Volta e meia surgem livros, artigos ou matérias decretando a morte de Freud. A mais recente dessas investidas foi publicada pela microbiologista Natalia Pasternak e pelo jornalista Carlos Orsi no livro Que Bobagem! Pseudociências e Outros Absurdos que Não Merecem Ser Levados a Sério. Entre as “pseudociências” abordadas consta a psicanálise.

O tema da cientificidade da invenção freudiana não é novo – aliás, era motivo de preocupação do próprio Freud. A virada para o século 20, época de consolidação do método científico clássico, de otimismo acerca do poder da razão sobre a natureza, é também a época do surgimento da psicanálise.

Os cientistas contemporâneos a Freud legaram para nós um mundo mais controlável e previsível, profundamente secularizado. A isso devemos, por exemplo, as vacinas que nos permitiram sair, com muitas perdas, da pandemia da covid-19. Ainda que imersos nas trevas de um governo inimigo da intelectualidade e da verdade, vimos a importância da ciência no combate ao obscurantismo.

Filho das luzes, Freud se declarava entusiasmado com os avanços tecnocientíficos futuros que seu horizonte permitia vislumbrar. Formado médico pelo ambiente acadêmico e intelectual de sua época, orientava sua prática e sua pesquisa pelos ideais científicos, coisa que seus textos atestam.

Ainda assim, Freud foi um pensador também sensível aos efeitos que recolhia de seu trabalho clínico, primeiro como médico, depois como psicanalista. Ele percebia que a sua técnica era eficaz, ou seja, produzia efeitos terapêuticos em seus pacientes. Entretanto, deparou com um problema: ainda que visasse a uma teoria ampla e genérica sobre a neurose, cada caso era absolutamente singular. A história da doença e a do doente demonstravam-se inseparáveis. Inaugurou assim uma forma de compreensão do sofrimento psíquico, um novo método de tratamento e pesquisa, baseado na escuta, distanciando-se da medicina e do ímpeto visual típico da ciência moderna. Ver mais de perto, com mais nitidez, como fazem os atuais exames de imagem, permite diagnosticar e tratar o mal que nos acomete. A questão se torna mais complexa quando falamos da dimensão psíquica: que aparelho examinaria coisas como um luto, uma fantasia, um sentimento persistente de incapacidade?

Um frequente passo em falso das alegações de não cientificidade da psicanálise reside justamente na exigência de que a abordagem de problemas psíquicos use métodos próprios das ciências da natureza (empíricas e experimentais) – como a microbiologia. Ironicamente, essa foi a intenção de Freud: seguir o modelo das ciências da natureza. Isso se demonstrou impossível, e outra ciência teve de ser inventada. Lembremos que mesmo áreas tidas como exatas, como a medicina, carecem de uma cientificidade estrita e ideal: um exemplo são os medicamentos psiquiátricos, eficazes no tratamento de transtornos mentais cujas bases fisiológicas são apenas hipotéticas. Há eficácias cuja causalidade não parece ser apreensível pelos métodos científicos “duros”. Em outros termos: cientificidade e eficácia nem sempre andam juntas.

Uma pluralidade de métodos racionais aborda objetos de diferentes ordens, gerando saberes e disciplinas diversas. A redução dessa pluralidade em nome de uma padronização “científica”, suposto garantidor da produção de conhecimentos confiáveis, fomentaria o desaparecimento de disciplinas que não se enquadram em uma concepção específica de ciência que se entende como ideal e, enfim, única. Ora, a vocação da ciência moderna é tanto a busca de explicações coerentes para nosso mundo quanto a interrogação permanente do conhecimento estabelecido, progredindo a partir de crises e rupturas, não do acúmulo de certezas inquestionáveis. Não se trata de sugerir um “vale tudo” que equipara e legitima uma vastidão de campos, científicos ou não, mas de assumir que há conhecimentos e métodos racionais de investigação que um modelo demasiado exíguo de ciência só pode rejeitar ou, pior ainda, classificar obsessivamente como pseudociência. Freud explica?

Freud muito dedicou-se à fundamentação da eficácia da psicanálise, o que o obrigou a custosas concessões em relação ao seu ideal de ciência. Diante de paradoxos, complexidades e incertezas, porém, jamais se absteve da reflexão franca e racional. Uma atitude científica exemplar.

*Luciano Assis Mattuella é doutor em Filosofia (PUCRS/Université de Strasbourg), com  pós-doutorado em Psicanálise: Clínica e Cultura (UFRGS). É autor de “Os Futuros do Passado" (Editora Fi, 2017), “O Corpo do Analista” (Artes & Ecos, 2020) e "Um Itinerário Íntimo pela Psicanálise Lacaniana" (Zouk, 2022). Vitor Hugo Triska é doutor em Psicologia Social e Institucional (UFRGS), com pós-doutorado em Psicanálise: Clínica e Cultura (UFRGS). Membros da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa)*

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Fonte:  https://gauchazh.clicrbs.com.br/comportamento/noticia/2023/08/seria-a-psicanalise-uma-pseudociencia-clkvh5zpb00az017914vngtj1.html