domingo, 22 de novembro de 2015

Vint Cerf: 'A internet parece um adolescente que se comporta mal', diz 'pai' da rede


 Vint Cerf, que ocupa hoje o cargo de evangelista-chefe do Google, é considerado um dos "pais da internet" - 
Bruno Santos/Divulgação
 Vint Cerf desenvolveu na década de 1970, ao lado 
de Bob Kahn, o protocolo TCP/IP

JOÃO PESSOA (PB) — O matemático americano Vint Cerf é considerado um dos “pais da internet” por ter desenvolvido, ao lado do engenheiro Bob Kahn, o protocolo TCP/IP, que se tornou padrão da rede mundial de computadores.

O desenvolvimento da arquitetura começou na década de 1970, quando a dupla trabalhava no aprimoramento da ARPANET, na Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa (DARPA, na sigla em inglês), órgão de pesquisas ligado ao Departamento de Defesa dos EUA. Aos 72 anos, Cerf é personalidade ativa na indústria de tecnologia e ocupa o cargo de evangelista-chefe do Google.

Ele esteve no Brasil para participar do Fórum de Governança da Internet, promovido pela ONU em João Pessoa, na Paraíba.

Ao criar a internet, o senhor imaginou quão grande ela se tornaria?
Parte da resposta é sim. Como todos sabem, quando começamos o desenvolvimento em 1973, nós fizemos o design com 4,3 bilhões de terminações. Na época, pensamos: “isso tem que ser suficiente para esse experimento”. Mas erramos. Nós já sabíamos que elas acabariam desde 1992. Dez anos após ligarmos a internet, sabíamos que os endereços não seriam suficientes, então desenvolvemos o IPv6. Mas nós também esperávamos, não sabíamos, que a forma como fizemos o design permitiria o crescimento orgânico. E se fizermos as contas, nós observamos que a internet em 2015 é dez milhões de vezes maior do que era em 1983. Em todos os aspectos: velocidade dos links de comunicação, número de terminações, número de usuários. Ela aumentou de forma muito dramática. Eu acho que Bob Kahn e eu ficamos muito impressionados pelo fato de um sistema pensado em 1973, que tenha crescido dez milhões de vezes, continue funcionando da mesma forma básica como imaginamos. Isso é muito raro.

Sendo considerado um dos “pais” da internet, como o senhor avalia o seu “filho” hoje?
Eu acho que a resposta é que a internet parece um adolescente que, às vezes, se comporta mal. Então, você tem que pensar em como lidar com isso. E essa é parte da razão de termos o Fórum de Governança da Internet (IGF), para entendermos que existem formas em que ela está sendo abusada e que danos acontecem.

E como lidar com esses maus comportamentos?
O nosso trabalho é tentar descobrir como minimizar os danos, e nós temos algumas opções. Algumas delas técnicas, como detectar malwares para que eles não sejam transmitidos para outras pessoas. Outra possibilidade é detectar essas coisas e avisar: não podemos impedir que façam coisas ruins, mas, se nós os encontrarmos, haverá consequências. Por fim, podemos dizer: não façam isso, porque é errado, não é ético, fere princípios morais. Isso pode parecer um argumento fraco, a não ser que todos concordem que tal comportamento não é aceitável. Existe a pressão social, que é muito poderosa.

Como o senhor avalia a lei de mercado único digital, com regras para a internet, aprovada recentemente pela Comissão Europeia?
Não sou um especialista sobre o conteúdo da lei, mas tenho a impressão que eles estão tentando uniformizar o campo de jogo entre os países da União Europeia. Estão preocupados com o roaming, tentando fazer os serviços on-line mais uniformes. É fácil entender por que estão fazendo isso, pois existem muitas barreiras para os serviços por causa do mercado diversificado que possuem. A minha única preocupação é sobre o potencial de esse mercado digital único acabar criando barreiras para outros interessados, de outros países, oferecerem serviços na Europa. Eu não tenho conhecimento suficiente para dizer se isso vai ou não acontecer, mas é algo com que me preocupo. Asseguro que essa não é a intenção, mas sempre existe a preocupação de que os acordos possam prejudicar a liberdade de oferta de serviços.

