sexta-feira, 31 de agosto de 2012

O fim da metafísica

Hélio Schwartsman*
  
 Giorgio de Chirico. The archeologist, 1927. Óleo.
A função do médico é preservar a vida do paciente, de modo que qualquer conduta que vá contra esse princípio é condenável. Essa é uma ideia simples, cativante e errada. O mundo é um lugar bem mais complexo e nuançado do que sugerem nossos esquemas mentais.
É mais do que bem-vinda a resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que faculta a pacientes registrar em seus prontuários os procedimentos aos quais não querem ser submetidos. Em tese, isso lhes permitirá evitar intubações, choques elétricos e outras técnicas invasivas que podem prolongar a agonia do doente terminal. É uma medida necessária, mas que chega com décadas de atraso e apenas arranha o problema das decisões de fim de vida.
A dificuldade maior é que as fronteiras entre a ortotanásia (não aplicar tratamentos fúteis, atitude que o CFM aprova) e a eutanásia (quando o médico toma medidas que aceleram o óbito, legalmente considerada um homicídio) são tudo, menos claras. Frequentemente, a fim de evitar que o paciente sinta dor, faz-se necessário elevar o uso de sedativos. Só que uma sedação mais profunda favorece o surgimento de complicações fatais. Se as drogas utilizadas forem da classe dos opioides, elas podem provocar diretamente uma parada respiratória. Em que medida o médico precipitou a morte? E, se não o faz, é legítimo deixar o paciente sofrer?
Tentar responder a esse tipo de questão é um exercício metafísico que até pode ser intelectualmente estimulante, mas que não produzirá critérios inequívocos de decisão.
Minha sugestão é que abandonemos toda metafísica e estabeleçamos de uma vez por todas que cada qual é dono de sua própria vida, podendo dela dispor como preferir. Isso significa que, se quiser, o paciente deve ter o direito de receber doses letais de sedativos e analgésicos. O bonito dessa solução é que, ao não impor crenças externas a ninguém, maximiza a liberdade de todos. 
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*Colunista da Folha
Fonte: Folha on line, 31/08/2012
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Síndrome da competição

Menalton Braff*

 

O homem, que sobreviveu a todos os cataclismos que em milênios se abateram sobre nosso pequenino e azul planeta, sobreviveu ao ataque furioso de todas as feras para as quais sua mesquinha carne seria o alimento salvador; o homem superou secas inclementes e dilúvios devastadores; o homem conseguiu tais façanhas porque era um ser social. Do grupo lhe vinham as forças para resistir. E a vida em sociedade, nascida antes de sua fraqueza e da necessidade de sobrevivência do que de uma deliberação, só foi possível graças a um sentimento hoje escasso no mercado: o espírito de solidariedade.
Paul Swezzi, pensador norte-americano, em seu livro Capitalismo monopolista (Ed. Zahar, 1964 – 2º edição), no décimo nono capítulo, afirma que o capitalismo, desde seu nascimento, vem-se entranhando na própria carne do ser humano, a ponto de transformar tudo (inclusive sua vida afetiva) em valor de troca. E ao transformar assim o ser humano, incute-lhe uma outra necessidade: a eficiência como condição para a vitória.
Todos os meios de transmissão de conhecimento e valores são mobilizados para a defesa da idéia de que o homem vale na proporção do sucesso que obtenha. Somos medidos invariavelmente pelo número de derrotas que impomos a nossos adversários. Sim, porque aquela velha expressão “nossos semelhantes” já está há algum tempo fora de moda.
E se o mundo e sua infeliz humanidade são divididos entre vencidos e vencedores, então que vençamos. Esse é o pensamento dominante. E é assim que entramos em estado permanente de campeonato. Minha cidade tem um edifício de dez andares, e a sua não tem. Nós temos três shoppings, e vocês só têm um. Então não se para mais de concorrer. Existem campeonatos de edifícios altos e campeonatos de número de shoppings. Tudo é competição.
Na sociedade da competição, ninguém mais fala em ser bom; é necessário ser o melhor. E isso, mesmo que o melhor seja de baixa, baixíssima qualidade. Estar por cima, ser o primeiro, eis o que interessa.
Nesse tipo de sociedade, a criança ainda tem algum valor, que é o investimento de risco. Ela é vista como o produtor e consumidor do futuro. Para isso é preciso prepará-la, ou seja, para que seja eficiente produtor e ótimo consumidor. Os velhos, bem, que fazer com esses trastes que não produzem mais nada e só consomem remédio?
É com apreensão que se volta nosso olhar para o futuro. Se a sociedade humana sobreviveu graças ao espírito de solidariedade, extinto esse, pode-se ter muita esperança quanto ao futuro?  Se vivemos no meio de adversários, que precisamos eliminar para vencer, vamos conquistar um mundo deserto.
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 * Ex-professor, é contista, romancista (com 18 obras publicadas) e cronista.
Fonte: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/sindrome-da-competicao/?autor=958
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Móveis e utensílios

