Uma nova guerra europeia nos arrastará a todos, acabará com a
humanidade tal como a conhecemos. Nessa guerra não haverá espectadores.
Seremos todos vítimas
Eram três e meia da manhã quando foi acordado por um telefonema do
presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenski, anunciando a invasão de seu
país. Ao ouvir sua voz sombria, o presidente do Conselho Europeu (o
órgão que reúne os chefes de Estado e de governo dos 27
Estados-membros), o belga Charles Michel, percebeu que a ordem
internacional que emergiu da Segunda Guerra Mundial tinha mudado para
sempre.
Charles Michel, um conservador que chefiou um governo de coalizão em
seu país entre 2014 e 2019, antes de assumir a presidência do Conselho
Europeu, conta a história num artigo publicado em 19 de março no jornal
espanhol El país. Em sua visão de mundo, diante das novas
ameaças que a Europa enfrenta, “é necessário reforçar nossa capacidade
de defender o mundo democrático, tanto para a Ucrânia como para a
Europa”.
Atualmente, na Europa, esta defesa é entendida quase exclusivamente
como um desafio militar. Charles Michel resume a questão com um velho
clichê: “Se queremos a paz, temos que nos preparar para a guerra”. São
frases poderosas, que têm como um de seus principais efeitos eximir-nos
de pensar. De que guerra fala Charles Michel? Da OTAN contra a Rússia?
Charles Michel repete afirmações que ouvimos frequentemente hoje em
dia: “A Rússia não vai parar na Ucrânia, tal como não se deteve na
Crimeia há dez anos”. “A Rússia é uma grave ameaça militar para nosso
continente europeu e para a segurança mundial”. “Prossegue com suas
táticas de desestabilização em todo o mundo, na Moldávia, na Geórgia, no
Cáucaso meridional, nos Balcãs Ocidentais e até no continente
africano”.
Nenhum analista sério, nem político nem militar, confirma a ideia de
que a Rússia, uma vez terminada a guerra na Ucrânia, avançará sobre seus
vizinhos europeus. Estaríamos falando de uma guerra contra a OTAN, de
um conflito nuclear. Isso não faz sentido, e é precisamente a natureza
nuclear de tal guerra que torna a frase de Charles Michel sem sentido. A
menos que estejamos todos preparados para a tragédia que isso
significaria. Mas Charles Michel não tem dúvidas: “Enfrentamos a maior
ameaça à nossa segurança desde a Segunda Guerra Mundial”, assegura.
Outras visões de mundo
David Miliband, ex-secretário de Estado para relações exteriores do
Reino Unido (2007-2010), publicou há um ano um artigo intitulado “O
mundo para além da Ucrânia” (“The World Beyond Ukraine”, Foreign Affairs,
abril de 2023). Nele afirma que a invasão da Ucrânia produziu uma
notável unidade de ação entre as democracias liberais do mundo. Mas,
acrescentou, esta unidade do Ocidente não foi respaldada pelo resto do
mundo.
Dois terços da população mundial, disse David Miliband, vivem em
países que são oficialmente neutros, ou apoiam a Rússia neste conflito,
incluindo democracias notáveis como Brasil, Índia, Indonésia ou África
do Sul. Ademais, esta distância entre o Ocidente e o resto do mundo, “é o
resultado de uma profunda frustração – raiva, de fato – com a forma
como o Ocidente conduz a globalização desde o fim da Guerra Fria”.
O presidente russo, Vladimir Putin, disse algo semelhante. É uma das
razões que explica sua decisão de irromper no cenário internacional de
tal forma, a qual levou Charles Michel a dizer que a ordem
internacional, herdada da Segunda Guerra Mundial, tinha “mudado para
sempre”.
O certo é que uma guerra com a OTAN é considerada pouco provável por
analistas diversos. Mas, claro, dada a natureza da guerra na Ucrânia,
isso não pode ser descartado, incluindo a possibilidade de que seja
desencadeada por um erro de cálculo ou mesmo por acidente.
Em 24 de março, por exemplo, a Polônia afirmou que um míssil russo
disparado contra uma base ucraniana perto da fronteira polonesa tinha
sobrevoado seu espaço aéreo por cerca de 40 segundos. Exigiu explicações
do governo russo, que decidiu não as fornecer, pois a Polônia não
apresentou qualquer prova do que afirmava.
Dois dias antes, um ex-oficial norte-americano, Stanislav Krapivnik, disse ao portal russo RT
que o governo polonês estava preparando sua população para a guerra com
a Rússia. Ele lembrou das afirmações do chefe do Estado-Maior polonês,
general Wieslaw Kukula, segundo as quais a Rússia estaria “se preparando
para um conflito com a OTAN” na próxima década. Para Krapivnik, isso
faz parte da preparação psicológica da população para a guerra.
Também não exclui que a Polônia possa desencadear um ataque
preventivo contra a Rússia, com o apoio de países como a República
Checa, ou os países bálticos, o que provocaria um conflito inevitável
com a OTAN. Em todo o caso, um estudo realizado para a Rand Co. por
Samuel Charap e Miranda Priebe, publicado em janeiro do ano passado sob o
título “Avoid a long war”, conclui que é mais importante para
os Estados Unidos evitar tanto uma guerra OTAN-Rússia como uma guerra de
longa duração entre a Rússia e a Ucrânia.
Todos sentem-se ameaçados
Uma visão alarmista comum prevalece entre vários políticos europeus.
Joschka Fischer, ex-ministro das relações exteriores alemão e líder dos
Verdes, insistiu que “não se trata apenas da liberdade da Ucrânia.
Trata-se de todo o continente europeu”. “A Rússia quer apagar seu
vizinho do mapa”, diz ele.
Como imaginar uma guerra da Rússia para conquistar o continente
europeu? Joschka Fischer sente-se ameaçado. Charles Michel também. Não
foi a Rússia que se aproximou das fronteiras da OTAN. Foram as
fronteiras da OTAN que se aproximaram da Rússia durante 40 anos. Mas
essa é uma reflexão que não está no raciocínio destes políticos
europeus.
Como afirma o ministro das relações exteriores sueco (último país a
incorporar-se à OTAN), Tobias Billstrom, “armar a Ucrânia é uma forma de
enfrentar os apetites de Moscou”. Parece-me que Moscou poderia pensar
que se trata de uma forma de alimentar os apetites da OTAN contra eles.
Para o ministro sueco, em todo o caso, o problema não é seu país, nem
a OTAN, mas sim o comportamento irresponsável e imprudente da Rússia,
que procura reconstruir seu antigo império no Báltico. Não lhes ocorre
pensar que a Rússia também se sente ameaçada e que, antes de invadir a
Ucrânia, alertou muitas vezes para o risco que representava o avanço
sistemático da OTAN em direção às suas fronteiras?
Um assomo de sensatez
O tom belicista ocupa cada vez mais o debate. A cúpula da União
Europeia de 22 de março foi “precedida de uma atmosfera belicista como
há muitos anos não se via em Bruxelas”, afirmaram os correspondentes do El país.
A UE apelou à sociedade civil para se preparar para “todos os perigos”.
Charles Michel apelou à Europa para passar “a um regime de economia de
guerra”. Na Alemanha, uma ministra sugeriu a introdução nas escolas de
aulas de preparação para conflitos.
Está criando-se uma atmosfera de histeria belicista que acabou
assustando alguns dos próprios líderes europeus. “Não me sinto
reconhecido quando se fala em transformar a Europa numa economia de
guerra, nem com expressões como ‘Terceira Guerra Mundial’”, disse em
Bruxelas o chefe de governo espanhol Pedro Sánchez.
Não é que discorde da sugestão de Charles Michel de se preparar para a
guerra, embora não partilhe o tom que o debate adotou. Mas sua própria
ministra da defesa, Margarita Robles, lembrou numa entrevista, há alguns
dias, que “um míssil balístico pode muito bem chegar à Espanha vindo da
Rússia”.
O próprio representante da política externa da União Europeia, Josep
Borrell, que muitas vezes alimentou este ambiente de guerra, preferiu
agora alertar para a tendência de assustar os cidadãos europeus com uma
guerra, exagerando a ameaça de um conflito direto com a Rússia. “Ouvi
vozes que falam de uma guerra iminente. Graças a Deus, a guerra não é
iminente. Vivemos em paz. Apoiamos a Ucrânia, mas não fazemos parte
dessa guerra”. Para Josep Borrell, não se trata de soldados europeus que
“vão morrer no Donbass”.
Um risco que o presidente francês e outros países, especialmente os
bálticos e a Polônia, parecem dispostos a correr. O ministro das
relações exteriores ucraniano, Dimitry Kuleba, numa entrevista ao Politico,
em 25 de março, não descartou que países europeus decidam enviar tropas
para a Ucrânia para conter os avanços russos. “Se a Ucrânia perder”,
disse, “Vladimir Putin não vai parar”.
É evidente que a declaração de Josep Borrell está repleta de
contradições. É difícil compreender que vivam em paz enquanto é cada vez
maior o envolvimento da OTAN numa guerra para a qual desviaram recursos
muitas vezes superiores aos destinados a qualquer outro de seus
projetos no mundo.
Fascismo como extrema direita
“Os políticos europeus estão perdendo a cabeça. A voz da paz está
recuando completamente. Muitos líderes políticos europeus estão sofrendo
de uma psicose de guerra”, disse o ministro das relações exteriores
húngaro, Peter Szijjarto, no domingo, 24 de março. A Hungria –
frequentemente acusada na Europa de ser “populista” e de
“extrema-direita” – é um país que se opõe aos planos de envio de armas
para a Ucrânia.
“Populismo”, um conceito que alimentou milhares de páginas acadêmicas
muito variadas, tem a vantagem de evitar muitas complicações para os
jornalistas. O adjetivo, inútil para explicar o cenário político, serve
para sair do assunto sem necessidade de maior elaboração. Poupa muito
tempo de reflexão a certos jornalistas.
Na Alemanha, está sendo dada especial atenção ao papel de um partido
que se situa na “extrema-direita”: a Alternativa para a Alemanha (AfD).
O Grand Continent (publicação do Groupe d’études géopolitiques, um centro de pesquisa independente com sede na École Supérieure de Paris,
fundado em maio de 2019), decidiu acompanhar os abundantes processos
eleitorais previstos para este ano com uma série de entrevistas. Para o
caso alemão, entrevistou o historiador Johann Chapoutot.
Johann Chapoutot falou sobre o significado do AfD para a Alemanha. “O
AfD passou de um enfoque em questões monetárias para uma posição
populista mais pronunciada”, diz. “Como muitos partidos de extrema
direita, propõe um discurso populista que promete devolver o poder ao
povo diante de uma elite que supostamente se apressa a oprimi-lo”.
Mas o próprio Johann Chapoutot – que recorre aqui ao conceito de
“populismo” – fornece elementos para uma análise mais aprofundada desta
direita alemã, certamente extrema, mas representada nas mais diversas
formações políticas do país, e não apenas na AfD. Na Baviera, onde os
social-cristãos da CSU, muito conservadores, dominam o panorama
eleitoral, a AfD encontra “pouco ou quase nenhum espaço” para se
desenvolver. O forte particularismo bávaro parece limitar seu avanço
numa região onde o domínio de uma direita bastante radical (CSU e Freie
Wähler) é “esmagador”, diz Johann Chapoutot.
Após a reunificação alemã em 1990, insiste Johann Chapoutot, os
jovens do Leste viraram-se para o nacionalismo em resposta ao que
consideravam ser um roubo de identidade diante do domínio ocidental após
a queda da RDA. O desemprego de 30%, a liquidação da indústria e do
artesanato da Alemanha Oriental, a violência da “tomada do poder” (Übernahme) ou da “anexação” (Anschluss)
pelas empresas da Alemanha Ocidental provocaram um trauma social “cuja
intensidade é difícil de medir, e cujas consequências culturais e
políticas continuam bem vivas 35 anos depois”, acrescenta.
Helmut Kohl, o chanceler democrata-cristão que conduziu o processo de
unificação, e seu ministro da fazenda, Wolfgang Schäuble (o mesmo que,
anos depois, imporia condições leoninas na renegociação da dívida grega
para salvar os bancos alemães comprometidos com esses empréstimos),
tinham permitido que as empresas renunciassem à legislação laboral em
troca de se instalarem no Leste. E que se tornaram um laboratório de
“políticas sociais”, impostas posteriormente no Ocidente pelos
social-democratas Gerhard Schröder e Peter Hartz, com suas ofertas de
“miniempregos” para os alemães desempregados.
Johann Chapoutot lembra que a aproximação da CDU com os Verdes, os
mesmos Verdes que fazem parte da atual coalizão governamental com os
social-democratas e os liberais e que defendem uma política agressiva
contra a Rússia. Os liberais (FDP), cada vez mais extremistas em suas
posições conservadoras, adotam as propostas mais duras da AfD, diz
Johann Chapoutot. Tal como a extrema direita, o FDP é
anti-ambientalista, pró-empresas, anti-impostos, anti-normas… A proposta
de baixar os impostos tem como corolário a destruição dos serviços
públicos e o abandono das infraestruturas.
