quinta-feira, 16 de maio de 2024

Entendo quem prefere viver sozinho, mas não vejo vantagem em romantizar a solidão

 Por Juliana de Albuquerque*

 

 John le Carré em Londres em 2019 - Charlotte Hadden - 12.set.19/The New York Times

Mesmo uma longa viagem de trabalho se torna mais interessante quando temos com quem compartilhar o cotidiano

Estou na Alemanha há quase um mês e começo a ter saudades de casa. Sinto falta dos meus travesseiros, da minha biblioteca, da minha mesa de trabalho, da minha cafeteira e, principalmente, das pessoas e dos bichos com os quais normalmente compartilho a minha rotina.

Sardinha, o gato que adotamos em outubro do ano passado, acabou de completar dez meses e já está pesando mais de cinco quilos. Desde o começo da primavera, quando os outros gatos da vizinhança finalmente se deram conta da sua existência, ele vive de receber visitas em nosso jardim.

Estivesse eu em casa, tomaria o meu café da manhã sentada no batente da cozinha, observando a interação entre os bichos. Em vez disso, compartilho desses momentos com o meu companheiro, Mark, com quem troco mensagens ao longo do dia e telefono durante à noite para comentar o que tenho feito por aqui.

Assim tentamos manter uma rotina semelhante à que costumamos seguir quando estamos juntos na Irlanda. Ontem mesmo, depois do jantar, enquanto ele resolvia um quebra-cabeça no sofá de casa, eu lia e tecia comentários sobre um dos nossos livros prediletos: "O Espião que Sabia Demais" (1974), de John le Carré.

Um dos aspectos que nós achamos mais interessantes na obra de Le Carré é justamente o diálogo que o autor estabelece em seus textos com a cultura alemã. Por exemplo, o protagonista desse romance que estou relendo e cujos eventos se passam no auge da Guerra Fria —o espião George Smiley— é especialista na obra de Martin Opitz (1597-1639), um dos principais nomes da literatura alemã da primeira metade do século 17, período igualmente marcado por terríveis conflitos.

Entendo quem prefere viver sozinho, mas não enxergo vantagem em romantizar a solidão. Afinal, tudo, até mesmo uma longa viagem de trabalho como esta que estou fazendo, se torna ainda mais interessante quando temos a sorte de ter com quem compartilhar o nosso cotidiano, ainda que somente por telefone.

No último domingo, com uma câmera na mão e o celular sempre por perto, estive em Worms para conhecer uma das sinagogas mais antigas da Alemanha e o cemitério judaico que menciono em minha coluna anterior. Infelizmente parte do complexo da sinagoga estava passando por uma reforma, assim não tive como percorrer todo o local, nem visitar a "mikveh" (banho ritual) originalmente construída em 1185.

Um aspecto interessante da sinagoga de Worms é que ela abrigou uma sala de oração para mulheres, provavelmente construída entre os anos de 1212 e 1213.

A existência dessa sala, talvez a mais antiga em toda a Europa Central, atesta a importância das mulheres na vida da comunidade de Worms. Fato esse ainda mais impressionante quando lembramos que estamos falando de algo originalmente construído na Idade Média, época em que a alfabetização das mulheres não era algo comum, e percebemos que algumas judias da cidade podiam ler e rezar em uma sinagoga própria, acompanhadas de um cantor.

Mais tarde, durante o século 19, seguindo a modernização dos costumes, as últimas barreiras entre a sinagoga das mulheres e o restante do prédio foram suprimidas e os serviços religiosos passaram a ser realizados em alemão. Tais mudanças levaram à construção de outra sinagoga de rito tradicional, mas, apesar disso, a comunidade permaneceu unida.

Fachada de prédio de tijolos e telhado triangular
A sinagoga de Worms, na Alemanha - Juliana de Albuquerque/Acervo pessoal

Na exposição permanente organizada pelo Museu Judaico de Worms, localizado próximo à sinagoga, em um prédio moderno conhecido como Raschihaus —uma homenagem a Rashi (1040-1105), célebre intérprete do Talmud e da Bíblia Hebraica—, encontramos objetos litúrgicos, bem como depoimentos sobre os membros da comunidade de Worms que foram assassinados durante o Holocausto.

Essa minha primeira visita a Worms não foi fácil. Mas, se por um lado eu senti que precisava realizar essa viagem sozinha, por outro, muito do que eu consegui relatar sobre esse passeio até agora só ganhou forma porque eu também pude, ao voltar para o meu apartamento em Mainz, ligar para o meu companheiro e contar um pouco do que vivenciei durante o dia.

Worms é uma cidade carregada de história. Pretendo voltar lá outras vezes, ainda durante este verão, em uma tentativa de compreender as inúmeras referências ao judaísmo e a Martinho Lutero, bem como a lenda dos nibelungos, que emprestam ao lugar um aspecto simultaneamente mágico e sombrio.

Por enquanto, consciente de que conto com todo o apoio daqueles que amo, tento aproveitar esta oportunidade de aperfeiçoamento profissional e lido com a saudade de casa da melhor maneira possível, como o caminhoneiro que escreve no para-choque do seu veículo de trabalho: "Viajo porque preciso, volto porque te amo".

 *Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/juliana-de-albuquerque/2024/05/entendo-quem-prefere-viver-sozinho-mas-nao-vejo-vantagem-em-romantizar-a-solidao.shtml

Nenhum comentário:

Postar um comentário