Alberto Villas*
Foto: Flickr/spierzchala – Creative Commons
 “Um dia minha mãe mudou tanto a disposição 
dos móveis que meu pai achou, no escuro,
 que a janela era a porta e quase caiu 
lá embaixo no porão”
Minha mãe tinha uma mania. Mudar os móveis de lugar. Quando eu digo assim mudar os móveis de lugar você deve estar pensando: Ah, isso todo mundo muda de vez em quando. Mas acontece que minha mãe mudava não era só de vez em quando não, era toda sexta-feira, fizesse sol ou fizesse chuva.
Sexta-feira na minha casa era um dia sagrado. Dona Lali acordava que era um ânimo só. Logo cedo já começava a arrastar os móveis da sala, moveis coloniais pesadíssimos. Ela dava uma coçadinha na cabeça e ficava imaginando onde dessa vez iria colocar cada peça. Ela mudava tudo de lugar, mas tudo mesmo. Mesa, cadeiras, cristaleira, o barzinho, sofá, televisão, a radiola, a mesinha de centro, o abajur, os quadros, tudo tudo. Muitas vezes mudava para pior mas que mudava mudava. E não era só a sala não.
Da sala ela passava pros quartos, pra cozinha, pro banheiro, pra despensa… O negócio dela era mudar as coisas de lugar. Minha mãe era uma pacata dona de casa e hoje, pensando bem, aquela mudança que ela fazia toda sexta-feira deveria ser sua válvula de escape para combater a monotonia do lar. Não que ela tivesse uma vida chata ou tediosa, afinal tinha cinco filhos pra criar. A  questão é que ela era animada demais.
O meu pai, metódico, quando chegava em casa cansado de guerra no último dia útil da semana já sabia que ia encontrar uma outra casa. E os filhos ficaram ouvindo aquela ladainha:
- Onde foi parar o meu chinelo?
Pois é, a minha mãe além de mudar os móveis de lugar, mudava também a arrumação dos armários.
- Posso saber onde está o vidro de pimenta?
Lá ia minha mãe explicar que o vidro de pimenta não estava mais no armário em cima da pia mas agora no armário ao lado da geladeira.
A novela maior naquela casa acontecia mesmo na madrugada de sábado quando o meu pai acordava por volta de três horas pra fazer xixi. Como toda semana a cama mudava de lugar, o criado mudo e a cômoda também, o meu pai saia – literalmente – batendo cabeça pelo quarto escuro à procura da porta para ir ao banheiro. Todo sábado de manhã ele choramingava.
- Essa madrugada eu quase sai pela janela!
Verdade. Um dia minha mãe mudou tanto a disposição dos móveis que ele achou, no escuro,  que a janela era a porta e quase caiu lá embaixo no porão.
Minha mãe nunca nos deu uma explicação do motivo porque mudava tanto os móveis de lugar mas ela uma vez comentou que não conseguia entender como a minha tia, irmã dela, não mudava uma palha de lugar. Era tudo certinho há décadas.
Verdade. Minha tia tinha uma casa igual há mais de duas décadas. Não arredava os bibelôs na penteadeira nem um centímetro para lá nem um centímetro pra cá. Os vidros de Cashmere Bouquet eram os mesmos, enfileirados um ao lado do outro. A bomba de laquê ficava sempre no canto esquerdo, pertinho do espelho.
O sofá da minha tia, aquele com uma capa escura para não sujar atravessou os governos de Juscelino, Jânio, Jango e toda a ditadura militar sem sair do lugar. Até na despensa da minha tia tinha lugar certo para cada coisa. O cantinho do Cremogema, a fileira do Mandiopã, os pacotes de Fubá Mimoso, os cubinhos dos Doces Ojuara, o engradado de Crush,  a prateleira das latas de petit pois, de massa de tomate, tudo no lugar certinho. Minha mãe não gostava nem um pouco disso.
Mas tinha uma sexta-feira no ano em que minha mãe não mudava os móveis do lugar. Era na sexta-feira da paixão. Dia santo, ela sequer varria a casa ou penteava o cabelo. Aquele dia para ela era realmente  sagrado. E foi numa dessas sextas-feiras da paixão que eu peguei minha mãe folheando um exemplar da Casa & Jardim. Ela franziu as sobrancelhas, levantou os olhos, consertou os óculos e falou sozinha:
- Essa revista é boa pra gente tirar umas ideias e mudar a casa de vez em quando…
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 * Mineiro de Belo Horizonte, é jornalista e autor dos livros “O mundo acabou!”, “Afinal, o que viemos fazer em Paris?”, “Admirável mundo velho!” e “Onde foi parar nosso tempo?”, todos pela Editora Globo, além de "Carmo" (Ed. Contexto). Acaba de lançar também pela Editora Globo o “Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Morta”.
Fonte: http://www.cartacapital.com.br/cultura/moveis-e-utensilios/?autor=952

Entrevista com Andreas Schleicher, responsável pelo Pisa


Entrevista com Andreas Schleicher, responsável pelo Pisa Ver Descrição/Agencia RBS
Andreas Schleicher, responsável pelo Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) 
Foto: Ver Descrição / Agencia RBS
No comando de um dos mais respeitados rankings educacionais do mundo, o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), o físico alemão Andreas Schleicher monitora de perto sistemas de ensino de todo o planeta. A cada três anos, o exame compara o nível de conhecimento de estudantes de mais de seis dezenas de países em matemática, ciências e leitura. Diretor de Educação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), entidade que organiza o Pisa desde 1997, Schleicher atesta que o Brasil vem fazendo progressos na última década, mas em um nível ainda longe do ideal. Segundo revela na entrevista concedida por e-mail a ZH, o segredo para alcançar indicadores satisfatórios começa pela seleção e formação de bons professores.
 
Zero Hora — Quais as principais razões para o Brasil ter uma economia tão forte mas resultados educacionais tão pobres na comparação com outros países?
Andreas Schleicher — Uma razão para ser uma grande economia é simplesmente o fato de o Brasil ser um grande país. Mas o hiato entre a performance econômica e a educacional é ainda preocupante. Apesar de significativos progressos no desempenho do sistema escolar brasileiro ao longo da última década, o Brasil continua atrás em termos de qualidade da educação, conforme demonstrado pelos resultados do Pisa. Como outros países fartos em recursos naturais, por muito tempo ele extraiu sua riqueza da natureza e não das habilidades do seu povo. Em comparação, em países com poucos recursos naturais — exemplos são China, Finlândia, Cingapura ou Japão —, a educação tem fortes resultados e um status elevado em parte porque a população em geral entendeu que o país precisava viver de seu conhecimento, e que isso depende da qualidade da educação. Dar um grande valor à educação pode ser uma condição necessária para construir um sistema educacional e uma economia de classe mundial, e é possível que a maior parte dos países que não precisaram viver de sua sabedoria no passado não vão se realizar econômica e socialmente a menos que seus líderes políticos expliquem por que, embora não tenham precisado viver de sua inteligência no passado, precisam fazê-lo agora. 

ZH — Qual o melhor caminho para qualificar um sistema educacional?
Schleicher — A qualidade de um sistema educacional jamais vai exceder a qualidade dos seus professores e líderes, então atrair as melhores pessoas para o magistério e conceder a elas um ambiente de trabalho em que possam crescer profissionalmente é a melhor aposta. No passado, quando você precisava de apenas uma pequena fatia de pessoas bem educadas, bastava aos governos investirem em uma elite reduzida para liderar o país. Mas o custo social e econômico do baixo desempenho educacional subiu substancialmente, e todos os jovens agora precisam concluir a escola com habilidades básicas sólidas. Hoje, quando você pode acessar conteúdo no Google, e o trabalho muda rapidamente, o foco está em transformar pessoas em aprendizes por toda a vida, em gerir formas complexas de pensar e formas complexas de trabalho que os computadores não possam assumir facilmente. Hoje o desafio é fazer do magistério uma atividade de profissionais de alto nível. Mas essas pessoas não vão trabalhar em escolas organizadas como ambientes tayloristas que usam modelos administrativos de monitoramento, comandos burocráticos e sistemas de controle para dirigir o trabalho deles. 

