sexta-feira, 31 de maio de 2024

Por que juventude europeia se volta para a extrema direita?

Por Laura Karpuska*

 Juventude não necessariamente é mais progressista do que as gerações anteriores

Juventude não necessariamente é mais progressista do 
que as gerações anteriores Foto: HÉLVIO ROMERO / ESTADÃO

O contexto social e econômico pode deixar jovens suscetíveis a qualquer populismo

A extrema direita está ganhando a mente e o coração dos jovens europeus. “Na França, surpreendentes 36% dos jovens de 18 a 24 anos apoiam o Rally Nacional (RN), de Marine Le Pen, enquanto 31% apoiam o Partido da Liberdade (PVV), de Geert Wilders, nos Países Baixos”, diz uma das reportagens mais lidas no Financial Times desta semana.

É difícil destacar um único motivo para a ascensão da extrema direita. Na história, a ascensão de grupos extremistas está correlacionada a crises econômicas. O mundo viveu uma grande crise em 2008 e, agora, com a pandemia, mais uma crise. Crises econômicas podem fazer com que expectativas sejam frustradas. Uma forma de canalizar a frustração é um descontentamento generalizado contra o “establishment”, abrindo a porta para candidatos extremistas.

Difícil não lembrar do livro Growing Up Absurd: Problems of Youth in the Organized System, de Paul Goodman. Ele destaca como as estruturas educacionais, econômicas e sociais falharam em fornecer aos jovens um sentido de propósito e oportunidades para um desenvolvimento autêntico. A desmoralização dos jovens resultava, portanto, em um sentimento generalizado de apatia e desengajamento.

O livro foi um marco nos anos 60. Críticos destacam um idealismo exacerbado do autor, sua visão limitada por certo classicismo e pelo fato de que o livro refletia, de forma muito profunda, o momento histórico norte-americano: guerra fria, movimento de direitos civis e uma certa ressaca do sentimento de um futuro brilhante no pós-Segunda Guerra. Apesar das críticas, é impossível não pensarmos que esse crescimento da extrema direita entre os jovens não está relacionado a um tipo de desmoralização da juventude.

Quando os jovens sentem que as instituições não oferecem um caminho claro para uma vida significativa e bem-sucedida, a alternativa que promete mudança – seja ela qual for – e identidade, pertencimento a um grupo, é muito atraente. A extrema direita, com suas mensagens simplificadas e promessas de restauração de ordem e estabilidade, pode parecer uma resposta atraente a essas frustrações.

A ideia de que jovens serão sempre progressistas é um pouco simplista. O contexto social, econômico e histórico pode deixar jovens suscetíveis a qualquer populismo. Uma geração marcada pela pandemia, com preocupações de sobrevivência, com dificuldades em enxergar um futuro melhor é um prato cheio para extremistas. Será que o “establishment” tem algo a oferecer para os desiludidos dessa geração?

* Professora do Insper, Ph.D. em Economia pela Universidade de Nova York em Stony Brook 

Fonte: https://www.estadao.com.br/economia/laura-karpuska/juventude-extrema-direita/

Como a extrema direita usa o preconceito para conquistar cada vez mais votos

Por The Economist


A mudança da Europa em direção à extrema-direita atingiu principalmente os forasteiros previsíveis: muçulmanos e imigrantes da África e do Oriente Médio


Geert Wilders é o político mais poderoso dos Países Baixos. O partido dele ficou em primeiro lugar nas eleições gerais de novembro passado e terá a maior bancada no novo governo. Ele também é um fomentador de ódio já condenado. Os tribunais holandeses o consideraram culpado de “insultar um grupo populacional” em um discurso em 2014.

A ofensa de Wilders foi liderar um público que entoava palavras de ordem pedindo a expulsão dos “marroquinos” – pessoas de ascendência marroquina, que constituem o grupo étnico mais estigmatizado dos Países Baixos.

Isto parece bizarro. Os Países Baixos e o Marrocos são distantes entre si e não têm histórico de conflitos. Mas há uma grande minoria marroquina-holandesa resultante de programas para trabalhadores convidados lançados na década de 1960. Como muçulmanos, eles são alvo de preconceito religioso, e os jovens desse grupo cometem mais crimes do que os de outros grupos muçulmanos.

Assim, desde que a guinada da política holandesa à direita na década de 2000, quem fomenta as divisões raciais tem escolhido eles como alvo. Em 2016, um relatório da Agência de Direitos Fundamentais da UE concluiu que os Países Baixos tinham o maior nível de discriminação contra os norte-africanos entre todos os países pesquisados.