É esta a extrema direita alemã e europeia que, segundo as mais
diversas estimativas, não só consolidará sua posição no cenário político
europeu (no Parlamento, na Comissão e no Conselho) nas eleições do
próximo mês de junho, como se inclinará ainda mais para a direita, sem
que seja necessário, para compreender o que está em jogo, recorrer ao
“populismo”, ou à procura de posições mais extremas, porque não as há
(mesmo que se discorde sobre as migrações e algumas outras questões).
As mesmas pessoas que lutam contra a Rússia, apoiam a Ucrânia e
Israel, pensam que para alcançar a paz temos que nos preparar para a
guerra, em vez de negociar uma paz que ofereça aos europeus (e ao resto
do mundo) segurança e garantias de desenvolvimento comum. Não há
necessidade de reforçar a capacidade europeia “de defender o mundo
democrático, tanto para a Ucrânia como para a Europa”, como afirma
Charles Michel. O problema, desta vez, é que uma nova guerra europeia
nos arrastará a todos, acabará com a humanidade tal como a conhecemos.
Nessa guerra não haverá espectadores. Seremos todos vítimas.
*Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR). Autor, entre outros livros, de Crisis política del mundo moderno (Uruk).
Tradução: Fernando Lima das Neves. Imagem da Internet
O diálogo entre as religiões significa a convivência pacífica
entre os mais diversos caminhos
espirituais; sua contribuição é
fundamental para a paz entre os diversos
povos habitando a mesma
Casa
Comum
O diálogo inter-religioso é uma das demandas mais urgentes nesta fase
planetária da humanidade. O fundamentalismo e o terrorismo atuais se
enraizam profundamente em convicções religiosas mais do que em
ideologias. Só motivações que se fundam num sentido radical que
transcende os sentidos históricos imediatos sustentam a coragem de
pessoas, dispostas a se sacrificarem e a virarem pessoas-bombas para
destruir outros, tidos como inimigos. Esse sentido é, normalmente,
produzido pelas religiões.
Transfundo religioso dos conflitos atuais
Atrás dos principais conflitos do final do século XX e dos inícios do
século XXI possuem um transfundo religioso, assim, no passado na
Irlanda, em Kosovo, na Kachemira; e atualmente na Siria, no
Afeganistão,no Congo e hoje de forma violenta entre a Ucrânia e a
Rússia,o ato terrorista do Hamas de Gaza em 7 de oubro de 2024 e a
retaliação desproporcionao por parte do Estado de Israel, chefiado por
um primeiro ministro de extrema direita, desferida contra os palestinos
da Faixa de Gaza.
Não sem razão escreveu Samuel P. Huntington, um dos observadores mais
atentos do processo de globalização em seu discutido livro O choque de civilizações (Objetiva):
“No mundo moderno, a religião é uma força central, talvez a força
central que motiva e mobiliza as pessoas….O que em última análise conta
para as pessoas não é a ideologia política nem o interesse econômico;
mas aquilo que com que as pessoas se identificam são as convicções
religiosas, a família e os credos. É por estas coisas que elas combatem e
até estão dispostas a dar a sua vida”(p. 79).
Efetivamente, não obstante o processo de secularização e do eclipse
do sagrado com a introdução da razão crítica a partir do Iluminismo do
século XVIII, a religião sobreviveu a todos os ataques. Ao contrário, as
últimas décadas assistiram a uma volta poderosa do fator religioso e
místico em todas as sociedades mundiais, volta propiciada principalmente
pelos filhos e filhas dos mestres da suspeita e da crítica devastadora
da religião como Marx, Freud, Nietzsche, Popper e outros.
A religião é a cosmovisão comum da maioria da humanidade. Nela
encontra orientação para a vida e dela deriva atitudes éticas. Bem
formulou Ernst Bloch, o filósofo marxista que resgatou o sentido
profundo do fator religioso bem sentenciou: “onde há religião, ai há
esperança”. E onde há esperança surgem incontáveis razões para lutar,
para sonhar, para projetar utopias salvacionistas e dar sentido à vida e
à história.
Pluralismo religioso de fato e de direito
Então, há se partir do fato incisivo da religião, melhor, do
pluralismo religioso. Há tantas religiões quantas culturas há. Quando
uma cultura produz sua religião é sinal de que chegou ao seu
amadurecimento. Ela ajuda a conferir a identidade e a coesão cultural.
Todas as religiões trabalham com um sentido último e com valores que
orientam a vida. Por isso possuem um alto valor humanizador e
civilizatório. Mas importa não desconhecer que elas correm o risco
permanente de fundamentalismo, de se imaginarem absolutas e as melhores.
Esta atitude está a um passo da guerra religiosa, coisa que ocorre com
frequência na história. As religiões precisam, então, de se reconhecerem
mutuamente, de entrar em diálogo e de buscarem convergências mínimas
que lhes permitem conviver pacificamente. Eis a importância do diálogo
entre todas.
Antes de mais nada importa reconhecer o pluralismo religioso como “de
fato” e como “de direito”. O fato é inegável, basta constatá-lo. A
questão é sua legitimação de direito. Neste ponto há divergências
profundas, especialmente, na Igreja hierárquica católica, em outras
igrejas cristãs, em certas tendências do islamismo e de outras
religiões. Aqui algumas igrejas cristãs mostram seu fundamentalismo
explícito, pois, julgam-se as portadoras exclusivas da revelação divina e
as únicas herdeiras da gesta salvadora de Deus na história pela vida,
morte e ressurreição de Jesus.
Mas não se pode negar a pluralidade. Por isso importa defender o
direito à esta pluralidade de fato. Em primeiro por uma razão interna à
própria religião. Nenhuma religião pode pretender enquadrar Deus, o
mistério, a fonte originária de todo ser ou qualquer nome que se queira
dar à suprema realidade, nas malhas de seu discurso e de seus ritos. Se
assim fora, Deus seria um pedaço do mundo, na realidade, um ídolo.
Perderia totalmente sua transcendência a qualquer objetivação humana.
Ele está sempre para além do que pudermos representá-lo. Então, há
espaço para outras expressões e outras formas de celebrá-lo que não seja
exclusivamente através desta igreja ou desta religião concreta. Como
dizia um pensador franciscano do século XIII Duns Scotu: “Se Deus existe
como as coisas existem, então Deus não existe”. Ele não está na ordem
das coisas, mas do fundamento de sua existência e da permanência nessa
existência.
Assim, por exemplo, as religiões de matriz africana presentes no
Brasil, não são cartesianas e ocidentais. Possuem outra forma própria de
sentir, de interpretar e viver o sagrado. São religiões profundamente
ecológicas, ligadas às energias da natureza e do cosmos. O próprio “axé”
é uma energia cósmica, presente em todos os seres e mais fortemente em
pessoas carismáticas como pais e mães de santo. Seu modo de cultivar o
sagrado deve ser acolhido como uma das formas legítimas de caminhar para
Deus (Olorum) e sermos visitados pelas divindades.
O equívoco da pretensão de exclusividade
Na verdade, não é o pluralismo religioso que deve ser questionado mas
a pretensão de uma das religiões de se considerar a única verdadeira.
Nem vale o sofisma: se há um só Deus, deve haver uma só religião. Ora, a
natureza de Deus e a natureza da religião são profundamente distintas. A
natureza de Deus é o mistério, o inefável, o infinito. A natureza da
religião é o limitado, o histórico, o finito, aquilo que foi criado pela
cultura humana. Então, Deus nunca poderá ser identificado com alguma
doutrina. Ele está dentro e também fora e para além, pois esta é a sua
natureza. Ademais, se aceitarmos que Deus é diversidade de divinas
pessoas, Pai, Filho e Espírito Santo em permanente relação de amor e de
diálogo, isso fornece um fundamento maior para justificar a diversidade
religiosa.
Dai é importante reconhecermos o fato das muitas religiões e igrejas,
para que cada uma delas possa dizer algo do inefável e revele dimensões
que a outra não pode expressar. Todas juntas sinfonicamente acenam para
a realidade sagrada e todas se calam, reverentes, diante dela porque
ela as desborda por todas as formas e lados.
Esta última reflexão nos obriga a introduzir uma distinção de
fundamental importância para que o diálogo inter-religioso seja possível
e ganhe alguma eficácia: a distinção entre espiritualidade e religião.
Distinção entre religião e espiritualidade
Por espiritualidade entendemos o encontro com o mistério do mundo,
com o inefável, com o Tao, com Olorum, com o Numinoso com aquilo que se
convencionou chamar de Deus (embora haja tradições que não se sintam
bem, como o budismo, que é antes uma sabedoria que uma religião). Esse
encontro não é inventado nem imposto. Ele ocorre simplesmente, como uma
experiência originária. O ser humano é um ser de abertura ao outro, ao
mundo e ao infinito. Ele simplesmente é um sistema aberto e dialogante.
Ele coloca questões radicais sobre sua origem e destino, sobre o
sentido do universo, sobre o significado de sua vida, de seu sofrimento e
de sua morte. Ele é um grito lançado ao infinito. Experimentar esta
realidade perfaz aquilo que chamamos espírito. É um modo de ser, de
relacionar-se, de sentir-se inserido num Todo maior. Cientistas
contemporâneos chamam-na de “espiritualidade natural” por pertencer à
natureza humana (Cf. Steven Rockefeller, Spiritual democracy and our schools).
Esta espiritualidade natural, não é monopólio das religiões ou de
algum caminho espiritual. Ele é anterior a tudo. Possui o mesmo direito
de cidadania antropológica como a libido, a vontade, a inteligência e a
sensibilidade. Assim como existe a inteligência intelectual e a
inteligência emocional, existe também a inteligência espiritual pela
qual captamos, além dos fatos e das emoções, os contextos globais de
nossa vida, totalidades significativas, valores e nossa inserção num
Todo maior.
É próprio da espiritualidade captar visões globais e se orientar por
um sentido transcendental. Neurólogos e neurolinguistas detectaram uma
base empírica desta inteligência, na biologia dos neurônios. Alguns
neurocientistas e o psiquiatra I. Marshall e sua esposa física quântica,
Danah Zohar entre outros (Cf. D. Zohar, QS,Inteligência espiritual,
Record) chegam a falar do “ponto Deus” no cérebro. Numa perspectiva
evolucionária quer dizer, o universo evoluiu até a um ponto de produzir
um ser de inteligência que dispõe de uma capacidade de perceber a partir
de certa aceleração de neurônios, o mistério deste universo, Mistério
que penetra e resplende em tudo.
Esse “ponto Deus” representa uma vantagem evolutiva da espécie homo,
presente em todos os representantes. Logicamente, Deus não está apenas
presente num ponto do cérebro, mas em todo o ser humano e cada uma de
suas dimensões. Mas é a partir de um ponto dos neurônios que ele se
deixa perceber fenomenologicamente.
Esta experiência espiritual está na base de todas as religiões e
caminhos espirituais. A forma como esta experiência se expressou
historicamente varia consoante as culturas seja na Índia, na China, no
Tibet, no Japão, entre os Maias, Aztecas, Tupi-Guarani, Yanomani entre
outros. As religiões são os construtos culturais, os mais diversos,
tentativas de expressar numa doutrina, numa celebração, num texto
sagrado, um código ético esta espiritualidade originária.
As religiões são diferentes e muitas, mas a espiritualidade
originária é a mesma. É ela que permite o entendimento e o diálogo entre
as religiões, porque todas bebem da mesma fonte de águas cristalinas: a
espiritualidade natural. As religiões são canalizações desta fonte
originária.
Importância das religiões para a paz mundial
Se tal é a importância das religiões na configuração da humanidade
concreta, então são decisivas para a convivência e a paz mundial. Por
isso entendemos a relevância que o Papa Francisco dá a elas nas duas
encíclicas ecológicas Laudato Sì: sobre o cuidadoda Casa Comum (2015) e na Fratelli tutti (2020)
no sentido da salvaguarda da vida e do futuro da Mãe Terra. Muito
conhecida e sempre citada é a tese fundamental do teólogo alemão Hans
Küng, recentemente falecido, o melhor estudioso das religiões na fase
planetária com o a qual concordamos: “Não haverá paz entre as nações, se
não existir paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões,
se não existir diálogo entre as religiões” (Religiões do mundo).
O diálogo entre as religiões segue um caminho singular. Não pode
começar pela discussão das doutrinas que logo geram discussões
intermináveis e divisões, mas pela conscientização da espiritualidade
que une a todas. E isso se faz pela oração ou meditação. O diálogo
começa quando todos começam a rezar juntos ou a meditar. Rezar, meditar é
mergulhar na espiritualidade. Aí as pessoas começam a se conhecer, a
descobrir a bondade de um e de outro, a piedade, a reverência e a busca
sincera do mistério de todas as coisas, de “Deus”.
As doutrinas ficam relativizadas em nome da vida concreta, inspirada
pela respectiva religião. Logicamente, tudo o que é sadio pode ficar
doente. Todas as religiões podem incorporar desvios, endurecimentos,
atitudes fundamentalistas de grupos. Aqui há um vasto campo de recíproca
crítica e de processos de purificação. Assim como a doença remete à
saúde, de forma semelhante a experiência espiritual devolverá saúde às
religiões. Deste diálogo orante nascem os pontos de convergência que
fundam a paz possível entre as religiões, um dos fatores da paz mundial.
