quinta-feira, 16 de maio de 2024

Ligado por um fio

 Bruno Nogueira*

Juan Cavia

Há cada vez mais adolescentes a comprarem dumb phones, telemóveis básicos que só dão para trocar mensagens, e para atender e fazer chamadas. Estão a tentar voltar atrás, até ao dia anterior ao dia em que lhes puseram na mão um ecrã que lhes ia roubar a vida ao redor. E os adultos têm de estar à altura de fazer parte dessa mudança

HÁ UMA RAZÃO para se voltar sempre aos assuntos chatos, e a razão é porque eles não param de chatear. Andamos às voltas, e se regressamos sempre a eles, o motivo é simples: o assunto é grave. Saiu um artigo que diz que em média os adolescentes passam 9 horas ao telemóvel. São corpos que desistiram, num mundo que não se pode dar ao luxo de perdê-los. Os telemóveis, os iPads, e os ecrãs todos que por aí andam, não são o mal do mundo – isso é o que os pais, e avós, e cuidadores insistem em dizer, para se livrarem do mal de terem de se chegar à frente e serem pais, e avós, e cuidadores. O problema é darem desde cedo às crianças a responsabilidade de decidirem o que fazer com um instrumento tão poderoso e viciante, e depois depositar em cima delas a culpa daquilo que as puseram a fazer. Elas estão a aprender a ser gente, e a gente que elas vão ser é em grande parte o resultado daquilo que as ajudaram a construir. Sempre que uma criança passa um dia agarrada ao telemóvel, a esquecer-se de ter a idade que tem, temos de dar três passos atrás e perceber como é que se chegou a esse momento em que ela está fechada para o mundo, com os olhos tão longe. A incapacidade de concentração, de olharem para o que as rodeia sem se aborrecerem por não conseguirem atalhar todos os momentos chatos – a apatia de quem ainda agora começou e já se sente cansado; a angústia de estar em todo o lado sem estar realmente em lado nenhum. Os telemóveis e os iPads são ferramentas incríveis, permitem que estejamos ligados ao mundo inteiro, que guardemos informação numa coisa que nos cabe na mão e nos resolve um número infinito de problemas. Podermos estar num país longínquo e falar com quem nos espera em casa é uma coisa extraordinária. A culpa não é dos telemóveis, a culpa é de quem vê neles um babysitter e sente o alívio que é o silêncio em que as crianças ficam quando os têm na mão. Sabe bem, até não saber; e então aí queixam-se do problema que criaram, como se a tecnologia fosse o lobo mau, como se o telemóvel tivesse vindo para tomar o lugar da empatia e do convívio. Não veio. E a prova que não veio, é que se o largarem em cima de uma mesa e se afastarem, ele não vai a correr saltar para a vossa mão, a pedir que não olhem para mais ninguém.

 

As escolas que decidiram afastar os telemóveis para terem lá dentro crianças e adolescentes livres, são pequenas bolhas de humanidade que devemos preservar com todo o amor. Estão a tentar o que não lhes compete: que os filhos de outros pais ainda consigam ir a tempo de olhar para o que os rodeia, aqui e agora; e que se espantem com o tanto que têm a ganhar. Temos uma sorte tão grande de podermos estar com quem gostamos, de podermos tê-los à nossa frente e, olhos nos olhos, ver o que são, e do que são feitas as suas falhas e virtudes. Não podemos desistir de estar cá, porque atrás disso vai tudo o que nos separa das máquinas. Sempre que nos perdemos uma hora no telemóvel, é uma hora de vida que nunca mais nos vão devolver; e todas somadas são meses inteiros que fogem para parte incerta, e que não vão fazer parte da nossa memória. Não há uma única hora de telemóvel da qual nos recordemos com saudades, mas há muitas que desperdiçámos e das quais nunca mais nos vamos esquecer. É tentador deixarmo-nos levar, porque naquele ecrã estão tantas coisas e tão diferentes. Mas daí até sermos engolidos, vai um curto passo. Estamos sempre a perder sobrinhos, filhos, e netos para o problema que lhes criámos. A pressão é grande, porque os amigos estão todos lá, impacientes, à espera de respostas. E é importante que os usem, para que possam socializar à distância, nesta nova maneira de estar. Mas entre usar e sermos usados, vai uma distância que é o que separa o saudável do doentio. Somos reféns do que criámos, e excluirmo-nos do problema é uma cobardia que vai deixar poços vazios entre os mais novos. Comecemos por parar de culpar a tecnologia como se ela fosse má. Ela é incrível, e fez-nos avançar tanto que nem sequer conseguimos imaginar o que era a nossa vida sem ela. Há cada vez mais adolescentes a comprarem dumb phones, telemóveis básicos que só dão para trocar mensagens, e para atender e fazer chamadas. Estão a tentar voltar atrás, até ao dia anterior ao dia em que lhes puseram na mão um ecrã que lhes ia roubar a vida ao redor. E os adultos têm de estar à altura de fazer parte dessa mudança.

Não se trata de moralismos, trata-se de resgatar os que são nossos, de ter saudades de os ter aqui. De lhes dar a oportunidade de se deslumbrarem e desapontarem com o que os rodeia. Trata-se de sermos todos responsabilizados pelo problema, para juntos tentarmos devolver a vida a quem só está ligado por um fio. 

*Humorista

Fonte: https://www.sabado.pt/opiniao/cronistas/bruno-nogueira/detalhe/ligado-por-um-fio

Nenhum comentário:

Postar um comentário