Geert Wilders, líder do partido de extrema-direita PVV, dias depois de conseguir uma vitória nas eleições parlamentares da Holanda, no fim de 2023: vitória graças a um incendiário discurso anti-Islã

Geert Wilders, líder do partido de extrema-direita PVV, 
dias depois de conseguir uma vitória 
nas eleições parlamentares da Holanda, no fim de 2023: 
vitória graças a um incendiário discurso anti-Islã 
Foto: Peter Dejong/AP

Em outros países europeus, diferentes minorias são visadas, tal como acontece com os marroquinos-holandeses nos Países Baixos. Toda sociedade possui hierarquias étnicas; alguém sempre acaba no último degrau.

A mudança da Europa em direção à extrema-direita atingiu principalmente os forasteiros previsíveis: muçulmanos e imigrantes da África e do Oriente Médio. Mas cada país tem suas peculiaridades. Dependendo das circunstâncias locais, os políticos nacionalistas escolhem diferentes minorias para demonizar.

Em alguns países, os grupos estigmatizados são um legado da geografia e da guerra, especialmente em meio às fronteiras mutáveis da Europa Oriental. Os nacionalistas romenos fizeram campanha durante muito tempo contra a etnia húngara do país (nos anos mais recentes, o sentimento anti-húngaro diminuiu, forçando o Aur, um novo partido de extrema-direita, a procurar outros inimigos).

O partido Revival, da Bulgária, é nominalmente anti-turco, embora passe mais tempo atacando os homossexuais. Na antiga Iugoslávia, os antagonismos da guerra da década de 1990 persistem: nacionalistas croatas e kosovares fulminam contra os sérvios; Os macedônios do norte olham com desconfiança para os albaneses étnicos.

Da mesma forma, nos países bálticos, o grupo alvo de mais ressentimento são os russos étnicos que sobraram dos tempos soviéticos. A invasão da Ucrânia pela Rússia exacerbou essas tensões. Estudos realizados no ano passado pelo Friedrich Ebert Stiftung, um centro de estudos estratégicos alemão, revelaram que os cidadãos que falam russo sentiam que estavam sendo maltratados pelos falantes de estoniano e letão (os falantes de estoniano e letão concordaram).

O mesmo se aplica à Finlândia, onde os nativos colocam os imigrantes russos com os dos países árabes e africanos entre as etnias menos aceitas. “É sobretudo uma suspeita de que não sejam leais”, diz Emma Nortio, da Universidade de Helsinque, que estuda

Na Polônia, com sua história de dominação por parte do Império Russo e da União Soviética, os russos são mal-vistos e desde 2022 são o grupo nacional menos popular, de acordo com o Centro de Pesquisa de Opinião Pública do país.

Estão agora abaixo da etnia tradicionalmente mais estigmatizada da Europa: os ciganos. Os ucranianos, historicamente odiados na Polônia, foram recebidos como refugiados fugindo dos tanques russos.

Ser branco e cristão ajuda: os refugiados do Norte de África e do Oriente Médio tendem a ser estigmatizados. Mas a natureza das crises das quais eles fogem faz a diferença. Na Alemanha, pesquisas realizadas em 2017 revelaram que os refugiados sírios eram vistos como mais calorosos e mais competentes do que os norte-africanos, uma vez que eram vistos como vítimas autênticas.

Banner em frente ao Parlamento Europeu divulga eleições marcadas para junho.

Banner em frente ao Parlamento Europeu divulga eleições 
marcadas para junho. Foto: Virginia Mayo/Associated Press

Na década de 2000, o Islã radical despertou ansiedades. Mas, conforme o terrorismo na Europa diminuiu, o foco mudou para as gangues criminosas. Na Suécia, isso gerou uma atenção mais negativa para os suecos curdos, menos associados ao islamismo, mas proeminentes nas redes de traficantes de drogas.

A dimensão religiosa continua sendo crucial; na França, a antipatia em relação aos norte-africanos é marcadamente maior do que em relação aos negros africanos, de acordo com o último relatório do monitor anti-discriminação do país. O anti-semitismo tende a aumentar quando o conflito israelo-palestiniano esquenta. E nos seus relatórios mais recentes, essa autoridade constatou um aumento dramático do racismo contra chineses e outros asiáticos orientais, ligado à pandemia de covid-19.

Os acontecimentos atuais também podem reduzir o preconceito. Na década de 1990, os italianos estigmatizaram os imigrantes albaneses. Mas, conforme a Albânia se tornou mais estável e menos pobre, eles saíram da lista das minorias temidas.

Os psicólogos muitas vezes explicam a antipatia de grupo como uma função de uma ameaça percebida. “As narrativas que giram em torno do medo são as que ganham força”, diz Stefania Paolini, da Universidade de Durham.

Apoiadora do partido francês de extrema direita Rassemblement National veste camisa em que se lê "Famílias estão em perigo", 7 de maio de 2024.

