sexta-feira, 26 de maio de 2023

Wagner e Nietzsche

 Miguel Romão*

O fundador do grupo paramilitar russo Wagner, Yevgueni Prigozhin

 O fundador do grupo paramilitar russo Wagner, Yevgueni Prigozhin

As declarações sucessivas, replicadas no consumo ocidental de informação, mas seguramente formatadas para consumo interno, dessa personagem sinistra que se chama Yevgueni Prigojin, o chefe russo do grupo Wagner, são difíceis de compreender. A não ser numa lógica, só na aparência ambivalente, de assunção de uma nova legitimidade interna e de, ao mesmo tempo, justificação dos danos que a demora e os fracos sucessos na guerra têm exibido.

Criticar abertamente os filhos das elites russas, que se passeiam pelas redes sociais, enquanto os filhos das pessoas comuns morrem em território ucraniano e são repatriados em caixões, ou dizer que o resultado da invasão russa foi, afinal, o de militarizar a Ucrânia e tornar o seu exército um dos mais fortes do mundo, não parece ser grande discurso motivacional. No entanto, se este discurso existe, e só poderá existir com o beneplácito ou o incentivo de Vladimir Putin, ele tem de visar precisamente a colocação de mais pressão sobre as únicas estruturas de poder paralelas ao poder de Putin: as forças armadas regulares e as elites que dominam a economia russa.

A guerra de Putin não está, portanto, a ser perdida por ele. Segundo este novo porta-voz, improvável há um ano, a guerra está a ser perdida pelos únicos elementos internos que podem ameaçar Putin, o exército e os oligarcas. Assim, nada melhor que limitar, desde já, com o foco nestes alvos, as suas eventuais veleidades futuras.

É certo que estas declarações podem evidenciar um nível de fragilidade adicional do atual poder russo. Mas, enquanto elas existirem, nas suas distintas declinações, não deixam de ser também um sinal de que o poder de Putin ainda subsiste. O contrário seria ainda mais perigoso, na verdade.

O grupo Wagner, criado a propósito da intervenção russa na Crimeia, em 2014, e depois utilizado em diversos pontos do mundo (e também em Moçambique e, alegadamente, em Angola e na Guiné-Bissau), oscila na sua caracterização, feita no ocidente, entre ser, na prática, uma divisão especial do exército russo e uma estrutura militar autónoma dependente apenas do presidente russo e dos seus interesses, dentro e fora da Rússia. A verdade, como tantas vezes sucede, pode bem estar no meio, para mais num contexto em que a duplicidade e a ambiguidade fazem parte do quotidiano e das regras do jogo.

Supostamente os mercenários ao serviço do Wagner ganham entre 1000 e 2000 dólares por mês, vendo ainda os condenados a penas de prisão, que compõem grande parte dos seus homens a combater na Ucrânia, atenuada ou anulada a sua pena. Parece pouco, para o que está em causa. Mas a pobreza objetiva e a ilusão de liberdade, também na guerra, são sempre fatores decisivos. E o mercado internacional de mercenários, como tantos outros, alimenta-se e aproveita-se disso mesmo. Pobreza e ilusão de liberdade são o dedo invisível no gatilho. E, como dizia Nietzsche, se a loucura é rara nos indivíduos, nos grupos, nas tribos, é afinal a regra.

*Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa 

Fonte:  https://www.dn.pt/opiniao/wagner-e-nietzsche-16416180.html 26/05/2023

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