Mas há igrejas, especialmente entre nós, as neopentecostais que
seguem a lógica do mercado e fazem da religião um grande negócio, não
raro explorando os pobres com a teologia da prosperidade e ultimamente
com a teologia do domínio. Por procurarem vantagens econômicas,
facilmente se aliam a partidos políticos de vertente mais conservadora.
Desta forma desnaturam a religião e a igreja, pois estas não foram
feitas para o mercado, mas para atender às demandas espirituais das
pessoas.
Pontos de convergência no diálogo inter-religioso
O diálogo continuado permitiu estabelecer entre as religiões pontos
comuns elencados ainda em 1970 na Conferência Mundial das Religiões em
favor da Paz em Kyoto. Esses pontos convergentes foram assim formulados e
reforçados anos depois no grande encontro em Chicago.
(i) Há uma unidade fundamental da família humana em igualdade e
dignidade de todos os seus membros. (ii) Cada ser humano é sagrado e
intocável, especialmente, em sua consciência. (iii) Toda comunidade
humana representa um valor. (iv) O poder não pode ser igualado ao
direito. O poder jamais se basta a si mesmo, não é jamais absoluto e
deve ser limitado pelo direito e pelo controle da comunidade. (v) A fé, o
amor, a compaixão, o altruísmo, a força do espírito e a veracidade
interior são, em última instância, muito superiores ao ódio, à inimizade
e ao egoísmo. (vi) Deve-se estar, por obrigação, do lado dos pobres e
oprimidos e contra seus opressores. (vii) Alimentamos profunda esperança
de que no final a boa vontade triunfará.
Como se depreende, esse diálogo não se exaure em si mesmo. Ele se
ordena a algo maior: à paz entre os povos, à paz com a Terra, à paz com
os ecossistemas, à paz do ser humano consigo mesmo e à paz com a fonte
originária de onde veio e para onde vai. Essa paz é, como bem o definiu a
Carta da Terra, “a plenitude criada por relações corretas
consigo mesmo, com outras pessoas, com outras culturas, com outras
vidas, com a Terra e como o Todo maior da qual somos parte”.
O diálogo aberto entre as religiões significa, portanto, a
convivência pacífica e alegre entre os mais diversos caminhos
espirituais que veem, em sua diversidade, uma riqueza do único e mesmo
mistério frontal do qual viemos e para o qual rumamos. Sua contribuição é
fundamental para a paz entre os diversos povos habitando a mesma Casa
Comum.
*Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Habitar a Terra: qual o caminho para a fraternidade universal (Vozes). [https://amzn.to/3RNzNpQ]
Conhecido sobretudo por filosofar a golpes de martelo, desafiar
normas e destruir ídolos, este pensador, um dos mais controvertidos de
nosso tempo, deixou uma obra polêmica que continua no centro do debate
filosófico.
Mas não é apenas aos acadêmicos e estudiosos de filosofia que
Nietzsche se dirige. Ele vem pôr em questão nossa maneira de pensar,
agir e sentir. Desestabiliza nossa lógica, nosso modo habitual de
pensar, quando tenta implodir os dualismos, fazendo ver que, ao
contrário do que julgamos, a verdade não é necessariamente o oposto do
erro.
Desafia nosso modo costumeiro de agir, quando critica de forma
contundente os valores que entre nós ainda vigem, mostrando que, ao
contrário do que supomos, o bem nem sempre contribui para o prosperar da
humanidade e o mal, para a sua degeneração. Provoca nosso modo usual de
sentir, quando ataca com determinação a religião cristã e a moral do
ressentimento, tornando evidente que, ao contrário do que acreditamos,
nós, seres humanos, nada temos de divino.
Nietzsche, filósofo da suspeita, convida o leitor a pôr
continuamente em causa seus preconceitos, crenças e convicções. Não é
por acaso que sua obra será desacreditada, distorcida, deturpada – por
ingenuidade ou má-fé.
Nenhum outro pensador suscitou, tanto pela sua vida quanto pelas suas
ideias, tanto interesse e curiosidade. Antes de tudo, Nietzsche não
queria ser confundido. Para sua surpresa e horror, tanto antissemitas
quanto anarquistas se diziam seus adeptos. Ao longo de décadas, ele será
evocado por socialistas, nazistas e fascistas, cristãos, judeus e
ateus. Pensadores e literatos, jornalistas e homens políticos terão nele
um ponto de referência, atacando ou defendendo suas ideias,
reivindicando ou exorcizando seu pensamento. Dessa perspectiva, quem
julgou compreendê-lo equivocou-se a seu respeito; quem não o compreendeu
julgou-o equivocado.
Com os anos, começaram a surgir as mais diversas interpretações da
filosofia de Nietzsche. E os que se ocuparam com os seus escritos não
cessaram de divergir. Alguns fizeram dele o precursor do nazismo e
outros, um pensador dos mais revolucionários. Alguns o encararam como o
defensor do ateísmo e outros, como um cristão ressentido. Há os que o
consideraram o crítico da ideologia, no sentido marxista da palavra, e
os que o viram como o inspirador da psicanálise. Há os que o tomaram por
arauto do irracionalismo e os que o perceberam como o fundador de uma
nova seita, o guru dos tempos modernos.
E multiplicaram-se as interpretações de suas ideias. Alguns tentaram
esclarecer os textos partindo de uma abordagem psicológica. Entendiam as
possíveis contradições neles presentes como manifestação de conflitos
pessoais; percebiam suas ideias como uma “biografia involuntária de sua
alma”; compreendiam, em particular, sua concepção de além-do-homem como
fruto de uma “filosofia de temperamento”.
Outros, apoiando-se na psicanálise, diagnosticaram seu pensamento
como expressão de uma personalidade neurótica. Encaravam a concepção de
vontade de potência como tradução filosófica do jogo de seus mecanismos
inconscientes; relacionavam esse mesmo conceito com seu sentimento de
inferioridade; tomavam as teses da morte de Deus e do surgimento do
além-do-homem como o ponto de chegada de um processo que remontava às
origens da consciência moderna.
Seus escritos repercutiram nas áreas mais diversas: na literatura,
nas artes, na psicanálise, na política, na filosofia. Seus textos
causaram impacto não apenas na Alemanha ou mesmo na Europa; eles
marcaram as experiências de sucessivas gerações do mundo ocidental.
Nietzsche, filósofo da suspeita convida o leitor a
questionar-se sem cessar. E por que não levar a sério o convite que ele
nos faz e colocar sob suspeita as crenças, convicções e preconceitos que
temos a respeito dele mesmo? Esse é precisamente o propósito deste
livro.
Escritor entre tantos?
Na tentativa de desqualificar sua reflexão, durante muito tempo
consideraram Nietzsche literato, poeta ou, quando muito, poeta-filósofo.
Em setembro de 1888, ele começou a ser reconhecido. Alguns meses antes
de sofrer o colapso psíquico em Turim, Georg Brandes relatava-lhe o
sucesso das conferências sobre sua filosofia na Universidade de
Copenhague; August Strindberg participava-lhe a emoção causada pela
virulência de suas palavras e coragem de suas ideias. De São Petersburgo
e de Nova Iorque, chegavam às suas mãos as primeiras cartas de
admiradores. Com o fim da vida intelectual, veio a fama. Então, foi
acima de tudo sua biografia e seu estilo que despertaram interesse.
No início do século XX, a influência do filósofo exercia-se muito
mais na literatura do que em qualquer outro campo. Nele se inspiraram
não só autores naturalistas e expressionistas alemães menos conhecidos,
como escritores de renome: Stefan George, Thomas Mann e, depois, Robert
Musil e Hermann Hesse. Muitos partiam do princípio de que Nietzsche não
tinha elaborado um programa, mas criado uma atmosfera: o importante era
respirar o ar de seus escritos.
Fascinados por sua linguagem, nele redescobriam a sonoridade pura e
cristalina das palavras, a correspondência exata entre nuanças de sons e
sentidos, a nova perfeição da língua alemã. Viam-no, sobretudo, como um
fino estilista, deixando de lado o confronto com seu pensamento.
É fato que suas metáforas, parábolas e aforismos exerceram uma
atração tal que dificultou o contato com suas ideias. Também é fato que,
nas últimas décadas, apareceram estudos relevantes sobre o seu estilo.[1]
Mas, a partir daí, começaram a proliferar textos estilísticos de
caráter diverso; com frequência, abandonam quase por completo o exame
das ideias do filósofo. Alguns limitam-se a analisar figuras literárias
presentes em seus escritos; outros restringem-se a compará-los com os de
diferentes escritores.
O que esperar, hoje, de um estudo que trate do estilo de Nietzsche? A
meu ver o que ainda está por fazer é explorar o vínculo indissolúvel
entre o conteúdo filosófico e as formas estilísticas presentes em seus
livros.
*Scarlett Marton é professora titular aposentada do departamento de filosofia da USP. Autora, entre outros livros, de Nietzsche, das forças cósmicas aos valores humanos (Editora UFMG).
A tragédia cubana, um tanto melancólica, não se explica pela
derrocada das relações de produção, mas pelo esvaziamento das relações
de consumo
Frequentadores habituais de Havana reconhecem que a ilha de Fidel
Castro enfrenta a sua pior crise. Quase tudo se esvai. Da revolução que
tomou o poder em 1959, quando os guerrilheiros de Sierra Maestra
marcharam sobre as ruas da capital sob os aplausos de um povo sorridente
e esperançoso, resta pouco além de repartições burocráticas, escassez
generalizada e gabinetes de vigilância política.
Os maiores entusiastas dessa longa história de arrebatamentos sabem
disso. “É desesperador. Ninguém em Havana aponta saídas”, declarou Frei
Betto ao jornalista Mario Sergio Conti (Folha de S. Paulo, 1º. de março). O frade dominicano, autor do bestseller Fidel e a religião (Editora Brasiliense, 1985), traduzido em mais de 30 países, inclusive em Cuba, é uma celebridade local.
Basta ele sair por las calles para que venha alguém puxar
assunto. O afeto ainda é o mesmo, o calor do olhar e dos abraços ainda
aquece, mas os sorrisos perderam o brilho, a esperança minguou e os
aplausos escassearam. Nas palavras de Mario Sergio Conti, Cuba está “sem
futuro à vista”.
Não é apenas uma estrela que fenece em céu incerto, não é somente um
ocaso triste; a perda de vitalidade da saga insurrecional que balançou o
mundo há seis décadas tem a envergadura de um evento histórico mais
denso, que não podemos desistir de compreendr. A agonia lenta e
progressiva tem pelo menos duas dimensões: no plano mais imediato, o das
coisas práticas, fracassa um regime e um modo de governar; no plano
menos tangível, o que vem abaixo é uma utopia do tamanho do mundo, uma
utopia desproporcionalmente maior do que a modesta tripa de terra
caribenha onde um dia se instalou em meio a gritos de vitória, jipes
claudicantes, charutos rebeldes e mochilas puídas. A derrota que se
expressa agora como falta de futuro é a calcinação de um sonho.
Explicações virão. Uns dirão que o bloqueio e as sanções impostas
pelos Estados Unidos engendraram o estrago, e estarão certos. Outros
sustentarão que o autoritarismo, os vezos ditatoriais e a
insensibilidade de um poder que se ilhou de sua própria gente são os
responsáveis pelo fiasco – estarão certos também.
O que poucos observadores notarão é que Cuba foi devorada e depois
desprezada pela indústria do entretenimento ou, de modo mais preciso,
pela indústria do turismo. Se vai morrendo aos poucos, não morre apenas
de inanição (vítima do bloqueio) ou de asfixia (vítima de uma ordem
autocrática), mas principalmente de déficit de carisma. Seu charme, que
encantou visitantes tão distintos quanto o filósofo francês Jean-Paul
Sartre e o jornalista brasileiro Ruy Mesquita, diretor do jornal O Estado de S. Paulo, não existe mais. El Malecón perdeu vigor porque perdeu a graça.
Quando se abriu para o turismo sem inibições, a ilha tomou a decisão
de entrar para o mercado de viagens recreativas como se fosse um parque
temático, uma espécie de Disneylândia socialista. Em parte, a guinada
deu certo. Os consumidores afluíram sedentos de aventuras ideológicas.
Muitos se deliciavam discutindo conjuntura internacional com o garçom e
interpelando o motorista de taxi sobre a luta de classes.
Passar férias naquelas plagas e naquelas praias era como praticar um
esporte radical, como experimentar uma clandestinidade sem correr risco
de ir para a cadeia. Eram férias inebriantes, como brincar de guerrilha
tendo um mojito numa mão e um Cohiba na outra.
No fundo, porém, o frenesi supostamente militante não passava de uma
caprichosa modalidade de consumo: os turistas autodenominados “de
esquerda” deglutiam com voracidade os dramas humanos do “período
especial”, os infortúnios de homossexuais que sofriam perseguição do
regime, o heroísmo de famílias que criavam porcos dentro de apartamentos
para ter o que comer. Adoravam tudo isso, pois tudo isso fazia parte da
luta que venceria a exploração do homem pelo homem.