Apoiadora do partido francês de extrema direita 
Rassemblement National veste camisa em que 
se lê "Famílias estão em perigo", 
7 de maio de 2024.  
Foto: Jean-christophe Verhaegen/AFP

O receio da concorrência econômica pode explicar por que os cidadãos mais pobres tendem a gostar menos dos imigrantes (embora os ricos também possam gostar pouco dos ricos estrangeiros: os suíço-alemães se ressentem dos imigrantes alemães com escolaridade mais elevada). Os populistas que jogam com os receios do declínio demográfico escolhem os africanos. Para lucrar com o medo do terrorismo ou da mudança cultural, eles atacam os muçulmanos. Quando o alvo são as conspirações da elite, o antissemitismo entra em jogo.

E quando tudo mais falha, eles vão atrás dos ciganos. Robert Fico, o primeiro-ministro eslovaco que sobreviveu a uma tentativa de assassinato em 15 de maio, começou sua carreira política como um populista de esquerda e é atualmente um populista de direita, mas seus ataques aos ciganos permaneceram constantes.

Há muito que Portugal carecia de um grande partido de extrema-direita, explica Alexandre Afonso, da Universidade de Leiden: o país tinha pouca imigração, e aqueles que vieram, como os brasileiros, não foram vistos desfavoravelmente. Assim, quando o partido de extrema-direita Chega foi lançado em 2019, tinha como alvo a pequena e empobrecida população cigana. O Chega está agora com 18% das intenções de voto. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Fonte: https://www.estadao.com.br/internacional/por-que-a-europa-esta-prestes-a-se-afogar-no-rio-da-direita-radical-2/27/05/2024 | 09h30

Como perdemos nosso lastro como sociedade

Por Thomas Friedman *(The New York Times)

 Imagem mostra o ex-presidente Donald Trump no tribunal de Manhattan nesta quarta-feira, 29. Republicano mantém candidatura presidencial mesmo com dezenas de acusações judiciais

 Imagem mostra o ex-presidente Donald Trump no tribunal de Manhattan nesta quarta-feira, 29. Republicano mantém candidatura presidencial mesmo com dezenas de acusações judiciais Foto: Jabin Botsford/AP

Sociedade americana perdeu filtros que evitavam comportamentos tóxicos e o extremismo e estimulavam comunidades saudáveis

O senso comum diz que o julgamento de Donald Trump por seus supostos esforços para comprar o silêncio de uma estrela pornográfica às vésperas das eleições de 2016 é o menos importante dos casos contra ele. Politicamente, pode ser verdade. Mas, mais do que qualquer outro caso, este revela uma tendência que afeta os Estados Unidos hoje: o quanto perdemos nosso lastro como sociedade.

Como assim? O meio ambiente oferece uma boa resposta. Há quase 30 anos, visitei a Mata Atlântica no Brasil com uma equipe da Conservação Internacional, e seus membros me ensinaram todas as funções incríveis que os manguezais – aqueles bosques de árvores que muitas vezes vivem debaixo d’água ao longo da costa – desempenham na natureza. Os manguezais filtram toxinas e poluentes por meio de suas extensas raízes, fornecem amortecimento contra ondas gigantes desencadeadas por furacões e tsunamis, formam criadouros para o amadurecimento dos peixes jovens com segurança porque suas raízes trançadas impedem a entrada de grandes predadores e, literalmente, ajudam a manter o litoral no lugar.

Na minha opinião, uma das coisas mais tristes que aconteceu aos EUA durante a minha vida foi o quanto perdemos tantos dos nossos manguezais. Hoje, estão ameaçados de extinção em todo lugar – e não apenas na natureza.

A própria sociedade também perdeu muitos dos seus manguezais sociais, normativos e políticos - tudo aquilo que costumava filtrar comportamentos tóxicos, amortecer o extremismo político e nutrir comunidades saudáveis e instituições confiáveis para os jovens crescerem e que sustentam a união da nossa sociedade.

Veja só, a vergonha costumava ser um manguezal. Antigamente, se você fosse candidato à presidência dos Estados Unidos e fosse alegado - com muitas evidências - que você falsificou registros comerciais para encobrir sexo com uma estrela pornô logo após sua esposa ter dado à luz um filho, você abaixaria a cabeça de vergonha, desistiria da corrida e se esconderia debaixo da cama. Esse manguezal da vergonha foi completamente arrancado por Trump.

As pessoas se sentiam envergonhadas porque sentiam fidelidade a certas normas - o que fazia suas bochechas ficarem vermelhas quando sabiam que haviam falhado, explicou Dov Seidman, autor do livro “How: Why HOW We Do Anything Means Everything” [”Como: por que COMO fazemos as coisas é tão importante”] e fundador do How Institute for Society and LRN.

