domingo, 17 de março de 2024

Desvendando a identidade rarefeita de Roberto Bolaño; conheça o escritor chileno e sua obra

Por Paulo Nogueira 

O escritor Roberto Bolãno, morto em 2003.  

O escritor Roberto Bolãno, morto em 2003. Foto: Anna Oswaldo-Cruz Lehner / Divulgação

 

Autor do monumental ‘2666′, e que morreu precocemente na fila por um transplante de fígado, tem o último livro que ele planejou publicar, ‘O Gaúcho Insofrível’, lançado agora no Brasil


O Gaúcho Insofrível, reunindo cinco ficções e duas conferências, é o último livro que o Roberto Bolaño (1953-2003) deixou para ser publicado. O escritor se preparava para um transplante de fígado e acreditava que este livro, quando lançado, poderia ajudá-lo financeiramente durante sua recuperação. Os textos foram entregues num disquete à sua editora, mas naquela mesma madrugada de 2003 ele foi internado. Duas semanas depois, morreu.

Hoje, pouco mais de 20 anos após a sua morte, é uma boa oportunidade para se avaliar o pedigree do autor no cânone – seja chileno, hispânico ou mesmo universal.

A vida de Bolaño é o material de que as lendas literárias são feitas. Nasceu em Santiago, filho de um caminhoneiro (pugilista nas horas vagas) e uma professora: músculos + miolos. Puxou só à mãe: magrelo, disléxico, vítima pioneira do que então ainda não se chamava bullying, um ET em qualquer parte do cosmos.

Estava no Chile quando Pinochet deu o golpe em 1973, foi detido e sobreviveu por um triz (como relata no conto Cartão de Dança). Na Cidade do México, viveu com os pais imigrantes e ainda quase imberbe pertenceu a uma confraria literária tão impertinente que interrompia as leituras públicas de Octávio Paz (Nobel de Literatura em 1990) .

Aos 24 anos, Bolaño se manda para a Europa, residindo na cidadezinha catalã de Blanes. Foi pau para toda obra (incluindo romances, contos e poemas): lavador de pratos, lixeiro, vendedor de bijuterias, empregado de um camping. O nascimento do filho tornou-o “responsável”: “O meu único país é a minha família”. Morreu em 2003, aos 50 anos, na fila para um transplante hepático num hospital de Barcelona (o fígado dele estava pior que o de Prometeu).

Ralando a maior parte da carreira numa obscuridade quase de eclipse, ganhando concursos provincianos de conto e poesia, o próprio Bolaño deve ter ficado embasbacado ao despontar como o primeiro grande fenômeno literário do século 21.

Nos últimos sete anos de vida, não só granjeou aclamação mundial como atingiu vendas de best-sellers plastificados, e não de gemas vanguardistas. Converteu em apóstolos missionários escritores badalados de vários países: Cecilia Manzoni (Argentina), Ignacio Echevarría (Chile), Jorge Volpi (México) e Enrique Vila Matas (Espanha), entre outros.

E deixou um robusto conjunto de títulos inéditos (mais de 14 mil páginas), quase como a mítica arca de Fernando Pessoa. Como ele confessou: “Passei direto de reserva na Segunda Divisão para titular na Champions League”.

Chile: país de poetas?

Será o Chile sobretudo um país de poetas, como alega Alejandro Zambra, cujo romance mais recente se intitula O Poeta Chileno? Afinal, Vicente Huidobro e Pablo Neruda (hoje em foco por eventualmente ter sido assassinado por Pinochet e por ser cancelado como porco-chauvinista) foram candidatos à presidência do Chile.

E Gabriela Mistral foi o primeiro autor latino-americano a receber o Nobel de Literatura – e até hoje a única mulher da região a realizar tal proeza. Mas também é relevante a dimensão lírica de Bolaño, como reconheceu outro grande poeta chileno, Nicanor Parra, ao saber da morte do seu par: “A humanidade ficou devendo um fígado a Bolaño”.