ZH — É possível conseguir boa educação com baixos salários no magistério?
Schleicher — Salários adequados são importantes, mas eles são apenas um dos determinantes de uma força de ensino de alta qualidade. E não se esqueça de que o melhor sistema educacional do mundo — a Finlândia — não paga seus professores particularmente bem, mas garante um ambiente de trabalho atrativo e alto status profissional. O importante é dar apoio, avaliar e desenvolver a qualidade do professor, visar resultados, igualdade e responsabilidade e uma cultura de engajamento em vez de obediência, e alinhar objetivos pedagógicos com gestão de recursos. Isso é importante porque há muita demanda sobre os professores. Eles precisam dominar os assuntos que ensinam, necessitam de profunda compreensão de como a aprendizagem ocorre e do domínio de uma ampla gama de estratégias de ensino. Muitos dos países que pagam bem seus professores estão simplesmente priorizando o salário e o desenvolvimento profissional, mesmo que isso resulte em um número menor de professores e turmas com mais alunos. No balanço final, esses países acabam gastando menos recursos do que outros que comprometem suas verbas com uma relação que contempla mais professores e turmas menores.

ZH — Há algum país que o senhor veja como um exemplo de superação?
Schleicher — Na Europa, a Finlândia tinha um desempenho apenas mediano nos anos 70, mas agora lidera o mundo em termos de performance educacional. O Canadá fez avanços significativos, enquanto os Estados Unidos, não. Nos anos 60, a Coreia (do Sul) tinha o nível econômico do Afeganistão. Hoje, é muito forte econômica e educacionalmente. Acredito que o Brasil está no caminho também, o progresso demonstrado nos últimos anos no Pisa é muito encorajador.
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Reportagem por :
Marcelo Gonzatto
Fonte:  http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/geral/noticia/2012/08/entrevista-com-andreas-schleicher-responsavel-pelo-pisa-3870845.html

Sungjang Rinpoché, um grande mestre espiritual

© Frédéric Stucin pour  La Vie

“Para os tibetanos, ele é um “tulku”: a reencarnação de um grande mestre que fez o voto de retornar para ajudar todos os seres. Um erudito, cheio de humildade, de bondade e de paciência, capaz de ensinar a via progressiva para o Despertar, 
apesar de sua pouca idade”, 

escreve Corine Chabaud em artigo publicada no revista francesa La Vie, edição n. 3489, 12 a 18 de julho de 2012. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

Ele nasceu grande sábio erudito, mas não sabia. “Até os 5 anos eu era uma criança comum. Aos 6 anos eu perdi a minha liberdade”, lembra-se Sungjang Rinpoché. Após uma sessão de divinização, o dalai lama o reconheceu dentre os milhares de nomes de uma lista como a 4ª reencarnação de Ngawang Drakpa, discípulo do fundador da ordem do Guélougpa (o do dalai lama). Sungjang vivia então com sua família em Nagwa, no ex-Amdo tibetano, uma região hoje situada na província chinesa de Sichuan.

Logo depois, policiais chineses à paisana chegaram até ele para pedir a carta que reconhecia o seu novo estatuto. “Os ratos a comeram”, retorquiu seu pai. Sungjang recorda-se dos golpes que choviam, do sangue que corria, e de seu “medo de que todo o mundo fosse morrer naquela noite”. Sua família sobreviveu, mas foi confinada em uma residência permanentemente vigiada. Ele só pôde estudar no mosteiro vizinho de Kirti, sem nunca ter sido autorizado a sair de sua cidade. Até os11 anos, idade com a qual pôde fugir do Tibete.

Este é outro acontecimento épico de sua vida. Evoca sua excitação em finalmente sair da sua cidade, no alto de Lhasa, a expedição clandestina até a fronteira, um guarda armado que gritou “pare”, o medo de morrer; depois, sua caminhada vitoriosa até o Nepal e a Índia. Sentado sobre um tapete de meditação no templo de madeira em Vincennes, Paris, o jovem mestre espiritual fala sobre o seu extraordinário destino.

Para os tibetanos, ele é um “tulku”: a reencarnação de um grande mestre que fez o voto de retornar para ajudar todos os seres. Um erudito, cheio de humildade, de bondade e de paciência, capaz de ensinar a via progressiva para o Despertar, apesar de sua pouca idade. “Eu me sinto como um monge comum”, insiste. Aos 27 anos, Sungjang Rinpoché mora agora na França. Em março de 2012, esse jovem fundou em Lorey, no vale do Eure, o mosteiro de Tatsang Lhundup Ling, ou “Jardim das Realizações Espontâneas”. Antes, ele havia criado a associação humanitária Tibete Compaixão Internacional.

Dotado de uma incrível aura, esse guia espiritual ensina filosofia budista na Europa e no sudeste da Ásia. Sungjang Rinpoché visita regularmente Dharamsala, na Índia, onde mora a sua mãe exilada. Seu pai, um opositor que ficou 26 anos preso, morreu há quatro anos sem que pudesse vê-lo. E um de seus irmãos está preso no Tibete, condenado a 14 anos de cárcere por rebelião. Dores que seu estado de consciência superior ajuda a manter afastadas.

Sungjang Rinpoché transmite uma forte serenidade. Mas ele denuncia a sorte que a China reserva ao seu povo: a limpeza étnica, as torturas, os assassinatos, as esterilizações forçadas. Ou ainda a pilhagem dos recursos, a destruição das florestas e a poluição das águas. “Os chineses se comportam como nazistas”, ousa dizer. “Eles querem as nossas terras, mas eliminando o nosso povo. Nenhum governo ousa opor-se a esta superpotência econômica”.