“Mas, no tipo de mundo sem normas em que entramos, onde as normas sociais, institucionais e de liderança estão sendo enfraquecidas”, disse-me Seidman, “ninguém mais precisa sentir vergonha por causa da violação de alguma norma”.

Para deixar claro: pessoas em cargos do alto escalão fazendo coisas vergonhosas não são novidade na política e nos negócios americanos. O que é novo, argumentou Seidman, “é o fato de tantas pessoas fazerem isso de forma tão visível e com tanta impunidade: ‘Minhas palavras foram perfeitas’, ‘Eu faria isso de novo’. É isso que enfraquece as normas. Isso e fazer todos os demais se sentirem como otários por segui-los. Quer o presidente Richard Nixon fosse ou não um “vigarista”, ele dava a impressão de se sentir envergonhado por alguém pensar que sim. Não é o caso de Trump.

Nada é mais corrosivo para uma democracia vibrante e para comunidades saudáveis, acrescentou Seidman, do que “quando os líderes com autoridade formal se comportam sem autoridade moral. Sem líderes que, por meio do seu exemplo e suas decisões, salvaguardem as nossas normas e as celebrem, as afirmem e as reforcem, as palavras no papel – a Declaração de Direitos, a Constituição ou a Declaração de Independência – nunca irão nos unir”.

Consideremos apenas uma cena de outro caso envolvendo Trump, a respeito dos documentos confidenciais de Mar-a-Lago. Ocorreu depois que um grande júri federal intimou Trump, em maio de 2022, a apresentar todo o material confidencial em sua posse. Notas escritas por um de seus advogados citavam Trump dizendo: “Não quero ninguém olhando minhas caixas. Não quero mesmo”, e fazendo as seguintes afirmações: “O que acontece se simplesmente não respondermos ou não jogarmos o jogo deles?” e “Não seria melhor se apenas disséssemos que não temos nada aqui?”

Melhor para quem? Apenas para uma pessoa.

Na natureza, como na sociedade, quando perdemos os manguezais, o resultado é uma inundação com muita lama.

Essa é a questão. Trump quer destruir os nossos manguezais sociais e legais e deixar-nos em um ecossistema ético falido, porque ele e pessoas como ele prosperam em um sistema falido. Ele continua a levar o nosso sistema até o ponto de ruptura, inundando a zona com mentiras para que as pessoas confiem apenas nele, e a verdade seja apenas o que ele diz ser. Na natureza, como na sociedade, quando perdemos os manguezais, o resultado é uma inundação com muita lama.

A responsabilidade, especialmente entre aqueles que prestaram juramento – outro manguezal vital – também sofreu séria destruição. Antigamente, se você tivesse o incrível privilégio de servir como juiz da Suprema Corte dos EUA, nem em seus sonhos mais loucos você teria uma bandeira americana pendurada de cabeça para baixo (carregada dessa forma por hooligans que invadiram o Capitólio em 6 de janeiro de 2021) fora de sua casa, muito menos sua esposa enviando e-mails instando funcionários do alto escalão a anularem as eleições de 2020. O seu senso de responsabilidade de parecer estar acima da política partidária para defender a integridade das decisões do tribunal não o permitiria.

Não mais – como demonstraram recentemente os juízes Clarence Thomas e Samuel Alito. E antes disso, em 2016, Ruth Bader Ginsburg também passou dos limites quando denunciou o então candidato presidencial Trump como um “farsante”.

O debate civilizado e o envolvimento com aqueles de quem discordamos – em vez de pedir imediatamente que sejam demitidos – também costumavam ser um manguezal.

Em uma coluna que escrevi em 2016 sob o título “A Era do Protesto”, Seidman observou que “as pessoas em todo o mundo parecem estar moralmente excitadas” e isso é “uma coisa positiva, em geral”, quando se trata de enfrentar questões como o racismo ou o abuso policial. Mas, quando a excitação moral se manifesta como indignação moral – e exigências imediatas de demissão –, “o resultado pode ser um ciclo vicioso de indignação moral que é recebido com igual indignação, em lugar de um ciclo virtuoso de diálogo e do árduo trabalho de forjar um verdadeiro entendimento”.

Muitas universidades parecem hoje estar dominadas por um quadro ideológico progressista que divide o mundo em hierarquias de colonizadores e colonizados, oprimidos e opressores, racistas e antirracistas – e agora pró-sionistas e anti-sionistas. Como resultado, aqueles que se veem no lado errado dessas denominações binárias sentem a necessidade de permanecer em silêncio ou correm o risco de serem condenados ao ostracismo. O primeiro impulso em muitos casos atualmente é buscar o cancelamento, não a conversa.