Os turistas combativos iam para Varadero ou Cayo Largo e saíam de lá com a alma renovada, abastecida de novas fantasias, mais ou menos como quem vai até o NASA Kennedy Space Center para encostar os dedos em naves espaciais ou viaja para a Índia para se submeter a overdoses de meditação transcendental.
Foi então que o país que destronou Fulgencio Batista e seus cassinos
alcoolizantes seguiu no mesmo negócio, apenas redecorou as vitrines.
Funcionou, ao menos um pouco. Depois, o fetiche da mercadoria se desfez e
a concorrência levou a melhor. A Cuba turística se deixou ultrapassar
por outras atrações que ofereciam mais adrenalina, como paisagens
exóticas da China, ondas perfeitas na Oceania ou a culinária vietnamita.
Pode ser cruel dizer isso, mas é o que é: se Cuba hoje desliza para o
malogro, desliza menos porque perdeu um embate político, e mais por ter
deixado de ser o objeto do desejo das massas – não das massas
proletárias, mas das massas consumidoras internacionais. A sua tragédia
um tanto melancólica não se explica pela derrocada das relações de
produção, mas pelo esvaziamento das relações de consumo. Os outdoors de
Che Guevara, Fidel e Camilo Cinfuegos desbotaram.
*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica). https://amzn.to/3SytDKl
Autor analisa sucesso do livro cult “Casa de Folhas”, elogiado por Stephen King, impossível de filmar e que levou 24 anos para chegar ao Brasil
No centro da “Casa de Folhas” (DarkSide, 2024), um labirinto de
possibilidades infinitas aguarda para tragar seus ocupantes numa espiral
de escuridão. Labiríntica também é a própria história da obra cult
escrita pelo norte-americano Mark Z. Danielewski. Com pelo menos três
níveis narrativos diferentes, o livro — cuja tradução para o português
sai só agora no Brasil, após uma espera de 24 anos — traz em seu cerne a
jornada de uma família.
Num início muito semelhante ao de um filme de terror
tradicional, os Navidson se instalam em uma nova casa aparentemente
comum. Até que o patriarca faz uma descoberta inusitada, senão
impossível: a casa é maior por dentro do que por fora. Munido
dessa informação, Will Navidson, um fotógrafo de guerra vencedor do
Pulitzer, começa a explorar o misterioso labirinto oculto no interior do
edifício, que ele registra num documentário.
“Sinto inveja dessa primeira excursão pela casa, de estar exposto
pela primeira vez aos seus mistérios”, conta Danielewski em entrevista a
Gama. Hoje, 24 anos após a publicação original, a
obra, assim como seu autor, segue envolta numa atmosfera de suspense que
contribuiu de maneira significativa para o status cult que ganhou ao
longo dos anos.
A história dos Navidson o leitor acompanha através de uma análise
acadêmica escrita por Zampanò, idoso cego e solitário. Além disso, o
relato é entrecortado pelas notas de rodapé de Johnny, funcionário de um
estúdio de tatuagem que surrupiou os documentos após a morte de
Zampanò. Enquanto acompanhamos essas três linhas narrativas
simultâneas, Johnny se debate com uma inconsistência: não há nenhum
registro real de que o documentário, os Navidson ou sua casa misteriosa
tenham existido.
Além das experimentações narrativas, o livro é repleto de detalhes
como notas de rodapé que levam a outras notas de rodapé, anagramas e
charadas que, assim como o labirinto no centro da “Casa de Folhas”,
inspiram infinitas possibilidades de leitura. Há capítulos em que é
preciso rodar o volume constantemente ou colocá-lo frente a um espelho
para avançar na leitura. Até a capa esconde uma brincadeira. Ela é menor
que o interior do livro, da mesma forma que a casa do título.
Todos esses aspectos ajudam a entender os desafios com que o tradutor
Adriano Scandolara e a diagramadora Lilian Mitsunaga tiveram de lidar
ao longo de um projeto que levou anos para ser concluído. O trabalho e
as particularidades de impressão, como palavras coloridas, também se
refletem no preço: a edição limitada sai por salgados R$ 295.
Chamada de “Moby Dick do horror” por ninguém menos que
Stephen King, a obra também resiste ao ebook ou a adaptações
audiovisuais, embora seu autor esteja contemplando uma complexa versão
em audiobook. “Ao mesmo tempo, não sei o que significa. É uma
forma de arte diferente? Devo admitir de cara que será uma versão
resumida?”, questiona.
Uma das inspirações para a estrutura labiríntica da obra veio com a
morte do pai, que lhe inspirou a escrever um poema numa nota de rodapé,
direcionando toda a estrutura da obra. Escrito ao longo de dez anos,
“Casa de Folhas” na época também dividiu espaço com o trabalho de
Danielewski como encanador.
O sucesso do romance — hoje considerado um dos principais exemplos da
literatura ergódica, que demanda esforço considerável do leitor —, no
entanto, permitiu que se dedicasse integralmente à literatura. Tanto que
suas obras seguintes foram os ambiciosos “Only Revolutions” e a série
“The Familiar”, que deveria se estender por 27 volumes, mas acabou sendo
cancelada no quinto livro.
Considerada uma das obras contemporâneas mais influentes no gênero
terror, ela inspirou de livros a músicas, filmes e até videogames. Em 2023, um usuário chegou a criar uma versão alternativa do jogo “Doom” numa casa infestada de monstros, com paredes e cômodos que mudam constantemente de lugar, como no labirinto do livro. “Foi
uma forma diferente de se engajar com a obra. Para mim, foi um enorme
prazer. Um sentimento de diversão, integridade e sofisticação”, admite
Danielewski.
Discutido à exaustão em fóruns ainda no início da internet, hoje o
livro parece ganhar nova vida nas redes sociais. No início do ano, uma
usuária do TikTok enganou muita gente ao falar sobre um suposto novo documentário de terror da A24, que não passava de uma descrição do falso documentário no coração de “Casa de Folhas”. Na conversa com Gama,
Danielewski aborda o legado da obra, sua relação surpreendente com
fenômenos recentes como a Inteligência Artificial e como o livro permite
que cada leitor mergulhe numa narrativa única de si mesmo.
DarkSide Books
G |O que te inspirou a escrever “Casa de Folhas”? Mais de 20 anos depois, sua visão sobre a obra mudou?
Mark Z. Danielewski |
As inspirações de “Casa de Folhas” estão dentro do livro, e a
singularidade de sua inspiração é tão fantástica quanto tentar encontrar
uma resposta final para a questão da casa. A resposta mais complexa é
que todo projeto criativo, se seu autor investir em criar algo
vital e imediato, não só uma regurgitação de outros formatos, acaba
sendo uma fonte interminável de inspirações. Comecei a escrever
“Casa de Folhas” faz mais de 30 anos. O livro em si é um catálogo de
suas próprias inspirações. Se os leitores reconhecem ou não de onde elas
vêm ou como evoluíram ao longo do tempo, não importa muito. Eles
respondem à presença delas, percebem que algo vital acontece ali. O livro é meu pequeno monstro que cresceu. E, quando você sai com um amigo próximo, não quer ficar conversando com o pai dele.
Pode até achar interessante, mas logo vai querer voltar a falar com seu
amigo. Significa que fui saindo cada vez mais de cena. Hoje, as
relações que as pessoas constroem com “Casa de Folhas” vão muito além de
mim, e é como deveria ser.
G |No Brasil, o livro era uma espécie de lenda urbana.
Sem uma tradução, as pessoas tinham que comprar de fora e ler em inglês.
Você já recebeu mensagens de brasileiros sobre isso? O que espera da
reação ao livro?
MZD |
Recebi muitas mensagens de leitores brasileiros ansiosos para um dia
terem uma tradução para o português. É surpreendente que não tenha
acontecido antes, mas acaba sendo um processo orgânico. Escrever “Casa
de Folhas” demandou muita energia e também é necessário um esforço
enorme para traduzir e publicar. E, pelos amigos brasileiros que tenho,
sei que a mente literária está viva e respirando no Brasil. Em termos do
que o livro faz formalmente, já existe uma tradição de narrativas
ficcionais complexas. Acredito que vai haver uma participação e recepção
ativa dos leitores brasileiros. Há pouco tempo, uma leitora veio falar
comigo. Ela estava aliviada. Tinha pensado que ia ser algo acadêmico e
complexo, mas logo se viu imersa e curtindo. Às vezes, a reputação de
“Casa de Folhas” chega na frente da experiência. É um livro que as
pessoas costumam gostar de ler. De certa maneira, sinto inveja dessa primeira excursão pela casa, de estar exposto pela primeira vez aos seus mistérios.
Então estou animado para saber as reações dos leitores brasileiros.
Talvez a gente possa voltar a conversar em alguns anos, e aí você me
conta.
G |Você se envolveu de alguma forma na tradução para o português? Quais os maiores desafios?
MZD |
Na verdade, fui uma espécie de corrimão de apoio. Sempre considerei a
tradução uma forma de arte em si mesma, um gesto criativo. Então até
quero ajudar o tradutor, mas não ficar no caminho da jornada artística
que ele precisa percorrer. Nesse sentido, é uma jornada muito pessoal.
Quão longe ele está disposto a mergulhar na escuridão se trata de uma
escolha individual.
G |Você mencionou que as pessoas chegam com a ideia de
que a leitura vai ser complexa. Muitos se surpreendem com a forma como o
livro lida com temas como luto, abandono, amor etc?
MZD |
O livro te dá permissão constante para não lê-lo. Você pode ler uma
nota de rodapé se quiser, mas não é obrigado. Pode voltar para uma
determinada página, mas também não precisa. Tudo depende do seu nível de
curiosidade. Quando falamos de sentimentos, tendemos a colocar todos
num mesmo pote, mas eles são muito diferentes. A sensação que temos ao
nos apaixonarmos comparada à de quando o amor se acaba… há uma enorme
distância aí. Assim como o labirinto impossível que existe no
coração da casa, você pode mapear sua própria jornada, que é particular
como os seus sentimentos. Quando uma pessoa tenta me explicar o que acha
de “Casa de Folhas”, fico curioso, porque ela está falando de si.
Da primeira vez que lê, você geralmente descobre sensações novas. Se
ler de novo, talvez comece a ter um diálogo não só com a casa, mas com
você mesmo. Por que esses sentimentos surgiram? É por conta da maneira
como a casa se move? É um reflexo da história de Johnny ou do legado da
minha própria família, que costumo questionar ou evitar? Todas essas
coisas podem se tornar parte da experiência.
G |Como seus outros livros seguem lógica semelhante, ia
perguntar se você acha que a literatura precisa demandar esforço. Mas,
com o que você acaba de dizer, te pergunto se é uma maneira de tornar
ainda mais individual a jornada do leitor.
MZD |
Com certeza. E parte disso é a forma como o livro é rotulado. Uma
livraria pode botá-lo na sessão de ficção, outra na de terror, uma
terceira na parte acadêmica… isso muda constantemente. Talvez não de um
dia ou de um ano para o outro, mas a cada cinco ou dez anos, o livro se
transforma em outra coisa. Então o selo da literatura ergódica ainda
serve para definir “Casa de Folhas”? Não sei e não é algo com que me
preocupo. Mas não acho que seja correto limitá-lo a uma leitura difícil.
Encontrei um jovem de 13 anos que leu o livro muito rápido. Ele
foi passando as páginas porque amou a história, sem perder tempo com
aquilo que não o interessava. Talvez tenha aprendido isso rodando
intermináveis streams de vídeo ou os stories do Instagram e TikTok, onde
é fácil ignorar coisas. Os jovens são especialistas nisso.
Então não dá para definir como leitura difícil. Se a pessoa quiser
passar mais tempo lendo ou relendo, talvez se interesse por algumas de
suas complexidades.
G |Nesses 25 anos, o livro influenciou vários artistas.
Desde elogios de Stephen King e referências em livros de autores como
Paul Tremblay até videogames. Como você avalia o legado de “Casa de
Folhas”?
MZD |
Conforme envelheço, me sinto com sorte. Parece que alguns elementos
em torno do livro foram altamente providenciais. Trabalho com o mesmo
editor desde os anos 90, tive muita sorte de estar ao lado dele. O
timing e a forma como o livro saiu, tudo isso importa. Claro, você
coloca muito trabalho duro naquilo, mas, considerando a turbulência do
mercado literário, sempre há um pouco de sorte e acaso envolvidos. A
forma como o livro chegou à academia, se tornou parte da cultura gamer
ou até dos tatuadores é impressionante. Me tornei o pai que
observa sua criatura emergir e criar vida própria. Há um certo
estranhamento nisso, uma distância. É como ser um atleta que chega aos
60 e olha para o que foi capaz de fazer aos 25. Foi no final do
século 20, um reflexo da minha criação, da educação que recebi dos meus
pais, da universidade, dos professores. Tudo se juntou para levar a
“Casa de Folhas”. Por mais que eu fosse o vetor, o livro também
representa uma linguagem e uma narrativa que vão além de mim.
G |O livro é considerado impossível de adaptar. Mas você
compartilhou o roteiro de uma série baseada na história. Existem planos
para uma adaptação?