Por conta do desespero dos tibetanos as imolações se multiplicam. Jovens monges budistas, ou mesmo mães de família se revoltam contra a falta de liberdade religiosa. Sungjang Rinpoché não eleva a voz nem mesmo quando fala sobre tudo isso. Desapegado dos bens materiais, ele leva uma vida monástica regrada. Levanta às 6h30. Vai dormir às 23h30. Nesse meio tempo, longas horas de meditação e de prática tântrica de alto nível. Um telefonema à sua mãe todos os dias. Escreve poemas em tibetano. “Eu não tenho preocupações. Levo uma vida feliz”, revela alegre. Esse jovem sábio não tem idade. [Esta última frase, em francês, tem sua rima: “Ce jeune sage n’a pas d’âge”.]
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Fonte:  IHU on line, 31/08/2012

O Amigo da Onça.


http://www.espacovital.com.br/img/fotos_noticias/20120831_60638.gif
O famoso personagem ´O Amigo da Onça´ foi criado pelo cartunista pernambucano Péricles de Andrade Maranhão, em 1943, e publicado de 23 de outubro de 1943 a 3 de fevereiro de 1962. Os diretores da então famosa revista O Cruzeiro - editada pelos Diários Associados - queriam criar um personagem fixo e já tinham até o nome, adaptado de uma famosa anedota.
 
Após a morte de Péricles, em 1962, o personagem continuou sendo publicado, desenhado pelo cartunista Carlos Estevão, até 1972, quando ele faleceu. A revista deixou de circular em 1975.

*  *  *  *  *

Dois caçadores conversam em um acampamento.

- O que você faria se estivesse agora na selva e uma onça aparecesse na sua frente?

- Ora, dava um tiro nela.

- Mas se você não tivesse nenhuma arma de fogo?

- Bom, então eu matava ela com meu facão.

- E se você estivesse sem o facão?

- Apanhava um pedaço de pau.

- E se não tivesse nenhum pedaço de pau?

- Subiria na árvore mais próxima!

- E se não tivesse nenhuma árvore?

- Sairia correndo.

- E se você estivesse paralisado pelo medo?


Então, o outro, já irritado, retruca:

- Mas, afinal, você é meu amigo ou amigo da onça?”

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Fonte:  http://www.espacovital.com.br/index.php 30/08/2012

Parpites

Luciano Pires*

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Abro minha palestra GERAÇÃO T com uma provocação composta por três enunciados que invariavelmente deixam a plateia babando. Olha só:

"Nossa juventude adora o luxo, é mal-educada, caçoa da autoridade e não tem o menor respeito pelos mais velhos. Nossos filhos hoje são verdadeiros tiranos. Eles não se levantam quando uma pessoa idosa entra, respondem a seus pais e são simplesmente maus.”

"Não tenho mais nenhuma esperança no futuro do nosso país se a juventude de hoje tomar o poder amanhã, porque essa juventude é insuportável, desenfreada, simplesmente horrível."

"Essa juventude está estragada até o fundo do coração. Os jovens são malfeitores e preguiçosos. Eles jamais serão como a juventude de antigamente. A juventude de hoje não será capaz de manter a nossa cultura."

Esses textos pesados circulam pela internet há anos. O primeiro é atribuído a Sócrates, 400 anos antes de Cristo; o segundo a Hesíodo, 720 anos antes de Cristo; e o terceiro estaria escrito num vaso de argila descoberto nas ruínas da Babilônia, que tinha mais de 4000 anos de idade...

Pô, mas se há pelo menos 4000 anos a humanidade vem ficando mais bruta, mais burra, mais ignorante, mais preguiçosa, mais maligna, como é que o mundo ainda não acabou? Talvez a coisa não seja tão ruim.

George Orwell disse uma vez que “cada geração imagina-se mais inteligente que a geração que veio antes, e mais sábia que a geração que vem depois.” Fosse não só imaginação, deveríamos estar melhorando, não é? Mas achamos que não.

O fato é que antes de professores, somos alunos. Aprendemos com a garotada que aí está a sermos pais, educadores, formadores e mentores. E se achamos que o resultado é ruim, a culpa é nossa, que fomos maus alunos e maus professores!

Volto então à questão do início: se o mundo vem ficando mais bruto, mais burro, mais ignorante, mais preguiçoso, mais maligno, como é que ainda não acabou? Bem, talvez ele não esteja ficando tão ruim assim. Ruim ficou para quem ainda vive um passado idílico. O mundo da nova geração está diferente. Nele eu só posso dar, como se dizia em Bauru, “parpites”.

Lamento por muitas das coisas que vivi e que meus filhos não viverão, mas invejo o tanto que eles tem e terão e que eu nem consigo imaginar. Basta dar uma olhada na história para verificar que, mesmo com essa impressão da burrice e ignorância crescentes, cada geração obteve conquistas tecnológicas, morais e sociais fabulosas, que levaram a humanidade a um estágio de conforto, conhecimento e harmonia muito superior ao que existia 4000, 1000, 500 ou 100 anos atrás.

Meus filhos são melhores que eu, meus parpites surtiram efeito! E tenho visto uma moçada muito interessante aparecendo, com idéias próprias, senso crítico, propostas e atitudes que me enchem de orgulho. Aprenderam com os parpites de outros...

- Ah , mas são minoria!

Claro que são. Mas nos últimos 40 mil anos, quando é que não foram?

Agora pare e pense: nesse contexto, qual é seu papel?

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* Luciano Pires é editor do Café Brasil.
Fonte:  http://www.portalcafebrasil.com.br/artigos/parpites?utm_source=Newsletters&utm_medium=email&utm_campaign=Parpites

Nós aprendemos a ver?