Em novembro de 2022, a Heterodox Academy, um grupo sem fins lucrativos, entrevistou 1.564 estudantes universitários em tempo integral com idades entre 18 e 24 anos. O grupo descobriu que quase três em cada cinco estudantes (59%) hesitam em falar a respeito de temas polêmicos como religião, política, raça, orientação sexual e gênero por medo de reações negativas por parte dos colegas de classe.

Na verdade, a própria civilidade também costumava ser um manguezal. Durante a pandemia de Covid-19, encontrei conforto assistindo a filmes antigos como “O Vento será tua Herança”, lançado em 1960, quando o vi pela primeira vez, aos 7 anos de idade. Foi vagamente baseado no caso do “julgamento do macaco” de Scopes, de 1925. Ao rever o filme como um jornalista de quase 70 anos, não pude deixar de rir de uma cena de tribunal quando o advogado, Henry Drummond - defendendo um professor local que ensinava a ciência da evolução - percebe que há um microfone na sala do tribunal da estação WGN em Chicago. O caso Scopes foi a primeira vez que um julgamento foi coberto ao vivo por uma transmissão de rádio.

“Rádio!” Drummond troveja no microfone ao vivo da WGN. “Meu Deus, isso vai derrubar muitas paredes.”

“Você não pode dizer ‘Deus’ no rádio!” responde o locutor da WGN.

“Por que diabos não?” pergunta Drummond.

“Também não pode dizer ‘diabos’”, diz o locutor.

Também não pode dizer “diabos”. Que pensamento inocente. Isso seria um ponto de exclamação educado nas redes sociais de hoje.

Outro manguezal vital é a observância religiosa. Tem diminuído há décadas: um relatório da Gallup de 29 de março de 2021 observou que “o número de americanos em locais de culto continuou a diminuir no ano passado, caindo para menos de 50% pela primeira vez nas oito décadas acompanhadas pela Gallup”. O momento poderia ser melhor porque, como Enrique Lores, diretor executivo da HP Inc., certa vez comentou comigo: “Hoje temos o poder de abrir o Mar Vermelho” – mas, frequentemente, “sem os Dez Mandamentos”.

Os jornais locais de cidades pequenas costumavam ser um manguezal que nos protegia do pior da nossa política nacional. É menos provável que um jornal local saudável vá longe demais, para um extremo ou outro, porque os seus proprietários e editores vivem na comunidade e sabem que, para que o seu ecossistema local prospere, precisam preservar e nutrir interdependências saudáveis – para manter as escolas decentes, as ruas limpas e sustentar as empresas locais e os criadores de empregos.

Mas um estudo recente da Faculdade de Jornalismo Medill, da Universidade Northwestern descobriu que, em 2023, a perda de jornais locais acelerou para uma média de 2,5 por semana, “deixando mais de 200 condados como ‘desertos de notícias’ e significando que mais de metade de todos os condados americanos agora têm acesso limitado a notícias e informações locais confiáveis”.

Portanto, agora as vozes nacionais mais partidárias na Fox News, ou MSNBC - ou qualquer um dentre o grande número de influenciadores polarizadores como Tucker Carlson - vão direto de seus estúdios nacionais até as pequenas cidades americanas, livres do impulso de um jornal ou estação de rádio local no sentido de manter uma comunidade onde as pessoas sentem algum grau de conexão e respeito mútuo. Tal como na natureza, isso deixa o ecossistema local com menos interdependências saudáveis, tornando-o mais vulnerável a espécies invasoras e doenças – ou, na sociedade, a ideias doentias.

Em uma entrevista de 2021 com meu colega Ezra Klein, Barack Obama observou que, quando começou a concorrer à presidência, em 2007, “ainda era possível para mim ir para uma cidade pequena, em uma cidade conservadora desproporcionalmente branca no interior dos EUA, e ser recebido por um público justo porque as pessoas simplesmente não tinham ouvido falar de mim. … Eles não tinham nenhum preconceito em relação ao que eu acreditava. Poderiam simplesmente me aceitar pelo que estavam vendo diante de si”.

Mas então Obama acrescentou: “Se eu fosse a esses mesmos lugares agora – ou se algum democrata em campanha fosse a esses lugares agora – quase todas as notícias seriam da Fox News, das estações de notícias Sinclair, de programas de rádio ou de alguma página do Facebook. E tentar penetrar nisso é realmente difícil. Não é que as pessoas nessas comunidades tenham mudado. É que, se é com isso que elas são alimentadas, dia após dia, então elas chegam a qualquer debate com um certo conjunto de predisposições que são realmente difíceis de superar.”