Talvez a identidade rarefeita de Bolaño seja mais latino-americana, ou mesmo hispânica, do que nacional. Descrevia-se não como um expatriado como Cortázar ou Vargas Llosa, porém como um “apátrida”. Em suas obras pulsam dois polos: a metanarrativa (que faz das engrenagens literárias seu assunto) e a autoficção. Com ambos abordou quer a interação do ficcionista com os meios acadêmicos e editoriais, quer as promíscuas relações entre o intelectual e o poder.Capa de 'A Literatura Nazista Na América', de Roberto Bolaño, lançado no Brasil em 2019.

Capa de 'A Literatura Nazista Na América', de Roberto Bolaño, lançado no Brasil em 2019. Foto: Companhia das Letras/Divulgação

No primeiro caso avulta A Literatura Nazista na América, paródia das enciclopédias que tanto encantavam Borges. Nela, Bolaño conjuga fantasia e história latino-americana. Como a inefável poeta argentina Luz Mendiluce, que Hitler pegou no colo quando ela era criança. Momento registrado numa foto, que a poeta evocou no poema Com Hitler Fui Feliz (“sua respiração cálida e seus braços fortes”).

No âmbito autoficcional aflora o alter-ego Arturo Belano, que povoa (como o Nick Adams de Hemingway ou o Nathan Zucker de Philip Roh) vários títulos de Bolaño, inclusive o romance Detetives Selvagens, definido pelo autor como “uma carta de despedida à minha geração”. A saga de uma trupe punk-surrealista de poetas imbuídos do espírito de Rimbaud (daí Artur, e a viagem suicida de Belano à África).

O inacabado e gorgolejante 2666 (1.030 páginas, projetado como cinco romances diferentes), editado um ano depois de morte de Bolaño, também combina autoficção e metalinguagem. Esta última aplicando a verve sardônica como vacina contra o cabotinismo, como na passagem sob lapsos hilários de escritores, como o do francês Alphonse Daudet: “O duque apareceu seguido do seu séquito, que ia à frente”.Capa de '2666', de Roberto Bolaño. Lançado um ano após a morte do autor, o livro venceu o National Book Critics Circle Award nos Estados Unidos e foi eleito o livro do ano pela Time Magazine.

Capa de '2666', de Roberto Bolaño. Lançado um ano após a morte do autor, o livro venceu o National Book Critics Circle Award nos Estados Unidos e foi eleito o livro do ano pela Time Magazine. Foto: Companhia das Letras/Divulgação

E no esfíngico protagonista, o escritor alemão Benno von Archimboldi, um personagem/autor em busca dos seus quatro autores/críticos – e que ao longo de 792 das 1.300 páginas ninguém nunca viu mais gordo, seja em carne e osso, seja em fotografias, entrevistas ou biografias, quase como um Thomas Pynchon europeu e ainda mais espectral. Ou seja, durante 70% da extensão do romance, o autor é apenas a sua obra.

Viúva moveu ações judiciais

Em 2008, a viúva de Bolaño, Carolina López, espantou o establishment literário de Barcelona ao transferir o patrimônio do marido da agência mais famosa em língua espanhola, a de Carmen Balcells, para a do titã global Andrew Wylie. Depois, López rompeu com a editora de Bolaño, a Anagrama. E se desentendeu com o amigo íntimo do marido, o crítico Ignacio Echevarría, que conduziu o manuscrito de 2666 à publicação.


Para alguns, a viúva assumiu um aspecto camaleônico: ora uma espécie de Maria Kodama, ora uma Yoko Ono. Carolina manteve o arquivo de Bolaño fechado e restringiu os direitos de citação de material não publicado. Justificou-se: “Esse legado não é só uma questão literária, mas um doloroso assunto de família.”