Fernando Reinach*

Se você passar o dedo na bochecha de um recém-nascido, ele vai girar a cabeça e tentar abocanhá-lo. Essa reação o ajuda a mamar. Esse comportamento vem programado no cérebro. Não depende de experiência prévia ou aprendizado. Mas ninguém aprende a falar se não ouvir outros falando. A língua que falamos depende da interação do cérebro com estímulos do meio ambiente.
Por anos, cientistas acreditavam que só características "culturais" (como fala e escrita) dependiam da interação do sistema nervoso com o ambiente. Características "biológicas", como reflexos, audição e até a visão, surgiriam ao longo do desenvolvimento de maneira pré-programada, em momentos precisos, sob controle dos genes.
Essa crença caiu por volta de 1970, quando dois cientistas, estudando primatas, demonstraram que o desenvolvimento da parte do cérebro que controla a visão (córtex visual) só se completa se os olhos enviam imagens ao cérebro.
Eles estudaram o desenvolvimento do sistema visual em animais em que um ou ambos os olhos eram tampados. Sem informação do globo ocular, a organização dos neurônios do sistema visual não ocorria direito. Até um certo momento (chamado de "fase crítica"), o sistema visual se desenvolve independentemente do funcionamento dos olhos, mas, se eles não enviam sinais na fase crítica, não há desenvolvimento normal da visão.
Essa descoberta, que rendeu o Nobel, demonstrou que o sistema visual dos mamíferos - uma característica biológica - não é determinado unicamente por fatores genéticos, mas depende de uma forma de aprendizado, obtido pela observação do mundo. Por isso é tão importante corrigir defeitos como estrabismo acentuado logo após o nascimento.
Agora cientistas húngaros demonstraram que a realidade é mais complexa. Descobriram que a fase crítica não ocorre em momento determinado, mas depende dos estímulos que o cérebro recebe. Eles estudaram o aparecimento da capacidade de integrar a imagem oriunda de cada olho. Ela surge por volta dos 4 meses de idade, durante o período crítico, e permite que o cérebro combine a informação gerada em cada olho, produzindo uma imagem tridimensional. Antes dos 4 meses, o cérebro reage de uma única maneira, independentemente de as imagens apresentadas a cada olho serem iguais ou diferentes. Após os 4 meses, o cérebro passa a reagir de modo diferentes, dependendo do caso. Nessa idade a criança começa a reconhecer as faces e expressões faciais dos pais, demonstrando que o sistema visual está maduro.
Os húngaros se perguntaram se o período crítico ocorre em um momento fixo, determinado geneticamente, ou se pode ser alterado, dependendo de quando o cérebro começa a receber sinais dos olhos. Eles determinaram o momento em que 15 crianças nascidas com 9 meses de gestação passam pelo período crítico e compararam com dados obtidos com 15 crianças prematuras. O resultado mostra que o período crítico ocorre 4 meses após o parto, independentemente do tempo de gestação. Ou seja, o momento em que passamos pelo período crítico não depende só de eventos ditados pelos genes, mas pode ser alterado se o cérebro recebe informação dos olhos mais cedo.
Essa descoberta é importante, pois demonstra que a interação com o ambiente tem um papel maior que o imaginado. O processo de visão é parte determinado geneticamente, parte determinado pelo meio ambiente. A linha que separa comportamentos derivados de processos biológicos dos derivados de processos culturais está ficando difusa. Será que nascemos com o dom da visão ou aprendemos a ver quando abrimos os olhos?
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* BIÓLOGO, MAIS INFORMAÇÕES: EARLY ONSET BINOCULARITY IN PRETERM INFANTS REVEALS EXPERIENCE-DEPENDENT VISUAL DEVELOMENT IN HUMANS. PROC. NATL. ACAD. SCI. USA,  VOL. 109,  PÁG. 11.049,  2012
Fonte:  http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,nos-aprendemos-a-ver-,923494,0.htm
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Pés na Lua

<br /><b>Crédito: </b> ARTE JOÃO LUIS XAVIER

Juremir Machado da Silva*

Imaginário é uma palavra linda, sonora, poética, misteriosa. Tomou o lugar, no mundo dos conceitos, de outras: subjetividade, representação e até ideologia. Mas é outra coisa. Imaginário é uma atmosfera, uma camada de sentido que recobre algo, um complemento de alma, um "plus", um algo a mais que transfigura um acontecimento. O mítico Andy Warhol, em "América" (L&PM), fala em ruas com atmosfera. Com uma maravilhosa intuição sociológica, diz que essa atmosfera não é real, mas trabalhada pelo cinema, pela música e pelo tempo. Imaginário é o que se transforma ao entrar na memória, ao ganhar atmosfera pela lembrança. Daí a minha frase: todo imaginário é real, todo real é imaginário. A gente vai ver certa rua ou lugar - o edifício de John Lennon - e sente alguma atmosfera. Para quem não conhece a história - isso, sabemos, existe - é apenas um lugar de Nova Iorque. Uau!

Jacques Lacan disse que o sexo acontece no imaginário. Sem uma camada de atmosfera, é quase uma fricção de corpos, um ato animal. A publicidade e o marketing são tecnologias do imaginário. Trabalham para dar atmosfera ao banal. Quase tudo o que vivemos na infância, tempo de grandes enigmas, tende a entrar em nosso imaginário, esse reservatório de imagens, de emoções, de afetos e de transfigurações. O goleiro Félix, que morreu na última sexta-feira, vive em nosso imaginário. O astronauta Neil Armstrong também. Ouvi muitos homens dizerem que Félix não era um grande goleiro. Mas ele era o goleiro da seleção de 70. Como poderia não ser grande? A seleção de 70 era aquela música, "noventa milhões em ação", um tempo, uma atmosfera, dramas secretos nos porões da ditadura, conflitos, confrontos, revoluções comportamentais em andamento no mundo, hippies, guerrilheiros, utopias.

Neil Armstrong é o próprio imaginário. O primeiro homem a pisar na Lua. Edu, meu amigo de infância, não acreditava nessa viagem à Lua. Numa viagem em carroça de cavalo, lá por 1976, ele não escondia o seu ceticismo:

- Conheço muita gente com a cabeça na Lua. Com os pés, ah, isso, pelo amor de Deus, isso não. Pura lorota.

Neil e Félix pertencem a um tempo que começou a morrer antes deles. A utopia do futebol espetáculo e das viagens à Lua foi sendo substituída pelo pragmatismo, pelos pés no chão, pela lógica do resultado e pelo aqui e agora sem transcendência. O imaginário é sempre nostálgico. As mortes de Félix e Neil não sensibilizaram os mais jovens, os que sentirão, dentro de algumas décadas, se nenhum imprevisto ocorrer, as mortes de Messi, Neymar e de Justin Bibier. Ah, não é igual, deve estar exclamando algum leitor! É da natureza do imaginário essa negação da atmosfera do outro. O imaginário é uma aura, uma iluminação, uma viagem à Lua.

