidos com algum tipo de lógica liberal multicultural. Todo grupo étnico deve seguir alguns limites. Além disso, acho que falamos demais de cultura hoje em dia. O problema não está na cultura, está na economia, na justiça.

Em “O absoluto frágil”, o senhor reflete sobre o cristianismo, o judaísmo e o islã. O fundamentalismo religioso é um desvio?
Todas as religiões são construções abertas, não é possível dizer que havia uma religião originalmente boa que depois foi corrompida. O horror estava lá desde o início. Pegue o judaísmo. Os judeus reivindicam que a terra é deles, dada por Deus. Mas leia o que está escrito no livro de Josué. Os judeus estavam caminhando há 40 anos no Sinai, estavam nas montanhas próximas à Judeia e havia tribos vivendo lá. E Deus disse para matar todos, incluindo as crianças. Um caso claro de genocídio! Não estou dizendo que os judeus eram assim. Todo mundo era assim naquele tempo! Você encontra a mesma brutalidade no islã, no cristianismo. É preciso parar com esse jogo de uma religião original pura que foi corrompida. Esse é o jogo dos políticos ocidentais.

No entanto, o senhor defende o legado cristão no seu livro.
Eu sou um materialista convicto. Mas, para mim, o cristianismo é a religião do ateísmo porque Deus morre, sobra o Espírito Santo, que é simplesmente a comunidade de crentes. Esse é o primeiro modelo histórico de coletivo emancipatório. Colocando de modo irônico, o Espírito Santo é a primeira forma do Partido Comunista (risos). A morte de Cristo não é a morte do mensageiro de Deus, é a morte do próprio Deus. Se o Espírito Santo é a comunidade de crentes, estamos condenados à liberdade. Freud e Lacan já sabiam disso. Em outras religiões, a ideia de que somos todos iguais se realiza apenas na posteridade. O cristianismo é muito mais radical. Nessa terra podemos ter um coletivo igualitário. Você pode dizer: esse não foi o resultado do cristianismo. Precisamente, toda a sua institucionalização é uma enorme batalha contra o próprio cristianismo.
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Reportagem por Leonardo Cazes

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