MZD |
Era a proposta para uma série de TV, uma forma de revitalizar
narrativas alternativas. Ela teria seguido com uma história diferente,
mas traria a “Casa de Folhas” e todos os seus personagens de volta. O
roteiro questionava o fato de o baú que Johnny encontra estar repleto de
páginas escritas. Em vez disso, continha rolos de filmes. Brinquei com a
ideia de produzir um programa, com uma sala de roteiristas cheia de
vozes diferentes. E queria libertá-los do texto, para fazer explorações
ousadas. Houve tentativas com diferentes produtoras. Apesar de termos
chegado próximo, o negócio nunca pareceu certo. É mais complexo do que
encontrar um agente e um editor, porque há muitas pessoas envolvidas:
atores, produtores, diretores etc. Não quer dizer que não vai acontecer.
Mas se, por exemplo, a HBO se interessar pelos direitos, é pouco
provável que eu diga sim. Quero saber primeiro se vai haver uma aliança
criativa. A produtora não vai ter um senso meticuloso. Eles sabem que
fez sucesso e vão tentar transformar em algo fácil de produzir. Não é
uma crítica, é realidade. Meu trabalho é encontrar uma equipe criativa e
parcerias que façam sentido. Até o momento, não aconteceu. Mas venho
avaliando um audiobook. Ao mesmo tempo, não sei o que significa. É uma
forma de arte diferente? Devo admitir de cara que será uma versão
resumida? Quero uma interpretação mais dramática ou com vozes
singulares? Não sei. O que acha?
G |Também não sei. Acho possível adaptar, seja para um audiobook ou uma série, mas não tem como ser uma adaptação totalmente fiel…
MZD |
Uma coisa que sempre pareceu clara é que, para ter a
experiência completa de “Casa de Folhas”, você precisa do livro em mãos.
Ele não está disponível nem como ebook. E a experiência é pessoal para cada leitor, o que considero especial.
G |Essas características fizeram com que o livro fosse
discutido à exaustão em fóruns online assim que saiu. Hoje, inspira
vídeos no YouTube com milhões de visualizações, conteúdo no TikTok e
outras mídias. Ele segue instigante para o público atual?
MZD |
Isso acaba fugindo do meu escopo. Quando você entra em um desses
grupos, encontra pessoas que leram o livro várias vezes. Pode ser de
grande ajuda para novos leitores, mas também intimidador. Tem gente que o
lê em grupos de leitura e discute ao longo de meses. A ideia me fez
pensar que nem todos esses debates acontecem online. Ele tem vida
própria além da internet.
G |Você levou mais de uma década para escrever “Casa de
Folhas”. Como é seu processo de escrita? Já dedicou tanto tempo a uma
mesma obra?
MZD |
Meu livro seguinte, “Only Revolutions”, levou seis anos e foi a
experiência de escrita mais intensa que já tive. “The Familiar” também
foi intenso. Em termos de horas, talvez tenha sido igual porque, quando
escrevi “Casa de Folhas”, tentava ganhar a vida como encanador. “Only
Revolutions” saiu um livro bonito, mas muito complicado. “The Familiar”
foi o mais ambicioso, a história de uma menina que encontra um gato que
não é só um gato. A ideia era escrever 27 volumes. Tivemos um
começo promissor, publicando dois livros com mais de 800 páginas por
ano, com experimentações gráficas mais intensas que “Casa de Folhas”.
Mas a quantidade de leitores não era suficiente para justificar outros
22 volumes. Assim como uma série de TV, fomos cancelados. Foi
angustiante, porque o livro ficou dez anos em produção e chegou a ser
best-seller do New York Times. Sofri essa derrota sozinho, mas sinto
também por aqueles que queriam continuar a experiência. Muita gente acha
que sei como tudo ia acontecer. Até tinha um rascunho geral, mas,
quando você escreve algo dessa magnitude, a história pode mudar. Estou
animado com o livro que estou escrevendo, um faroeste ao qual dediquei
cinco ou seis anos. Tem a mesma energia de “The Familiar”, só que com
começo, meio e fim. Assim ninguém se frustra.
G |Em “Casa de Folhas”, as incertezas sobre o que é
real, o fato de alguns livros e citações serem verdadeiros e outros
inventados, tudo contribui para uma atmosfera de dúvida. No gênero, é
importante o leitor não saber onde está pisando?
MZD |
Não escrevi para gerar um efeito. Podemos olhar o livro como uma
história de terror, como parte das mídias digitais ou até uma fresta
entre o mundo antes e depois da popularização da internet. Mas também
tem a ver com a pergunta: o que é válido e o que não é? No que
podemos acreditar? Até as imagens perderam seu status de autenticidade.
Então é uma história de terror que reflete nossos terrores em relação à
mídia, às pessoas e aos governos. Ao mesmo tempo, tem um nível
pessoal. No feed de um amigo, as imagens são mesmo dele ou foram criadas
para gerar uma certa ideia sobre sua vida? Pode ser pela idade, mas a
comunicação digital tem se tornado cada vez menos frequente para mim.
Sento para jantar com amigos que não levam seus celulares. Em vez de
apontar coisas nas telas, usamos palavras para descrevê-las. Quando
olhamos um para o outro ou repartimos o pão, compartilhamos algo
significativo e autêntico. O centro de “Casa de Folhas” é a forma como
Johnny cria uma narrativa sobre si com a qual consegue viver. O
livro não é sobre a história dele ou dos Navidsons, mas sobre como cada
um enxerga sua própria narrativa na escuridão. É quando percebe que
precisa forjar uma história que seja verdadeira, mas também o ajude a
seguir adiante. A jornada dos leitores não é dentro da casa, mas em suas
casas particulares.
G |Depois dessa jornada, é estranho retornar para uma
leitura mais tradicional, sem notas de rodapé e mensagens escondidas.
Você já leu algum livro que tornou difícil começar outra leitura depois?
MZD |
Li a “Ilíada” muitas vezes, com diferentes tradutores, e é uma
experiência angustiante, porque pouca coisa mudou. Temos pessoas se
esfaqueando e se matando no campo de batalha. O ethos sangrento daquilo,
o antagonismo que existe ali e a busca pela glória e riqueza que move
os personagens são muito poderosos. Mais recentemente, li “Quando
Deixamos de Entender o Mundo”, de Benjamín Labatut, que é de uma energia
viciante. Você começa com um artigo científico e logo percebe que a
ficção tomou conta. Tem a ver com a vontade de inventar, mas também
olhar para o custo das ideias, coisas complicadas e perigosas. Ainda
assim, o espírito humano consegue se lançar sobre territórios
desconhecidos e retornar com algo como a teoria quântica. É fantástico. E
gostei muito de “An Immense World”, de Ed Yong, que é narrado pelo
ponto de vista dos animais. Foi encantador entender que a aranha não te
observa só com olhos, mas através das vibrações, da música de sua teia.
Agora, quando vejo uma teia de aranha, enxergo uma criatura que escuta
intensamente o mundo, o que é comovente.
A partir do capital financeirizado, surgiu
outra forma de capturar a riqueza coletiva. Quais seus meios de
acumulação. Por que produz desigualdade e devastação brutais. Como a
reapropriação social do conhecimento pode minar suas bases.
Há tempos estamos rodando em torno do pote, sem meter efetivamente a
colher. O que aconteceu com o capitalismo de antanho? Como os novos
mecanismos não cabem nos conceitos tradicionais de análise do
capitalismo industrial, acrescentamos qualificativos: Robert Reich fala
sobre capitalismo corporativo, Mariana Mazzucato sobre capitalismo
extrativo, Grzegorz Konat sobre capitalismo real, Joel Kotkin sobre
neo-feudalismo, Zygmunt Bauman sobre capitalismo parasitário, Brett
Christophers sobre capitalismo rentista, Shoshana Zuboff sobre
capitalismo de vigilância, Eric Sadin sobre capitalismo cognitivo,
Jonathan Haskel e Stian Westlake sobre capitalismo sem capital, este
último no mínimo um qualificativo estranho: o capitalismo sem capital
ainda é capitalismo?
O capitalismo é chamado assim em época relativamente recente, e
adquire raízes teóricas e científicas de análise a partir de Adam Smith
em 1776, e Karl Marx um século mais tarde. No centro do conceito, está o
mecanismo de acumulação de capital. Ou seja, não é ter riqueza, bens ou
dinheiro, isso sempre teve, e sim estar inserido no processo de
reprodução de capital, que vai se valorizando através de investimentos:
não é ter iates e aviões, que constituem patrimônio, é ter uma empresa,
que por exemplo produz aço, que vai ser vendido para outras empresas que
irão produzir casas e automóveis, fornecendo mais bens e serviços, e
gerando lucros que serão reinvestidos em mais capacidades produtivas,
mais capital. É precisamente a acumulação de capital, um processo
expansivo. Essa capacidade de investimento que vai se expandindo é
alimentada por lucros, gerados a partir do pagamento aos trabalhadores
de um salário que é inferior ao valor produzido: a mais valia. Trata-se,
portanto, de exploração, mas de uma exploração que se transforma em
mais investimentos, mais empregos, mais lucros, mais capital e mais
impostos para assegurar políticas públicas. Era um sistema. Injusto, mas
produtivo.
O conjunto do processo foi e continua sendo cada vez mais alimentado
pela revolução científica tecnológica que nos deu a máquina a vapor, a
locomotiva e o transporte ferroviário, a eletricidade, o motor a
combustão, a criação de novos materiais através da química, e tantas
inovações que explodiram no século XX com eletrificação generalizada, o
carro, o avião, a televisão, o computador, a q2uímica fina, a biologia e
os primeiros passos na manipulação do genoma e assim por diante. Essa
pequena enumeração das transformações científico-tecnológicas é
necessária porque se trata do principal motor das transformações: as
pessoas tendem a glorificar o capitalista, que aplicou os avanços
científicos, mas muito menos os cientistas que os criaram. James Watt,
Benjamin Franklin, Michael Faraday, Albert Einstein, pesquisadores que
revolucionaram a base energética do planeta, colocando nas máquinas
industriais e nas nossas mãos um volume de energia que multiplicou por
um fator de centenas ou milhares o que era a força dos nossos músculos,
deslocaram de forma estrutural a relação entre o homem e a natureza. A
transformação científica foi o motor principal das transformações
econômicas.
A Rússia sai da idade média em 1917, e se torna em poucas décadas uma
potência industrial, a China se expandiu de maneira absolutamente
impressionante, utilizando diferentes formas de organização política e
social. A Europa se cobriu de ferrovias e de empresas de transporte,
organizadas e geridas pelo Estado, que funcionam de maneira eficiente. E
as empresas industriais capitalistas contribuíram também sem dúvida
para multiplicar as nossas capacidades produtivas exponencialmente. Esse
olhar mais amplo é importante para lembrarmos que a sociedade está em
plena mutação, que as tecnologias atualmente avançam ainda mais
rapidamente, e que manter a ideia de que a nossa relativa prosperidade
se deve aos “capitalistas” e aos “mercados” simplesmente
significa um congelamento da forma como olhamos as transformações do
planeta. O vetor principal das transformações foi a base científica da
humanidade, com aporte transitório do capitalista industrial.
Aliás a fase mais próspera do capitalismo é a dos trinta anos de ouro
do pós-guerra, em que houve um equilíbrio inovador entre o setor
público e o mundo empresarial, no quadro do Estado de Bem-Estar, e
funcionou apenas no grupo de países mais ricos, cerca de 15% da
população mundial. Hoje gerou uma aristocracia financeira, gigantes da
comunicação e corporações mundiais de intermediação de commodities (os
traders), com a sua entusiasmada rapaziada manejadora dos algoritmos,
que pouco têm a ver com o empreendedor industrial tradicional. Essa
profunda mudança do sistema é que alimenta tantos qualificativos que se
acrescenta ao “capitalismo”, simplesmente porque a nova realidade não
cabe nos antigos conceitos. Mas não basta acrescentar qualificativos: é
preciso pensar se isso ainda é capitalismo.
A fratura social: nova escala de exploração
Não ser capitalismo não significa não haver apropriação do excedente
social por minorias, como houve nos diferentes modos de produção. O
sistema escravagista se apropriava do produto de outros por meio da
propriedade das pessoas, o modo de produção feudal através da posse da
terra e do controle dos servos, não foi preciso esperar o capitalismo
industrial para termos exploração, com minorias se apropriando do
produto social. Mas enquanto o capitalismo industrial gerava ao mesmo
tempo apropriação do excedente e geração de mais capacidades produtivas,
o rentismo se apropria do excedente sem a contribuição produtiva
correspondente. Como escrevem Gar Alperovitz e Lew Daly, é uma
“apropriação indébita”.[1]
No centro do novo processo está a financeirização. É essencial
entender o impacto do dinheiro não ser mais material, sob forma de notas
impressas por governos, que levávamos na carteira e os bancos guardavam
no cofre. Segundo o How Money Works, 92% da liquidez global é digital:
ou seja, na carteira fica apenas um cartão, nos bancos o computador, o
conjunto é gerido por algoritmos. E por constituir apenas sinais
magnéticos, o espaço financeiro se tornou global, girando no quadro do
High Frequency Trading, em volumes radicalmente desconectados da
economia real. A BlackRock, gestora de ativos (asset management)
administra 10 trilhões de dólares, enquanto o orçamento federal dos
Estados Unidos é da ordem de 6 trilhões. O mercado de derivativos atinge
em 2022 630 trilhões de dólares, para um PIB mundial de 100 trilhões,
no qual aliás se incluem os lucros financeiros como se fossem ‘produto’.