Às vezes, infelizmente, acontece uma perda da aura. A imagem de Macaulay Culkin adulto passando mal na rua mostrou um homem já sem a atmosfera do menino ator. O imaginário é caminho para mito. Quem, tendo feito muito, morre cedo, tende a ter mais aura. Mas Neil Armstrong e Félix fazem parte de um time especial. Representam, para gente como eu, um excesso de atmosfera. Imaginário puro.
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* Sociólogo. Escritor. Tradutor. Cronista do Corrio do Povo
 juremir@correiodopovo.com.br

Crédito: ARTE JOÃO LUIS XAVIER
 Fonte:  http://www.correiodopovo.com.br/Impresso/?Ano=117&Numero=336&Caderno=0&Noticia=459452

Mulheres aumentam produção de livros nos EUA


Michael Probst/AP / Michael Probst/AP 
Segundo pesquisa, cerca de 60% dos consumidores de livros nos EUA são mulheres
 
Nas primeiras páginas de "A Mística Feminina", Betty Friedan (1921-2006) captou com sensibilidade o desespero de donas de casa e antecipou uma mudança que iluminaria a revolução na vida das mulheres. "Enquanto ela fazia a cama, combinava as fronhas dos travesseiros, comprava comida, comia sanduíches de pasta de amendoim com os filhos, os levava a clubes de escoteiros, deitava na cama com o marido à noite", escreveu Betty em seu livro de 1963, "tinha medo de se fazer a pergunta sorrateira: 'Será que isso é tudo?'"
O leitor comum perceberia detalhes do tipo "Mad Men" em coisas como "combinava as fronhas dos travesseiros". Mas um linguista ou psicólogo levaria em conta o uso dos pronomes femininos. A era dourada dos pronomes masculinos estava acabando. Segundo um estudo recente, a lacuna entre "ele" e "ela" nos livros, que sempre favoreceu os pronomes masculinos, foi dramaticamente reduzida desde a publicação do clássico feminista de Betty Friedan.
Ao revisar quase 1,2 milhão de textos do Google Books, três pesquisadores universitários analisaram o uso dos pronomes entre 1900 e 2008. A proporção de pronomes masculinos e femininos ficou em quase 3,5 para 1 até 1950, quando a diferença começou a aumentar, na medida em que mais mulheres começaram a ficar em casa depois da Segunda Guerra Mundial, e chegou ao pico de 4,5 para 1 em meados da década de 1960, diminuindo para 3 para 1 em 1975, e para menos de 2 para 1 em 2005. "Essas tendências representam uma das mais rápidas mudanças culturais já observadas: o avanço incrível da condição das mulheres nos EUA desde o fim da década de 1960", diz Jean M. Twenge, professora de psicologia da San Diego State University.
"Esses números são surpreendentes", diz James W. Pennebaker, autor de "The Secret Life of Pronouns" e presidente do departamento de psicologia da Universidade do Texas em Austin. "Os pronomes são um sinal de que, apesar de as mulheres estarem mais presentes no mercado de trabalho, nos meios de comunicação e na vida em geral, as pessoas estão falando mais delas."
O arquivo do mecanismo de busca contém apenas 4% de todos os livros publicados nos EUA desde 1800. Dos textos acadêmicos à ficção popular, os livros escritos por mulheres e sobre as mulheres vêm proliferando no último século. Nove entre dez dos livros mais vendidos atualmente nos EUA foram escritos por mulheres e há anos as editoras vêm considerando que as mulheres compram mais livros que os homens - cerca de 60% dos consumidores são mulheres, diz a Simba Information.
Um novo estudo confirma os grandes avanços do sexo feminino no seu sucesso no mundo editorial, diz Erin Belieu, poetisa e diretora-adjunta da organização sem fins lucrativos Vida (Women in Literary Arts). "As mulheres aumentaram sua 'produção literária', especialmente nas duas últimas décadas", diz. Mas isso não significa que haja mais resenhas de livros de mulheres, ou que mais mulheres estejam escrevendo para publicações literárias. Nos últimos dois anos, a Vida divulgou estudos que mostram que revistas como a "The New Yorker" e "The Atlantic" dedicaram muito mais espaço a escritores do que a escritoras.
"As escritoras começaram a ser estereotipadas na literatura para jovens e para meninas. As mulheres que escrevem para jornais são encarregadas de escrever artigos mais 'pessoais'. A prevalência dos escritores e críticos masculinos é como a velha guarda que não se aposenta", diz Belieu. (Tradução de Mario Zamarian)
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Reportagem   Por Hillel Italie | Da Associated Press, de Nova York
Fonte:  http://www.valor.com.br/cultura/2811500/mulheres-aumentam-producao-de-livros-nos-eua

A realidade é sonora

AP / AP
Jonathan Demme: "Acho que o documentário ganhará o espectador pela profundidade 
e pelo caráter de festa. A música leva essa 
vantagem sobre outras formas de arte"
 