A nova legislação garante a neutralidade da rede, mas abre espaço para o “zero rating” e “serviços especializados”, o que foi bastante criticado.
O que está acontecendo é que termos como “zero rating” (quando empresas fornecem serviços sem cobrar pelo tráfego de dados) e “neutralidade da rede” nem sempre têm o mesmo significado para as pessoas, como foi possível perceber aqui no Fórum de Governança da Internet. Provavelmente, a melhor forma de se pensar sobre esse tema é tentar identificar quais as consequências que queremos, em vez de discutir se algo está ou não violando a neutralidade da rede.

Mas qual a sua opinião sobre a oferta de acesso gratuito a serviços?
Acho que quase todos devem concordar que ajudar as pessoas a terem acesso à internet é uma boa coisa. Existem vários tipos de barreiras que impedem as pessoas de usarem efetivamente a rede. Se não for alfabetizada, por exemplo, ela não entenderá o conteúdo disponível. Então, garantir que todos tenham a habilidade de acessar qualquer informação e tirar vantagem disso, ou compartilhar conteúdos, é muito importante, especialmente quando se tratar de conteúdo local, em idiomas locais. E também reconhecemos que existem diferentes formas de se pagar pela internet ou obter o acesso. A maioria delas está empacotada em ofertas comerciais, que são apenas uma das muitas formas que permitem o acesso das pessoas à rede. Por exemplo, se você for a um Starbucks nos Estados Unidos, terá acesso por não mais que um copo de café. Ou no lobby de um hotel, em uma biblioteca... A ideia é o acesso como um serviço fornecido para atrair consumidores. Então, em vez de argumentar sobre o “zero rating”, deveríamos procurar formas de fornecer às pessoas acesso total à internet, e existem modelos em que o custo é arcado por terceiros. No Google, por exemplo, quando nós lançamos o Google Fiber, oferecemos acesso total em altíssima velocidade se as pessoas pagarem uma assinatura, mas se decidirem não pagar, elas têm 5 Mbps gratuitos.

E em relação à neutralidade da rede?
Algumas pessoas, que gostariam de ter a possibilidade de fechar acordos especiais para aumentar a velocidade de tráfego, argumentam que a noção de neutralidade da rede não é boa. Eles dizem que seria preciso tratar todos os pacotes exatamente da mesma maneira, sem qualquer priorização. Não, isso não é verdade. Os requerimentos de baixa latência (que levam pouco tempo entre o envio e a resposta) não são uma violação da neutralidade. Normalmente, os requerimentos de baixa latência são de poucos dados, então não geram muito tráfego. Por outro lado, as pessoas que estão preocupadas com essa questão dizem: “e se eu não tiver muitas opções de provedores, se existir apenas um?”. Nos EUA, nós enfrentamos esse problema, não existe muita competição. O problema é que a única empresa a fornecer o acesso pode decidir priorizar os seus próprios serviços. Isso é anticompetitivo.

E para o futuro? Como o senhor imagina a internet daqui a dez anos?
Será 2025. Nós sabemos que o sistema interplanetário estará não apenas em operação, mas com múltiplos nós. Sabemos que existirão bilhões de dispositivos a mais, muitos aparelhos, o que chamamos de internet das coisas. Estaremos rodeados pela internet, por dispositivos que farão parte da rede. A inteligência artificial vai avançar de forma significativa, especialmente agora que o Google liberou o seu software de inteligência artificial. Então, veremos progresso rápido nessas áreas, teremos mais interação natural: você vai perguntar e a máquina vai responder, sem precisar digitar. Também teremos carros autônomos, que conversarão entre si, acabando com os acidentes de trânsito. E acredito que vamos descobrir que o sistema tem a capacidade de auxiliar deficiências. Se uma pessoa tiver problemas de visão, audição ou motora, existirão tecnologias que vão ajudá-la a superar essas barreiras. E isso vai favorecer inclusive aquelas com deficiências temporárias, como um braço quebrado. Então, tornar a rede mais acessível é importante não apenas para as pessoas com deficiências permanentes, mas para todos.
-----------------
Reportagem por Sérgio Matsuura 

Nenhum comentário:

Postar um comentário