A viúva moveu ações judiciais por “violação da intimidade e da honra” aos que afirmaram que Bolaño era viciado em heroína e que mentira sobre sua presença no Chile durante o golpe de Pinochet. Um dos processados é Echevarría (as ações ainda estão tramitando no moroso sistema judiciário espanhol). Tais vicissitudes ajudam a explicar por que ainda não há - contrastando com miríades de exegeses literárias - uma biografia referencial de Roberto Bolaño.

Após o fulgor do “boom Bolaño” (especialmente com a publicação póstuma de 2666 em inglês, em 2008), nos últimos anos a visibilidade do autor cult esmoreceu um tanto – como costuma acontecer com os caprichos das modas mais mercadológicas que literárias. Certos críticos já têm o topete de resmungar que Bolaño foi superestimado.

A cornucópia de obras dele editadas depois da sua morte pode ter provocado uma saturação nos entusiastas – e confundido os leitores que chegam agora o universo literário interconectado de Bolaño, e, com tantos meandros labirínticos, não sabem bem por onde começar. Mesmo assim, seus livros continuam vendendo em 35 idiomas.

O Gaúcho Insofrido

O providencial O Gaúcho Insofrido ajuda a pôr os pingos nos is e contém uma obra-prima, precisamente o conto epônimo. O protagonista é Hector Pereda, um advogado argentino que, no ocaso solitário e amargurado da vida, se muda de Buenos Aires para o pampa.

A figura do gaúcho (ou “pampero”), ente etnográfico e tropo literário que fascinou Borges (que o entronizou como o relicário da alma portenha no conto O Sul), confirma a amplitude continental do chileno Bolaño.

E suas texturas metanarrativas: Pereda menciona explicitamente o personagem do conto icônico de Borges (“Por um instante pensou que seu destino, seu fodido destino americano, seria semelhante ao de Dalhmann”). E batiza seu cavalo de José Bianco, escritor argentino que durante 20 anos foi secretário da influente revista Sur.

'O Gaúcho Insofrível', de Roberto Bolãno. Capa por Raul Loureiro.
'O Gaúcho Insofrível', de Roberto Bolãno. Capa por Raul Loureiro. Foto: Companhia das Letras/Divulgação.

Porém, o pampa hodierno de Bolaño, ao contrário do homérico de Borges, já não tem cavalos nem sequer vacas, embora esteja infestados de coelhos – um símbolo da praga incontinente. E a fazenda que Pereda tenta resgatar da ruína – chamada Álamo Negro, versão lúgubre do Álamo texano, da expansionista gesta norte-americana – se transfigura na metáfora da Argentina eternamente em crise (“Uma casa sem centro, uma árvore enorme e ameaçadora e um celeiro onde se moviam sombras que talvez fossem ratos”) e até da América Latina, com suas quimeras obsoletas e seus autoritarismos espasmódicos.

No fundo, como o próprio Borges formulara em seu poema Os Gaúchos: “Viveram seu destino como em sonhos/Sem saber quem eram nem o que eram./Talvez o mesmo se passe conosco”.

Se na idolatria a Bolaño reinou talvez certo modismo e necrofilia, 20 anos depois da sua morte podemos avaliá-lo sem romantismos mórbidos nem a auréola de “mártir da literatura” – uma platitude kitsch que ele seria o primeiro a ridicularizar.

Quanto a continuar confiando o veredito à posteridade, pode parecer uma decisão sensata – mas Bolaño perguntaria o que é que a posteridade já fez por nós.

O melhor é lê-lo, o tributo a que os grandes autores anseiam. Mesmo que começando pelo fim, pelo Gaúcho Insofrível, que refuta a sofrência idílica que alguns quiseram impingir ao autor.

O Gaúcho Insofrível

  • Autor: Roberto Bolaño
  • Tradução: Joca Reiners Terron
  • Editora: Companhia das Letras (152 págs.; R$ 69,90/ R$ 37,90 o e-book) 
  • Fonte: https://www.estadao.com.br/cultura/literatura/desvendando-a-identidade-rarefeita-de-roberto-bolano-conheca-o-escritor-chileno-e-sua-obra/

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