Enquanto a apropriação do excedente por baixos salários é hoje
bastante clara na mente das pessoas, levando inclusive à legalização de
sindicatos, e lutas pelos reajustes periódicos, os mecanismos de
exploração financeira já são bem descritos em tantos trabalhos,
inclusive os mencionados acima, mas continuam uma realidade nebulosa
para a quase totalidade da população, que não sabe quanto o banco leva
quando realiza uma pagamento com cartão, que fica abismada ao se
encontrar atolada em dívidas – precisam de educação financeira, comentam
os banqueiros – e para quem o conceito de paraíso fiscal, onde hoje as
grandes corporações colocam mais de 60% dos seus lucros – lembra ilhas
com coqueiros, não o Estado de Delaware, Wall Street ou a City de
Londres.
Um ponto chave é que a escala de apropriação do excedente por
minorias mudou radicalmente. Os dados abaixo são do Crédit Suisse,
incluídos no relatório da ONU: [2]
Na coluna à esquerda, vemos que 62,5 milhões de pessoas, 1,2% da
população adulta, detêm 47,8% da riqueza acumulada, 221,7 trilhões de
dólares. Na coluna seguinte, vemos que 627 milhões de adultos, 11,8% do
total, detêm 38.1% da riqueza, 176,5 trilhões. O que podemos classificar
de classe média baixa, na terceira coluna, com riqueza acumulada entre
10 e 100 mil dólares, tem 13,0% da riqueza, 60,4 trilhões. E 2,818
bilhões de adultos, 53,2% do total, detêm apenas 5,0 trilhões, 1,1% do
total. Basicamente, podemos dizer que inseridos de forma precária no
sistema estão cerca de dois terços da humanidade, os 53,2% da última
coluna mais uma parte da segunda coluna. Interessante é constatar que se
tirarmos 2,2% da fortuna do grupo mais rico, que eles mal notariam,
daria para dobrar a riqueza dos 53,2% mais pobres. E para quem é pobre
isso significaria uma enorme melhoria da qualidade de vida.
Os dados constam da análise que o Crédit Suisse (hoje UBS) realiza da
distribuição da riqueza familiar mundial, estimada em 463,6 trilhões de
dólares nas mãos de 5,3 bilhões de adultos do planeta. O que o mundo
tem de riqueza pessoal acumulada é de cerca de 87 mil dólares por
adulto. Numa família com dois adultos, isso representaria 175 mil,
equivalentes a 900 mil reais. Pela primeira vez na história da
humanidade, temos o suficiente para todos, isso sem contar o valor das
infraestruturas.
Mas o que nos interessa mesmo aqui é o fato da fratura estrutural
profunda da apropriação da riqueza da sociedade, com uma escala de
exploração sem precedentes no próprio capitalismo. Não visível neste
gráfico, é o fato do profundo desnível dentro do 1,2% mais rico, pois o
grosso das fortunas desta coluna está nas mãos dos 0,1 e em particular
do 0,01%. [3] O relatório da ONU que apresenta
a tabela acima comenta que “as atuais extremas desigualdades,
destruição ambiental e vulnerabilidade a crises não constituem um
defeito do sistema, mas a sua característica”. Hoje os dados mais
detalhados encontram-se no WID (World Inequality Database), nos
relatórios da Oxfam, em particular em Oxfam, Survival of the Richest, e
comentados em tantos textos indignados.
Além da desigualdade em termos de riqueza familiar, que contabiliza
por exemplo o valor da nossa casa, outras propriedades, o dinheiro no
banco (deduzindo as dívidas), gerando o que se qualifica de patrimônio
domiciliar líquido (net household wealth), também contabilizamos a
desigualdade de renda. Aqui também a situação é catastrófica, com
bilhões de pessoas atoladas em situação de pobreza. A relação com a
riqueza acumulada é direta, pois enquanto um bilionário, aplicando por
exemplo seu dinheiro para render moderados 5% ao ano, aumenta a sua
riqueza no ritmo de 137 mil ao dia, a imensa maioria da população, os
dois terços que mencionamos, como aproximação, mal consegue fechar o
mês, que dirá se tornarem “investidores” para acumular riqueza. [4] É o que o Banco Mundial e outras instituições chamam de “poverty trap”, armadilha da dívida.
Uma outra escala desta fratura estrutural da sociedade, no mapa
acima, pode ser compreendida ao passarmos da análise por estratos da
população para médias entre países. [5]
Como ordem de grandeza, temos que o capitalismo desenvolvido, que temos
chamado de “Norte Global”, ou de “Ocidente”, é constituído por apenas
14% da população mundial, mas controla 73% da renda. O resto do mundo,
86% da população, apenas 27%. Sem a China, esses números seriam ainda
mais críticos. Interessante esse gráfico apresentar o capitalismo
desenvolvido como uma “gated community”, um tipo de condomínio
planetário, com seis portarias cada vez mais guardadas. A fratura social
e a fratura territorial se cruzam e reforçam. Os ricos dos países
pobres podem adquirir
os “passaportes dourados” em Malta, e viajarem o mundo como
“europeus’. O capitalismo, aliás, nunca funcionou para todos. Como
Ha-Joon Chang escreve tão bem, os de cima tiraram a escada. [6]
A fratura social planetária, tanto entre como dentro dos países,
contrasta com o fato de justamente termos atingido, graças à revolução
científico-tecnológica, um nível de prosperidade que poderia assegurar a
todos uma vida digna, sem a guerra permanente que vivemos. Hoje se
torna essencial entender como se transformaram os mecanismos que geram a
fratura.
As novas formas de apropriação do excedente social
Uma coisa é a apropriação do excedente pelos grupos mais ricos da
sociedade, com uma desigualdade que nos fratura em termos econômicos,
políticas e sociais, e gera imenso sofrimento na base da sociedade.
Outra coisa é constatar que se trata de rentismo improdutivo, de dreno
das riquezas sociais, e não mais de ‘acumulação de capital produtivo’
tão analisado, e que os rentistas modernos tentam utilizar como prova de
sua própria legitimidade. Quando se rompe um mínimo de
proporcionalidade entre o quanto as pessoas contribuem produtivamente, e
o quanto enriquecem, o sistema se desloca: não é mais acumulação de
capital, é rentismo improdutivo.
Brett Christophers, no seu Rentier Capitalism que foca em particular
as dinâmicas do Reino Unido, mas com visão global, agrupa as formas
improdutivas de acumulação de riqueza (the main varieties of rentierism)
em sete fontes principais: [7]
● Financeiro: gerando renta sobre juros, dividendos e ganhos de capital
● Reservas de recursos naturais: apropriação das reservas e sua venda
● Propriedade intelectual: gerando rentismo sobre patentes, royalties, marcas
● Plataformas digitais: comissões, marketing
● Contratos de serviços: gerando taxas de serviços terceirizados
● Infraestrutura: privatização de empresas estatais, licenças governamentais
● Solo: aquisição de terras, privatização de terras públicas, gerando renta de solo (ground rent)
Segundo o autor, isso “resume como os rentistas do setor privado
passam a controlar os ativos (assets), e os tipos de renta que tal
controle lhes permite ganhar em cada caso.” (xxx) O livro detalha como
cada um dos mecanismos permite a apropriação de riqueza pelos rentistas.
No conjunto, é essencial lembrar que essas diversas formas de rentismo
são acessíveis apenas à própria minoria que com elas lucra: a massa da
população, os dois terços, mal fecha o mês, e, portanto, não tem como
entrar no sistema que ganha dinheiro com dinheiro, monopólios, controle
de recursos naturais e cobranças sobre os mais diversos tipos de
transações, lucros de intermediação, a chamada economia de pedágio. Os
rentistas ganham não tanto pelos serviços que prestam, como pela
obrigação de todos passarem pelas suas catracas. Muitos serviços são
úteis, ou até necessários, mas gerando lucros desproporcionais
relativamente ao aporte, como no caso dos oligopólios da comunicação.
Isso sempre existiu, como vimos no caso dos atravessadores comerciais
que exploram os pequenos agricultores, dos usurários tão bem
apresentados no Mercador de Veneza de Shakespeare, ou ainda dos Robber
Barons das finanças e do petróleo nos Estados Unidos no início do século
passado. Mas o deslocamento da base científico-tecnológica do planeta
mudou o peso e as relações de força dos diversos setores de atividade.
No centro, evidentemente, está a revolução digital, que gerou avanços de
produtividade nas áreas industrial e agrícola, mas que sobretudo
revolucionou os processos de intermediação: onde antes “serviam” às
atividades produtividades, por exemplo com crédito, hoje passam a delas
se servir.
Os gigantes corporativos que hoje controlam o planeta não são donos
de empresas concretas, são donos de papéis – hoje sinais magnéticos –
que lhes dão direitos sobre elas. Sweezy e Magdoff já analisavam a
fratura: “A diferença entre ser proprietário de ativos reais e
proprietário de um pacote de direitos legais pode à primeira vista
parecer pouco importante, mas isso, enfaticamente, não é o caso. Na
realidade, essa é a raiz da divisão da economia em setor produtivo e
setor financeiro.” [8]
Os papéis, títulos, ações, registros de dívidas, opções de derivativos,
até o dinheiro – hoje apenas um sinal magnético – são imateriais,
circulam no planeta na velocidade da internet, são administrados por
algoritmos, gerando um universo econômico paralelo que levou a que
tantos se refiram hoje separadamente à economia real e à economia
financeira no sentido amplo. A lógica principal do sistema, é que
justamente ser dono de “papéis”, ou seja, de direitos sobre produtos e
sobre produtores reais, é que permite a geração de fortunas em escala
radicalmente diferente das que efetivamente produzem bens e serviços, o
que por sua vez está na origem do agravamento radical da desigualdade.
A agricultura e a indústria continuam a existir, mas a lógica do seu
desenvolvimento, ou da sua paralisia ou deformação, obedece aos
interesses dos donos dos sinais magnéticos. O dono da fábrica de sapatos
podia explorar os seus trabalhadores, mas precisava comprar máquinas e
matéria prima, gerar empregos, e produzir bons sapatos, o que gerava
conforto para os compradores, e receitas públicas para o Estado
assegurar infraestruturas e políticas sociais. O rentismo atual é dono
de “direitos” que lhe permitem drenar os produtores, os assalariados, ou
qualquer pessoa que tenha um cartão de crédito no bolso ou que precise
comprar um botijão de gás ou encher o tanque do carro. Com a
privatização parcial da Petrobrás, em 2022 foram transferidos 217
bilhões reais para acionistas nacionais e internacionais, dividendos
sobre um produto que é do solo, produzido pela natureza em milhões de
anos, e cujo valor poderia ter sido reinvestido na empresa ou utilizado
pelo governo para financiar o desenvolvimento na economia real.
Outro fator essencial da fratura, além dos mecanismos financeiros de
exploração, é que o sistema rentista não depende de oferecer empregos
para gerar renta, ou apenas marginalmente, o que mantém grande parte da
população em situação de pobreza e insegurança, multiplicando relações
precárias de trabalho, com a chamada “flexibilização”. Um terceiro fator
importante, é que produtores de bens e serviços de consumo precisam que
haja consumo de massa, ou seja, capacidade de compra por parte da
população: isso se torna secundário para os diversos tipos de rentistas.
Ou seja, o rentismo precisa apenas marginalmente da força de trabalho e
da demanda popular. Gera-se um processo de marginalização, já sentido
com força nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha e outros países do
“Norte”, mas em particular na imensa massa dos países ditos “em
desenvolvimento”. A fratura de certa forma se reforça, e cristaliza.
O conhecimento, conceito amplo que inclui as nossas transformações
científicas e tecnológicas, faz parte desse deslocamento sistêmico. É
impressionante a rapidez com a qual se enraizou o conceito de
plataforma, onde antes falávamos de empresas, ou de corporações. Na base
está a convergência de um conjunto de atividades que o André Gorz
qualificou de “o imaterial”. Gorz adota claramente a visão de que os
deslocamentos nos processos produtivos em geral levam a uma mudança da
própria ciência econômica: “A ampla admissão do conhecimento como a
principal força produtiva provocou uma mudança que compromete a validade
das categorias econômicas chaves e indica a necessidade de
estabelecimento de uma outra economia” (9). [9]
Delinear uma economia que leve em conta a generalização da dimensão
conhecimento como elemento chave dos processos produtivos aponta para
duas transformações básicas. Primeiro, é que uma inovação tecnológica
representa um custo na sua criação, mas a sua reprodução e disseminação,
nesta era informática, pode em geral se fazer a custo zero. Ou seja,
enquanto na era fabril o produtor tinha de produzir grandes quantidades
para ganhar mais dinheiro, no caso da inovação, uma vez identificada
determinada tecnologia, o ganho é feito travando ao máximo o acesso,
para gerar um efeito de monopólio. Se a tecnologia se generaliza,
reduz-se o lucro. Ao patentear o “one-click” a Amazon tentou impedir
milhares de empresas no mundo de desburocratizar as vendas. Com isso,
tira-se das ideias a sua força maior, o fato de poderem fertilizar a
criatividade dos mais variados atores sociais. A semente da Monsanto foi
dotada de um gene “exterminador” para evitar que os agricultores possam
reproduzi-la. Diferentemente de um produto material, um avanço
imaterial é indefinidamente reproduzível. Ou seja, para a corporação, é
preciso travar o acesso: Gorz ainda: “Sempre se trata de contornar
temporariamente, quando possível, a lei do mercado. Sempre se trata de
transformar a abundância “ameaçadora” em uma nova forma de escassez”
(11).