Infelizmente, passamos de uma situação em que não se deveria dizer “diabos” no rádio para um país que está agora permanentemente exposto a sistemas de manipulação política e psicológica com fins lucrativos (e temos também Rússia e China botando fogo nesse circo), e com isso as pessoas não estão apenas divididas, mas estão sendo divididas. Sim, manter os americanos moralmente indignados é agora um grande negócio no nível doméstico, e uma guerra por outros meios por parte dos nossos rivais geopolíticos.

Mais do que nunca, vivemos na “tempestade sem fim” que Seidman me descreveu em 2016, na qual distinções morais, contexto e perspectiva – todas as coisas que permitem às pessoas e aos políticos fazerem bons julgamentos – são varridas para longe.

Varridas para longe – é exatamente isso que acontece às plantas, aos animais e às pessoas em um ecossistema que perde seus manguezais. /TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL - 29/05/2024

 *É ganhador do Pullitzer e colunista do NYT. Especialista em relações internacionais, escreveu 'De Beirute a Jerusalém' 

Fonte: https://www.estadao.com.br/internacional/como-perdemos-nosso-lastro-como-sociedade/


Paul Krugman: Por que agora eu estou profundamente preocupado com os EUA

Por Paul Krugman (The New York Times)

O ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump participa de um comício de campanha em Conway, Estados Unidos

O ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump participa 
de um comício de campanha em Conway, Estados Unidos 
 Foto: Manuel Balce Ceneta/ AP

Parece inteiramente possível que, daqui a um ano, a democracia americana possa estar irremediavelmente alterada

THE NEW YORK TIMES - Até poucos dias atrás, eu me sentia bastante animado a respeito das perspectivas para os Estados Unidos. Economicamente, nós tínhamos tido um ano de forte crescimento e inflação baixando — e à parte os republicanos empedernidos, que não veem nada de bom, não ouvem dizer nada de bom e não falam nada de bom quando um democrata é presidente, os americanos pareciam estar reconhecendo esse progresso. Parecia cada vez mais provável que o bom-senso fosse prevalecer no país e que a democracia sobreviveria.

Mas assistindo ao frenesi em torno da idade do presidente Joe Biden eu fiquei, pela primeira vez, profundamente preocupado com o futuro do país. Agora parece inteiramente possível que, daqui a um ano, a democracia americana possa estar irremediavelmente alterada.

E o golpe mortal não será a ascensão do extremismo político — essa ascensão certamente criou as precondições para o desastre, mas tem composto a paisagem já há algum tempo. Não, o que poderá transformar essa ameaça em catástrofe é a maneira que as aflições sobre a idade de Biden têm ofuscado o que realmente está em jogo na eleição de 2024. Isso me recorda, assim como a todos que conheço, do furor de 2016 a respeito do servidor de e-mails de Hillary Clinton, uma questão menor que pode muito bem ter sido determinante para fazer o resultado da eleição pender para Donald Trump.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, participa de coletiva de imprensa na Casa Branca
O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, participa de coletiva de imprensa na Casa Branca  Foto: Evan Vucci/ AP

Da mesma forma que a maioria das pessoas que conheço, até agora o promotor especial Robert Hur, nomeado para investigar alegações sobre supostas violações da parte de Biden, concluiu que o presidente não deve ser acusado. Mas seu relatório incluiu uma avaliação não solicitada e completamente antiprofissional sobre a acuidade mental de Biden, aparentemente com base na dificuldade do presidente de se recordar de datas específicas — dificuldade com a qual, conforme escrevi na sexta-feira, todos se confrontam em qualquer idade. O tratamento infundado de Hur a Biden ecoou o tratamento infundado de James Comey a Clinton — Hur e Comey pareceram querer posicionar-se politicamente quando não era esse seu dever.

Trata-se de um caso em que burocratas extrapolam seus limites de uma maneira na melhor das hipóteses descuidada e na pior, maliciosa.

Sim, é verdade que Biden é velho e será mais velho ainda se for reeleito e cumprir um segundo mandato. Eu gostaria que os democratas tivessem sido capazes de estabelecer um consenso sobre um sucessor há um ou dois anos e que Biden pudesse ter aberto mão de disputar em favor desse sucessor sem desencadear um vale-tudo intrapartidário. Mas especular a respeito do que poderia ter acontecido não tem sentido agora. Isso não aconteceu, e Biden será o indicado do Partido Democrata para disputar a presidência.

Também é verdade que muitos eleitores consideram a idade do presidente um problema. Mas percepção é uma coisa, e realidade é outra: como qualquer pessoa que esteve com Biden recentemente (e eu estive) pode dizer, presidente mantém plena posse de suas faculdades — completamente lúcido e com uma compreensão excelente sobre pormenores. Evidentemente, a maioria dos eleitores não consegue vê-lo de perto, e cabe ao time Biden solucionar isso. E sim, ele fala baixo e meio devagar, mas isso se deve em parte à sua luta de vida inteira contra a gagueira. A propósito, ele também tem senso de humor, o que eu considero importante.