O que leva um cineasta vencedor de Oscar, no universo da ficção, a se interessar por documentários, gênero que sempre enfrenta mais dificuldade para chegar às telas? "A teimosia de quem tomou gosto por filmar a vida real", respondeu Jonathan Demme, premiado pela Academia de Hollywood com a estatueta de melhor diretor por "O Silêncio dos Inocentes" (1991). "Quando investigo um tema do ponto de vista documental, a experiência se torna muito mais profunda. Quanto mais tempo passo com o personagem, mais ele cresce diante de meus olhos", disse Demme, atualmente fascinado pelo cantor, compositor e saxofonista italiano Enzo Avitabile.
O músico de Nápoles, ex-back vocal em turnês de James Brown e Tina Turner nos anos 1980, é a alma de "Enzo Avitabile Music Life". Exibido em caráter hors concours, com toda a pompa, na Sala Grande do Palazzo del Cinema, o documentário foi uma das principais atrações na primeira noite do 69º Festival de Cinema de Veneza, na quarta-feira. Com passagens pelo subúrbio de Marianella, onde o músico passou a infância, e pelo cemitério de Fontanelle, onde estão enterradas vítimas de praga (do século XVII), que inspirou uma de suas canções, o filme mostra como Avitabile conseguiu criar um estilo próprio na música folk. Inspirado em tradição nascida na era medieval, ele resgatou o uso de tonéis e barris como instrumentos de percussão, misturando essa batida do "bottari", como é conhecida essa prática ancestral, com jazz e blues. Avitabile chegou a ser indicado a quatro prêmios do BBC World Music Awards, pelo álbum "Let's Save the World''.
"Há dois anos, enquanto eu dirigia a caminho de casa, descobri Enzo ao ouvir um programa de rádio chamado 'New sounds with John Schaefer'. Naquela noite, era apresentado um especial com a nova música de Nápoles'', contou Demme ao Valor. "Assim que tocaram uma obra de Enzo Avitabile, passei a olhar de maneira diferente a ponte George Washington que eu atravessava naquele momento. Soube então que tinha de conhecê-lo'', disse o diretor, que recentemente encerrou a trilogia de documentários musicais com Neil Young: "Neil Young: Heart of Gold'' (2006), "Neil Young Trunk Show" (2009) e "Neil Young Journeys'' (2011). "Sou apaixonado pelo humanismo na obra de Neil. Podia fazer mais uns dois filmes com ele.''
A seguir, os principais trechos da entrevista, em que Demme não descarta voltar ao território da ficção, em que também se consagrou com "Filadélfia'' (1993) - com o qual Tom Hanks conquistou seu primeiro Oscar. O diretor acabou de rodar uma adaptação da peça "Solness, o Construtor", de Henrik Ibsen, com Andre Gregory e Wallace Shawn no elenco - que escreveram e estrelaram o filme "Meu Jantar com André" (1981), em que o diretor Louis Malle registra (como o título adianta) um jantar entre amigos em tempo real. "É ficção, mas muito distante de um filme 'mainstream'. Não seguimos qualquer fórmula, rodamos numa única locação e gastamos menos US$ 1 milhão.''

Valor: Como nasceu sua paixão por música?
Jonathan Demme: Sou filho da geração do rádio. Foi essa a primeira forma de entretenimento que conheci, muito antes da televisão. Desde menino, a música alimenta a minha alma. Como o cinema também é outra de minhas paixões, devo me considerar o cara mais sortudo do mundo por ultimamente estar ganhando a vida aliando as duas coisas.

Valor: Seus personagens musicais de documentários, filmes concerto ou videoclipes até então eram mais conhecidos do público internacional, como Neil Young, Talking Heads, Bruce Springsteen e The Pretenders. Como abordou o napolitano Enzo Avitabile, cuja obra é tão particular?
Demme: O mais importante num documentário é que o tema seja forte o suficiente. E Enzo é. Não acredito existir uma barreira a ser superada só pelo fato de a música dele ser napolitana. Acho que o documentário ganhará o espectador pela profundidade e pelo caráter de festa. A música leva essa vantagem sobre outras formas de arte. O que importa é o sentimento que ela desperta, independentemente de nacionalidade do autor ou do entendimento das letras. Comercialmente, o filme seguirá o caminho de todos os outros documentários que fiz. Quando conseguem distribuição, o circuito é sempre limitado.

Valor: É mais comum o cineasta jovem fazer suas experimentações no documentário, para depois chegar ao cinema "mainstream". Mas o sr. fez o caminho inverso...
Demme: Nada foi planejado. Sempre gostei de documentários, mas nunca pensei em dirigi-los. Minha vida mudou após uma viagem que fiz ao Haiti, país que mal conhecia e que me fascinou. Daí surgiu a ideia de ficar mais tempo por lá e de rodar um documentário ("Haiti Dreams of Democracy", de 1988) para o Channel 4, o que acabei fazendo.

Valor: Inicialmente, pensou que estaria apenas tirando férias dos filmes de ficção?
Demme: Essa era a ideia. Por um lado, sentia que já tinha dado minha contribuição em Hollywood e precisava respirar novos ares. Só que uma coisa acabou puxando outra. Quando vi, já estava filmando um novo documentário sobre um pastor radical ("Cousin Bobby'', de 1992), a convite de uma emissora espanhola. Foi a primeira vez em que trabalhei com o cameraman Declan Quinn, que me acompanha até hoje. Foi nesse momento que percebi que filmar um documentário me dava muito mais prazer do que rodar uma produção de ficção, por causa de todas as exigências de um grande estúdio que o diretor precisa atender.

Valor: A experiência em "O Casamento de Rachel" (2008) provou que rodar história de ficção como se fosse um documentário pode dar certo. O senhor tem mais projetos combinando essas duas possibilidades?
Demme: Sim. Isso me anima a filmar ficção novamente. Estou muito acostumado ao estilo de improvisação e a trabalhar com equipe pequena e orçamento modesto. Sem falar que é muito divertido rodar ficção fingindo se tratar de um documentário. A melhor parte é gritar "ação!" sem qualquer plano de filmagem pré-estabelecido. Basta deixar a cena acontecer. Algo do gênero poderá acontecer no projeto que desenvolvo atualmente com Walter Mosley, uma série de detetive de 12 episódios baseada no seu último livro, "The Long Fall". Mas será para TV.

Valor: E no cinema?
Demme: Minha volta com um filme de ficção no sentido mais tradicional provavelmente será com a adaptação do livro de Stephen King "11/22/63''. Estou cuidando também do roteiro, que pretendo estruturar como uma viagem no tempo em ritmo de "thriller". Um personagem do mundo atual conseguirá ser transportado ao passado, para tentar impedir o assassinato de John Kennedy. É só isso que posso dizer no momento.

Valor: Onde guarda o Oscar que ganhou?
Demme: Na cozinha, claro. Existe lugar mais visitado numa casa?
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Reportagem por Elaine Guerini | Para o Valor, de Veneza
Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/2811540/realidade-e-sonora

Os labirintos do capital


 Luiz Gonzaga Belluzzo*
 
 
 
No dia 11 de julho de 1856, o "New York Tribune" publicou o terceiro artigo de Marx sobre o Crédit Mobilier. Sob os auspícios de Napoleão III, o banco de investimento empreendido pelos irmãos Pereire, Emile e Isaac, tinha o propósito de "concentrar grandes somas de capital de empréstimo para investimento em empresas industriais".
Depois de ironias e sarcasmos lançados sobre o "socialismo imperial" de Luís Napoleão e das habituais estocadas nas concepções reformistas de Saint Simon e discípulos, Marx reconhece que as transformações da finança capitalista e o surgimento da sociedade por ações, sobretudo da sociedade anônima, "marcam uma nova época na vida econômica das nações modernas".
Os bancos comerciais, diz ele, "fluidificam temporariamente o capital fixo", enquanto os bancos de investimento cuidam de "fixar o capital líquido" em estruturas empresariais cada vez maiores e de administração mais complexa. Marx conclui: "Quase todas as crises comerciais dos tempos modernos estão relacionadas com o desarranjo nas proporções entre o capital fixo e o "floating capital" (os títulos de dívida e de propriedade negociados diariamente nas Bolsas de Valores e nos demais mercados secundários).
A série de artigos sobre o Crédit Mobilier foi estampada nas páginas do "New York Tribune" no período em que Marx trabalhava nos chamados "Borradores" ("Grundrisse") e dez anos antes da publicação do primeiro volume de "O Capital". Quatro décadas iriam transcorrer entre as primeiras e pontuais investigações de Marx sobre as peripécias do capital financeiro e o esforço de Engels para completar os alfarrábios do terceiro volume, publicado em 1894.