Segundo, as formas tradicionais de remuneração do trabalho se veem
ultrapassadas, notadamente na visão tradicional de oito horas de
trabalho “alugadas” para o que a empresas necessite. A criatividade não
se faz “por horas”. Há gente que pode ficar sentada semanas em um
ambiente de trabalho e não trazer ideia alguma. Como se remunera a
criatividade? O trabalhador, neste nível, se torna um tipo de empresário
de si mesmo, negociando o seu produto. “A ideia do tempo como padrão do
valor não funciona mais.” E se o tempo de trabalho não é mais o padrão
de valor, como se determina o preço de venda do produto? Gorz passa
naturalmente a analisar a função da marca, da publicidade, dos valores
simbólicos como base da nova formação do valor, delineando assim
gradualmente a mudança sistêmica que enfrentamos. Ao ser criticada pelo
valor exorbitante cobrado por um medicamento de produção barata, a
empresa responde que devemos pensar não no custo do produto, mas no
valor da vida que salva. A teoria do valor, base da ciência econômica,
se desloca.
“Se não for uma metáfora, a expressão ‘economia do conhecimento’
significa transtornos importantes para o sistema econômico. Ela indica
que o conhecimento se tornou a principal força produtiva, e que,
consequentemente, os produtos da atividade social não são mais,
principalmente, produtos do trabalho cristalizado, mas sim do
conhecimento cristalizado. Indica também que o valor de troca das
mercadorias, sejam ou não materiais, não mais é determinado em última
análise pela quantidade de trabalho social geral que elas contêm, mas,
principalmente, pelo seu conteúdo de conhecimentos, informações, de
inteligência gerais. É esta última, e não mais o trabalho social
abstrato mensurável segundo um único padrão, que se torna a principal
substância social comum a todas as mercadorias. É ela que se torna a
principal fonte de valor e de lucro, e assim, segundo vários autores, a
principal forma do trabalho e do capital”(29) [10]
O que o mundo do dinheiro e o mundo do conhecimento hoje têm em
comum, é que ambos são, precisamente, imateriais, ou ‘intangíveis’, como
encontramos em outros autores. Ou seja, ambos circulam na internet na
velocidade da luz, sob forma de sinais magnéticos, e no espaço
planetário, sem que haja a antiga ‘territorialidade’, local de produção,
da fábrica ou da fazenda, de residência dos trabalhadores, dos espaços
de socialização. O fenômeno se manifesta de forma mais ampla ainda nas
áreas hoje imbricadas de comunicação e de informação, como vemos nos
gráficos abaixo: [11]
Vemos aqui o peso da plataforma Meta (Facebook), que atinge
praticamente 3 bilhões de usuários. Youtube, da Alphabet (Google) atinge
2,3 bilhões, WhatsApp (Meta também) 2 bilhões, ultrapassando populações
como a da China ou da Índia. O gigantismo está ligado à característica
técnica básica, de que sinais magnéticos circulam no planeta de forma
quase instantânea, e a dominação do mais forte se torna rapidamente
planetária. Resultam os chamados ‘monopólios de demanda’: temos de usar o
que os outros usam, porque sem isso não comunicamos. Além do alcance
planetário, são extremamente concentrados:
O grau de oligopolização das atividades fica evidente, e aqui também
se trata do imaterial, de sinais magnéticos, navegação de comunicação e
informação em que os volumes, na era dos computadores modernos, deixam
de ser um problema. A indústria da comunicação e da informação torna-se
dominante, gerando inclusive a tão estudada batalha pelo tempo de
atenção das pessoas, com o crescente caos de informações reais,
fake-news, marketing comportamental e sistemas de vigilância baseadas na
invasão das comunicações pessoais.
Mais impressionante ainda é a gradual osmose dos subsistemas da
economia imaterial, de sinais magnéticos, quer representem dinheiro,
conhecimento, informação ou comunicações, tendo todos em comum, neste
eixo principal para onde se orienta a economia e a apropriação de valor,
o fato de banharem o planeta, de atingirem qualquer pessoa, e de serem
controlados por um número restrito de megacorporações. Interessante
neste sentido que a Amazon trabalhe com acesso de informações a
terceiros, além da intermediação comercial, enquanto por sua vez a
própria Amazon, mas também Google, Facebook, Apple, Microsoft são em
parte controladas pelos três maiores gigantes financeiros, BlackRock,
Vanguard e State Street. Forma-se assim um universo de controle
multisetorial, de impacto planetário.
E não é secundário que também sejam dominantemente norte-americanos, e
conectados com a NSA e outros sistemas de informação política, gerando a
guerra contra a Huawei, a Tiktok e outras corporações chinesas: os
‘mercados’ se tornaram mais políticos, a política se torna ainda mais
ferramenta das corporações. Em outros termos, ao rentismo que drena os
recursos para os acionistas no topo da pirâmide financeira mundial, se
acrescenta o controle algorítmico das pessoas, e a submissão do universo
produtivo à lógica do shareholder, e cada vez menos do stakeholder. O
rentismo se transforma em modo de produção. Não substitui as empresas
tradicionais, sejam industriais, agrícolas ou de diversos tipos de
serviços, ou ainda planos de saúde ou universidades, ou mesmo
comportamentos individuais, mas as submete à sua lógica. Não constitui
apenas um dreno de recursos e a formação de uma poderosa elite rentista
global: altera em profundidade como nos organizamos como sociedade.
A manipulação capilarizada
Se a extrema concentração no topo, e a osmose dos diversos
subsistemas que têm em comum o fato de manejarem apenas sinais
magnéticos, massa virtual em que banha o planeta, também é preciso
insistir no fato dos algoritmos e da inteligência artificial permitirem
uma capilaridade que atinge cada pessoa do planeta. Para a capacidade
moderna de computação, 8 bilhões de pessoas não representam uma massa
incalculável, tornam-se indivíduos isoláveis, fontes de informação, e
clientes, quer queiram quer não. O sistema Experian permite que o
gerente da sua conta no banco tenha informações detalhadas sobre a sua
situação financeira, e o seu custo de crédito será ajustado segundo os
interesses do banco. E foi legalizado. [12]
A faxineira que me presta serviços uma vez por semana, contratou um
plano privado de saúde, NotreDame, que tem entre os seus acionistas a
BlackRock: uma parte do salário de uma pessoa modesta da periferia de
São Paulo é transferida em frações de segundos, pelos algoritmos, para
acionistas nos Estados Unidos e outros países. Ao tomar um Uber na minha
cidade, pago ao motorista, mas automaticamente boa parte do que pago
vai para acionistas internacionais, preço exorbitante pago para
pertencer a uma rede que permite estar conectado. Ao pagar uma compra
com cartão, na modalidade crédito, cerca de 5% do valor da minha compra
vai para intermediários financeiros, Visa ou outro. Se procuro algo no
computador, não consigo me mexer se não estiver o tempo todo autorizando
alguma rede a instalar cookies, entrando no sistema global de dreno de
informações pessoais. Gerou-se assim um sistema de micro-drenagem de
recursos e de informações pessoais de bilhões de pessoas de qualquer
parte do mundo, inclusive dos mais pobres. Somos uma unidade de
comunicação e informação do sistema planetário.
Todos os custos da publicidade que me invade por todo lado e por todo
meio estão incluídos nos preços que eu pago pelos produtos. Na TV me
dizem que o programa é gentilmente oferecido por determinada empresa,
mas esquecem de dizer que sou eu que pago para que interrompam o
programa, em qualquer compra. Em 2021, 97,5% dos rendimentos da Meta
(Facebook) vêm da publicidade. Como a mídia comercial se torna
dependente das empresas que pagam a publicidade, o resultado é que o
conjunto dos sistemas de informação, inclusive os noticiários, se tornam
enviesados. Nós os pagamos para que nos convençam. Não se trata aqui de
informação sobre produtos, e sim de influenciar comportamentos em
geral. Com as horas que passamos vendo telas, tornamo-nos prisioneiros
de um sistema que pesa nos nossos bolsos. [14]
A Amazon começou prestando serviços comerciais, mas entendeu que a
sua dominância do mercado lhe permitia se tornar o intermediário
obrigatório como plataforma de serviços virtuais, com o AWS (Amazon Web
Service) e FBA (Fulfillment by Amazon): “AWS como FBA são o fruto da
Amazon ter construído infraestruturas cruciais para a entrega dos seus
próprios serviços, e então ter tornado essas infraestruturas de
serviços, entregas disponíveis comercialmente – podemos dizer,
alugando-as para fora – a terceiros para a entrega dos seus serviços.
Ambos são, neste sentido, rentistas de infraestruturas… A Amazon
controla infraestruturas críticas para a economia da internet – de
formas que seria difícil novos interessados (entrants) replicar ou
tentar enfrentar com competição” [15]
Quando se atinge uma situação de monopólio, pode ser cobrar preços
muito além dos que seriam praticados num mercado competitivo, do
capitalismo concorrencial. “No ano fiscal de 2021, as “big tech” tiveram
um crescimento combinado de 27%, de um ano para outro.” Esses ganhos
aparecem nos preços que pagamos. A tabela abaixo mostra os avanços dos
cinco grandes (GAFAM): [16]
Isso é particularmente visível na apropriação privada de
infraestruturas. Um produtor precisa escoar o seu produto, mas não vai
poder escolher que ferrovia vai utilizar em função das tarifas, nem em
que poste de energia vai se conectar. As redes de infraestruturas,
transportes, energia, telecomunicações, e água e saneamento constituem
redes de âmbito nacional e frequentemente internacional, e onde
funcionam de maneira adequada são planejadas e geridas por instituições
públicas: propriedade privada e ‘liberdade econômica’, quando não há
concorrência, levam a abusos. É propriedade privada, mas não mercado.
Perde o objetivo do interesse público, e não tem os benefícios da
concorrência.
Christophers, no capítulo sobre rentismo de infraestruturas
privatizadas no Reino Unido, apresenta esse ‘dinheiro de monopólio’:
“Entre 2010 e 2015, as margens de lucro operacionais no setor estiveram
entre um nível baixo de 41% e alto de 56%, com uma média ponderada de
51,5%.”(323) Isso gerou sem dúvida lucros impressionantes para as
corporações que passaram a controlar as infraestruturas, mas depois de
décadas de desmandos a Grã-Bretanha esta re-estatizando ferrovias e
outros setores, tal como Paris, Berlim e tantos outros re-estatizaram a
gestão de água. A privatização em setores não concorrenciais leva a um
rentismo improdutivo. Todos pagamos por isso.
Não se trata apenas de preços, mas também de perda de produtividade
sistêmica. Na França, por exemplo, segmentos privatizados desativaram
ramais ferroviários menos produtivos, em regiões menos povoadas, gerando
isolamento e protestos. Faz todo sentido o Estado levar infraestruturas
para regiões menos desenvolvidas, ainda que com perdas durante um
tempo, justamente para dinamizá-las e equilibrar o desenvolvimento
territorial. A combinação de facilidade de elevar preços em situação de
monopólio, com objetivo de maximização de lucros para os acionistas em
vez de gerar economias externas para produtores em escala mais ampla,
levam a rentas elevadas e baixa produtividade sistêmica.
A área de recursos naturais é particularmente sensível. Raymond Baker
traz dados sobre diversas partes do mundo, inclusive da região
amazonense: “Estima-se que 50% a 90% da madeira na Amazônia é cortada
sem autorização. Na Indonésia, cerca de 50%, e na Rússia, com as maiores
florestas de coníferas do mundo, 25%… Global Witness, que tem examinado
extração ilegal de madeira há décadas, estima que o financiamento de
projetos de agricultura na Amazônia vem do Deutsche Bank, Santander,
BlackRock, American Capital Group e outros.”(46) [17]
Grupos financeiros internacionais obtêm renta a partir da apropriação
de florestas que não precisaram plantar, apenas financiam e cobram
dividendos de quem extrai. Isso vale evidentemente para minérios,
petróleo, água e outros recursos naturais que levam não só à apropriação
de recursos naturais, ou seja, que são da natureza, não ‘produzidos’,
mas também leva a um conjunto de deformações políticas, na medida em que
corporações globais passam a pressionar ou derrubar governos na batalha
pelo acesso.