O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, conversa com o presidente da Ucrânia, Volodmir Zelenski, em Kiev, Ucrânia
O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, conversa com o presidente da Ucrânia, Volodmir Zelenski, em Kiev, Ucrânia  Foto: Evan Vucci / AP

O mais importante é que Biden tem sido um presidente notavelmente eficaz. Trump passou quatro anos afirmando que uma grande iniciativa de infraestrutura estava prestes a ocorrer, ao ponto da frase, “É a semana da infraestrutura!”, virar piada corrente. Biden de fato aprovou essa legislação. Trump prometeu ressuscitar a manufatura americana, mas não o fez. As políticas de tecnologia e clima de Biden — a segunda aprovada contrariando previsões — produziram um aumento no investimento em manufatura. A melhoria de Biden no Obamacare levou cobertura de seguro-saúde a milhões.

Na minha opinião, essas realizações dizem muito mais a respeito de Biden do que seus ocasionais escorregões verbais.

E o que dizer de seu oponente, que é apenas quatro anos mais jovem? Talvez algumas pessoas se impressionem pelo fato de Trump falar alto e se zangar. Mas o que ele está dizendo realmente em seus discursos? Suas falas com frequência não passam de divagações e jogos de palavras, repletas de afirmações bizarras — como a alegação, na sexta-feira, de que, se ele perder em novembro, “vão mudar o nome da Pensilvânia”.

Além disso, Trump confundiu Nikki Haley com Nancy Pelosi e E. Jean Carroll com uma de suas ex-mulheres.

Conforme escrevi na semana passada, os discursos de Trump me fazem lembrar do terrível último ano do meu pai, quando ele sofria de síndrome do entardecer — crises de incoerência e beligerância quando o sol se põe. E nós deveríamos nos preocupar com o estado mental de Biden?

Nos dias recentes, enquanto o debate nacional tem sido dominado pela idade de Biden, Trump declarou que não intervirá para ajudar membros da Otan “delinquentes” se a Rússia atacá-los, sugerindo até que encorajaria um ataque desse tipo. Trump parece considerar a Otan nada mais que um esquema de proteção e depois de todo esse tempo ainda não tem ideia a respeito de como a aliança funciona. Aliás, a Lituânia, o membro para o qual Trump apontou o dedo, gastou uma porcentagem maior de seu PIB em ajuda à Ucrânia do que qualquer outro país.

Novamente, eu gostaria que esta eleição não fosse uma disputa entre dois homens idosos e em geral eu me preocupo a respeito da gerontocracia americana. Mas, gostemos ou não, a disputa será entre Biden e Trump — e, por algum motivo qualquer, o candidato lúcido e bem informado está sendo mais prejudicado por sua idade do que seu oponente gritalhão e desatinado.

Como eu disse, até outro dia eu me sentia algo otimista. Mas agora estou profundamente preocupado com o futuro do nosso país. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Fonte:  https://www.estadao.com.br/internacional/paul-krugman-preocupado-estados-unidos/

quinta-feira, 30 de maio de 2024

Homossexualidade e Seminários

Por  Manuel Torre*

El papa Francisco en un imagen de archivo

Ainda que celibatário fiel, faz algum sentido um membro de uma instituição representar algo que a sua instituição condena?

Face às declarações de sua Santidade, o Papa Francisco, sobre admitir aos seminários ou às ordens sacras pessoas declaradamente homossexuais, apraz-me dizer o seguinte.

Vivemos numa sociedade absurdamente esquizofrénica e hipócrita em todos os setores da vida, que se prostitui intelectualmente. Só importa parecer, se também se puder “ser”, melhor…

A Igreja Católica, tal como o nome indica “Católica” é universal, pelo que é para todos, todos, todos. Todavia, ser batizado, pertencer a esta instituição humano-divina, pressupõe princípios, valores e baluartes morais.

 Se há pessoa, na Igreja Católica, que mais tem procurado incluir e salvaguardar a igual dignidade de todos os seres humanos e, como é óbvio, a comunidade LGBTQI+ – sendo “atropelado”, várias vezes, internamente pela ala mais conservadora da Igreja-, tem um nome: Papa Francisco!

Privadamente, quem é que não chama os “nomes pelos bois” aos seus funcionários? É uma analogia é certo, nem estou a chamar “boi” a ninguém. O Santo Padre não tem o direito de corrigir os seus prelados? Adverti-los, aconselhá-los?

A mim o que gera asco e gritante repugnância é que de uma conversa privada, saiam as coisas para fora! Mas isso, até nas famílias, empregos e instituições acontece. Isso, sim, é homofóbico!