A reprimarização do Brasil, o próprio golpe de Estado de 2016, mas
também as tragédias do Congo ou da Indonésia, fazem parte deste conjunto
de atividades que não são propriamente produtivas, e constituem
essencialmente a apropriação privada de bens naturais, com empresas de
extração sem dúvida, em geral terceirizadas, mas antes de tudo
controladas por grupos financeiros mundiais e os seus acionistas, que
por sua vez se associam com grupos empresariais e políticos locais,
assegurando a legislação correspondente aos seus interesses, como no
caso da Lei Kandir no Brasil (1996), que isenta de impostos exportações
primárias. Neste setor como em outros, acima dos executores locais das
políticas extrativas, encontramos os donos de ações que recebem
dividendos em qualquer parte do mundo. Os desastres de Brumadinho e de
Mariana, com a Vale e a Samarco privatizadas, mostram a priorização dos
lucros financeiros sobre a capitalização e reinvestimento na empresa.
Hoje é o rentismo que estrutura o setor produtivo, e sua matéria prima
são apenas sinais magnéticos.
Há ainda o rentismo tradicional, como no caso dos imóveis, mas que
adquiriu novas dimensões. Christophers cita um comentário do Churchill a
este respeito: “Estradas são construídas, ruas são construídas,
serviços são melhorados, a luz elétrica muda a noite para o dia, a água é
trazida de reservatórios a cem milhas de distância nas montanhas – e o
tempo todo o proprietário do imóvel (landlord) fica sentado. Cada uma
dessas melhorias é realizada com trabalho e custo para outras pessoas e
contribuintes. O proprietário monopolista, como monopolista do solo, não
contribui com nenhuma dessas melhorias, e, no entanto, com cada uma
delas o valor da sua propriedade aumenta.”(351) [18]
Hoje são empresas financeiras que adquirem o solo, habitações, nas mais
diversas partes do mundo, elevando os alugueis, adquirindo bairros
inteiros. Não estão contribuindo para que pessoas tenham mais
residências, ou agricultores mais acesso ao solo, geram um mercado
financeiro baseado nas valorizações futuras, uma grande rede que gera
fortunas especulativas e aumento generalizado dos custos para a
população. O imóvel se torna “um puro ativo financeiro.”(358)
A privatização e controle corporativo das políticas sociais constitui
outra área que se transformou num gigantesco sistema especulativo.
Lembremos que essa área se agigantou nas últimas décadas. Só a saúde
representa nos Estados Unidos em torno de 20% do PIB, muito superior à
própria indústria. Apresentei acima a forma como a BlackRock drena uma
parte do que eu pago à minha faxineira, através do plano de saúde Notre
Dame. Mas me interessei no desvio do meu próprio salário de professor
universitário. A minha universidade me inscreveu no plano de saúde
Sulamérica, descontando do meu salário cerca de 4.500 reais mensais. A
Sulamérica por sua vez foi comprada pela Rede D’Or, outro grupo
financeiro, que adquiriu uma fortuna de 27 bilhões de reais, e tem entre
os seus acionistas importante fundo financeiro de Cingapura, GIC. Assim
parte do meu salário migra automaticamente para Cingapura, alimentando
acionistas com lucros astronômicos. Esses lucros financeiros podiam ser
investidos em saúde. Pela desproporção entre o que alocam, e o quanto
retiram, trata-se de um dreno.
Um exemplo clássico nesta área é o dos Estados Unidos, onde a saúde
se tornou um setor econômico gigantesco, e um exemplo mundial de
ineficiência: representa o maior custo por pessoa por ano hoje entre os
países da OCDE, mais do dobro do custo no Canadá, por exemplo. O Canadá
está entre os primeiros em termos de nível de saúde da população, os
Estados Unidos entre os últimos. A facilidade com a qual se atinge este
nível de rentismo na saúde está ligada à insegurança das pessoas
relativamente a eventual situação crítica que exija grandes
investimentos. O rentismo navega aqui na insegurança das pessoas.
Comparação igualmente interessante é entre a Dinamarca e a Suíça, esta
última com o sistema de saúde em grande parte privatizado: com custos
muito menores, a Dinamarca atinge resultados radicalmente superiores.
Particularmente importante é o exemplo da educação, onde a
privatização avança com rapidez, em particular navegando na
transformação mundial da economia: o principal fator de produção, na era
tecnológica, é o conhecimento, por sua vez matéria prima da educação. O
endividamento generalizado da nova geração, para conseguir os diplomas,
gera uma nova crise mundial: com a educação privatizada, os jovens
chegam na idade de trabalhar atolados na dívida estudantil, que os
amarra durante décadas. E já estão se atolando no aluguel que explode ou
na dívida imobiliária. Os ‘investidores’ são frequentemente os mesmos. [19]
Outro mecanismo importante da evolução do capitalismo para o
rentismo, é o caso de patentes, copyrights, diversas formas de controle
do conhecimento por grupos financeiros que cobram direitos de acesso. Na
concepção inicial da proteção de direitos intelectuais, tratava-se de
assegurar remuneração privilegiada para o inventor de novos processos ou
para o escritor, de forma a estimular os avanços científicos e
culturais. Hoje patentes imobilizam uma tecnologia por 20 anos, o que há
um século atrás poderia ser razoável, mas no ritmo moderno de avanços
técnicos representa um latifúndio, claramente visto durante o desastre
do acesso a vacinas durante a Covid-19. Os direitos autorais se
expandiram, teremos acesso aberto aos livros de Paulo Freire apenas em
2067. Com a centralidade do conhecimento no conjunto das transformações
econômicas, sociais e culturais no planeta, a guerra por dificultar o
acesso está no centro de mais um mecanismo rentista. Com o Open Access,
Creative Commons e outros mecanismos abertos de divulgação do
conhecimento, poderíamos ter uma generalização radicalmente nova de
acesso mundial ao conhecimento. [20]
Uma nova articulação global
Elencamos aqui vários mecanismos de apropriação do excedente social
no quadro da evolução do capitalismo industrial para o rentismo digital.
Esses mecanismos envolvem o domínio das plataformas relativamente às
empresas tradicionais, e em particular o fato de se tratar do controle
do imaterial, ou intangível, o que permite mecanismos muito mais amplos
de apropriação, em escala planetária, sem a correspondente criação de
bens e serviços, empregos e bem-estar econômico. Os sistemas de
intermediação financeira, o controle financeiro dos sistemas comerciais e
de marketing, a apropriação privada das infraestruturas, a extração de
recursos naturais, o rentismo baseado na apropriação de imóveis rurais e
urbanos, o uso especulativo das políticas sociais, como saúde e
educação, a guerra para dificultar o acesso ao conhecimento acumulado na
sociedade, com patentes e copyrights, são exemplos de uma conjunto de
atividades em que acima do nível do produtor efetivo de bens e serviços,
do pesquisador, do país dono de recursos naturais, gerou-se uma classe
de rentistas que se apropriam de cada movimento, colocando juros,
tarifas, sobre-preços, levando por sua vez à formação de um clube dos
ricos que detém imenso poder econômico, financeiro, político e
midiático, essencialmente ao controlar direitos sobre atividades ou
patrimônio de terceiros.
Há uma década o ETH, instituto federal suíço de pesquisa tecnológica,
apresentou uma pesquisa de grande importância, primeiro estudo global
da estrutura do poder corporativo mundial, que utilizei no meu livro A
era do capital improdutivo. [21]
No essencial, os autores mostraram que no mundo 737 grupos controlam
80% do mundo corporativo, e nestes um núcleo de 147 controla 40%. A
qualificação de “clube dos ricos” é dos autores, e a justificam: no
topo, são inclusive pessoas que se conhecem, e criaram instituições de
articulação, como o IIF. Guerras sim, para ver quem compra quem, mas
nada de concorrência para prestar melhores serviços: eles essencialmente
gerem ‘ativos’ (assets), ou seja, constituem uma superestrutura de
controle e extração, por meio do mundo digital. O estudo do ETH
(Glattfelder e outros) representou um avanço sem dúvida, mas hoje
precisamos de pesquisa em nível mais amplo, já que o denominador comum
do controle encadeado (A controla B, que controla C, D, E etc.) com
tomadas cruzadas de participação, hoje se amplia pelo fato dos sistemas
digitais permitirem dinâmicas em escala muito mais ampla.
Michael Hudson tem razão em afirmar que está em jogo o destino da civilização. [22]
Uma BlackRock tem mãos nos mais diversos setores, nos mundos da saúde,
da mineração, da comunicação, trabalhando em nível planetário. A
infraestrutura produtiva – a indústria com as suas máquinas,
proprietários de meios de produção, trabalhadores assalariados – é
controlada por plataformas, computadores, algoritmos e inteligência
artificial, mas a superestrutura – o Estado regulador e marco jurídico
correspondente – está em busca de novos rumos. Enquanto não surge um
sistema regulador global, o mundo global da economia digital, nas suas
diversas dimensões que vimos acima, simplesmente reina. E drena. A
economia mundial está na era digital, as instituições públicas, a gestão
política, as regras do jogo, continuam no século passado. Sem
instrumentos de influência ou regulação, o mundo se aprofunda na
catástrofe econômica, social e ambiental. A impotência institucional que
enfrentamos nos leva a uma desarticulação sistêmica desastrosa,
justamente quando a ciência e a riqueza que produzimos permitiriam uma
vida digna para todos, sem destruir o planeta. Nosso problema não é
econômico, é de governança. A gestão pública não é o problema, é a
solução.
Um desafio metodológico e teórico
Como listamos os diferentes qualificadores que muitos pesquisadores
sentiram necessidade de adicionar a “capitalismo”, no início deste
trabalho, a questão básica aqui é se continuar a chamar esse sistema de
capitalismo é adequado. A sugestão aqui é que é cientificamente mais
produtivo e teoricamente mais adequado reunir as diferentes
transformações do sistema capitalista e considerar que estamos diante de
um novo modo de produção, um novo sistema. O fato básico é que a
revolução digital trouxe mudanças profundas no sistema capitalista,
assim como a revolução industrial trouxe para os diferentes modos de
produção rural, em particular o sistema feudal.
A infraestrutura técnica mudou radicalmente, com as tecnologias que
nos conectam instantaneamente em todo o mundo, dinheiro virtual, acesso
virtual à informação e conhecimento. Tempo e espaço pertencem atualmente
a outro paradigma de organização. Mais importante ainda, o principal
fator de produção mudou para IA, informação virtual, conhecimento
acumulado, tecnologia. As máquinas podem estar trancadas em uma fábrica,
o conhecimento é radicalmente diferente, pois pode ser disseminado sem
custo adicional, levando à compreensão do conhecimento como um bem comum
[23]. O mecanismo dominante de extração de
excedente econômico, por outro lado, mudou da exploração através de
baixos salários para plataformas financeiras, de comunicação e
informação, e os diferentes mecanismos de extração de renda que vimos.
Consiste mais em extração de renda do que em acumulação de capital, em
algo que também foi chamado de financeirização.
Nos níveis político e institucional, estamos vendo tentativas
frenéticas de correr atrás das profundas transformações tecnológicas
trazidas pela revolução digital: nossas leis e regulamentações são para a
economia material do século passado. As finanças e outras plataformas
funcionam em escala global, enquanto as regulamentações são basicamente
gerenciadas em escala nacional, gerando vazios institucionais
catastróficos, paraísos fiscais, entre outros, mas também a impotência
das instituições internacionais que datam de Bretton Woods, de uma outra
era.
Eu sugeriria que seria muito mais produtivo identificar os principais
desafios – meio ambiente, desigualdade, as principais causas do
sofrimento e desespero humano – e trabalhar nas instituições de que
precisamos. Isso significa que temos que reconciliar as instituições com
a modernidade, com os novos mecanismos e estrutura de poder da
revolução digital. Não se trata de ser excessivamente ambicioso, mas de
entender claramente quão dramáticos são nossos desafios, em escala
global. A mudança institucional se tornou vital, no sentido original da
palavra. Compreender que estamos enfrentando um novo conjunto de
desafios, com a revolução digital como um sistema, nos ajudará a
construir soluções sem carregar o ônus de tantas simplificações
ideológicas e polarizações concernentes ao que conhecíamos como
capitalismo.
[4] O investimento
produtivo, que gera capacidades ampliadas de produção, deve ser
distinguido das aplicações financeiras, que podem ou não gerar
investimento produtivo. Os que manejam papeis financeiros, diversos
tipos de aplicações, mas não produzem, preferem se qualificar de
‘investidores’.
[5] Big Think– ‘The West” is in fact the world’s biggest gated community – Big Think, October 12, 2019 –
[17] Raymond W.
Baker – Invisible Trillions: How financial secrecy is imperiling
capitalism and democracy – and the way to renew our broken system – BK,
Oakland, 2023
[23] Elinor Ostrom and Charlotte Hess – Understanding Knowledge as a commons – MIT Press, 2007 – https://dowbor.org/2015/05/ Ver também Jeremy Rifkin – The Zero Marginal Cost Society – Palgrave MacMillan, 2017 – https://dowbor.org/2015/03/
* Economista e professor titular de pós-graduação da PUC-SP. Foi consultor
de diversas agências das Nações Unidas, governos e municípios, além de
várias organizações do sistema“S”. Autor e co-autor de cerca de 45
livros, toda sua produção intelectual está disponível online no website
www.dowbor.org.