A Homossexualidade é inerente ao ser humano, enquanto humanidade, desde que esta existe. Daí que as Sagradas Escrituras – que só têm de ser observadas estritamente por quem é batizado (as pessoas podem procurar Deus, na sua homossexualidade assumida, noutra religião!)-, desde sempre foram veementemente condenas, quer no Antigo Testamento, quer no Novo Testamento. A Revelação e a Tradição não podem ser alteradas. São condição sine qua non!

A pessoa homossexual deve ser ostracizada, segregada, “ser olhada de canto”, até presa ou morta (depende de geografias e religiões)? Evidentemente que não! Se há religião que sacraliza o valor inviolável da vida e dignidade humana é a Igreja Católica! O Santo Padre tem encarnado isso mesmo!

Na Igreja há lugar para todos que vivam bem o seu batismo, de contrário, são advertidas, mas nunca para abandonarem a sua opção por Cristo, mas para a confirmarem! Há alguma incongruência em uma instituição corrigir um dos seus membros por não seguirem o que está estipulado pela ética da sua empresa? Desculpem novamente a analogia. Muito pelo contrário, seria contraproducente não o fazer!

Quanto à heterossexualidade, esta, sempre foi louvada e querida por Deus (“crescei e multiplicai-vos”).  Então, os homossexuais não são queridos por Deus? Uma vez mais não é assim! Deus ama o pecador (a pessoa), detesta, isso sim, o pecado, seja ele qual for! Somos todos filhos de Deus, pela ordem da criação, mas novos em Cristo, pelo santo batismo: mortos para o pecado, regenerados para uma vida em Deus! Interrogo-me: um membro de uma instituição não sabe quais são os seus trâmites?

Friso que o batismo (a nossa opção fundamental por Cristo, a sua Igreja e Evangelho) é para adultos. No entanto, a Igreja admite crianças até aos sete anos – não inclusive -, por serem apresentados, por seus pais à Igreja, os quais pedem o batismo para o seus filhos, com a ajuda vital de duas pessoas cristãmente idóneas (padrinhos), o qual a Igreja, sendo de todos e para todos, não nega.

Na tradição vetero-testamentária quantas são as passagens que condenam veemente o pecado da sodomia? Por outro lado, quantas vezes não vemos Deus louvando os seus fiéis, assegurando-lhes uma enorme descendência, uma esposa “como videira fecunda” e os filhos como uma bênção?

No Novo Testamento, São Paulo quando confrontado com o estilo de vida das sociedades gregas e romanas, não adverte os seus fiéis para não voltarem aos costumes instalados da sociedade daquele tempo?

Quanto aos seminários, esta problemática não é nova e muitos problemas tem causado na formação presbiteral, com consequências devastadoras. É um assunto muito complicado de gerir e cuidar. Como aferir se uma vocação é verdadeira? Pelo menos tem de ser um fiel batizado que pauta a sua vida pelos valores contidos no Evangelho e pela tradição da Igreja. Depois, o discernimento dirá!

Quanto ao direito canónico este é bem explícito quanto à não ordenação de um homossexual. Ainda que celibatário fiel, faz algum sentido um membro de uma instituição representar algo que a sua instituição condena?

Voltando ao mesmo direito canónico, por mais paradoxal que seja, para se ser admitido às ordens sacras, só um homem heterossexual, que, depois, abraçará conscientemente o celibato (diáconos em vista ao sacerdócio).

Mas ser pai de família não é a maior bênção de Deus para o homem? É! Só que no caso do padre, a sua família são os seus fiéis e, por isso, “receberá cem vezes mais mães, pais, filhos, filhas e terras”! Ainda é mais abençoado!

Em suma, contristado, vivemos numa sociedade absurdamente esquizofrénica e hipócrita! Isto é que é ser-se homofóbico! Matamo-nos uns aos outros! É bem mais grave que a homossexualidade!

Com profundo respeito à comunidade LGBTQI+, peço em nome da Igreja, desculpa pela nossa hipocrisia e espero que, na verdade, caminhemos, tendo plena consciência de que não é o que Deus quer para vós, mas, não vos ama menos, nem vos escuta menos, nem caluniemos o Santo Padre!

Quanto à Igreja Católica não pode abdicar da sua matriz, da sua identidade, assente na Revelação (Sagrada Escritura – Bíblia) e Tradição! No entanto, ainda que feridos, não duvideis de uma coisa: não há religião mais tolerante e que apregoe os valores humanos do que a Igreja Católica, porque os valores não são seus, são de Cristo!

* Padre da arquidiocese de Braga/Portugal.

Fonte:  https://observador.pt/opiniao/homossexualidade-e-seminarios/