A desregulamentação financeira mostrou como a "natureza" especulativa do capital fictício 
se apoderou da gestão empresarial

Marx adverte, na abertura do Livro III de "O Capital", que até então, nos Livros I e II, o processo capitalista de produção foi considerado em seu conjunto, representando a unidade do processo de produção e de circulação. "Aqui no livro III, não se trata de formular reflexões gerais sobre essa unidade, senão, ao contrário, de descobrir e expor as formas concretas que brotam do movimento do capital considerado como um todo. Em seu movimento real, os capitais se enfrentam sob essas formas concretas... As manifestações do capital se aproximam, pois, gradualmente da forma sob a qual se apresentam na superfície da sociedade, mediante a ação recíproca dos diversos capitais que se enfrentam na concorrência e tal como (essas manifestações) se refletem na consciência habitual dos agentes de produção." Marx procura articular teoricamente essas formas de modo a demonstrar como o capital, no exercício de sua natureza expansionista, rompe continuamente as limitações do seu processo mais geral e "elementar" de circulação e reprodução. O capital precisa existir permanentemente de forma "livre" e líquida e, ao mesmo tempo, crescentemente centralizada, para revolucionar periodicamente a base técnica, submeter massas crescentes de força de trabalho a seu domínio e criar novos mercados. Apenas dessa maneira pode fluir para colher novas oportunidades de lucro e, concomitantemente, reforçar o poder do capital industrial e mercantil imobilizado nos circuitos prévios de acumulação. Daí as análises da concorrência, do crédito e, portanto, do processo de concentração e centralização do capital se constituírem na parte mais rica e substantiva da investigação marxista sobre a dinâmica do sistema capitalista e suas metamorfoses.
Uma leitura cuidadosa dos "Grundrisse" e dos três volumes de "O Capital" permite compreender que o dinheiro transformado em capital - origem e finalidade da circulação e da produção capitalistas (Dinheiro-Mercadoria-Dinheiro) - não só exige a submissão real da força de trabalho ao domínio das forças produtivas como também impõe aos trabalhadores (e aos proprietários do valor-capital) os ditames da acumulação de riqueza abstrata. A acumulação de mais dinheiro mediante o uso do dinheiro para capturar mais valor sob a forma monetária suscita a transfiguração das formas de expansão do valor, isto é, impõe o predomínio das formas "desenvolvidas": o capital a juros, o dinheiro de crédito e o capital fictício. Nessas formas, o dinheiro-capital realiza o seu conceito de valor que se valoriza e tenta continuamente romper os seus próprios limites ao buscar o acrescentamento do valor sem a mediação da mercadoria força de trabalho. "D-M-D" se converte em "D-D".
Na (re) constituição teórica do modo capitalista de produção, o dinheiro, enquanto substantivação do valor e objetivo do processo de valorização, assume a forma de dinheiro de crédito. As determinações mercantis e capitalistas do modo de produção não são distorcidas, mas, ao contrário, alcançam o ápice de seu desenvolvimento quando são introduzidos o capital a juros e o dinheiro bancário. O sistema de crédito é a forma mais adequada para cumprir as determinações do dinheiro: ele "aperfeiçoa" a execução das funções monetárias no capitalismo e constitui uma esfera de "valorização" em que o capital monetário ensaia estabelecer uma relação consigo mesmo, "D-D". Aqui, o dinheiro realiza o seu conceito de substantivação do valor e de forma universal da riqueza. O movimento de abstração real e o fetichismo chegam ao estágio supremo. "O crédito, que também é uma forma social da riqueza, substitui o dinheiro (metálico) e usurpa o lugar que lhe correspondia. A confiança no caráter social da produção faz a forma dinheiro dos produtos algo destinado a desaparecer...Ao se desenvolver o sistema de crédito, a produção capitalista tende a suprimir continuamente o limite metálico-material e fantástico da riqueza e de seu movimento - mas quebrando seguidamente sua cabeça contra ele."
Ao concentrar capital monetário, os bancos ganharam a prerrogativa de emitir notas que abastecem a circulação monetária. Com a evolução do sistema de crédito, os passivos bancários mudam de forma: a emissão de notas é substituída por depósitos à vista que podem ser mobilizados por seus titulares como meios de pagamento. "Se B deposita no banco o dinheiro recebido de A e o banqueiro entrega esse dinheiro a C como desconto de uma letra, C faz uma compra a D e este deposita no banco, que por sua vez empresta a E, que compra de F, teremos que o ritmo (da criação monetária) como meio de circulação se opera mediante várias operações de crédito." ("O Capital", vol. III, pag 489).
O "salto" no potencial de acumulação promovido pelas formas financeiras engendra a criação de modalidades de negócios e de enriquecimento que pretendem se tornar independentes das leis da produção de mais-valia e das normas de reprodução e acumulação do capital produtivo. A concentração da riqueza líquida nos bancos e demais instituições financeiras enseja o adiantamento de recursos livres e líquidos para sancionar a aposta do capitalista em funções que resolveu colocar o seu estoque de capital em operação, contratando trabalhadores e adquirindo meios de produção. Concomitantemente, o movimento de expansão do valor, ao ampliar as relações de débito e crédito, "cria" o circuito de negociação de valores - títulos de dívida e direitos de propriedade. A avaliação e negociação dos direitos de propriedade e de dívidas abre espaço para episódios especulativos.
O capital a juros patrocina a valorização "fictícia" da riqueza, o que acentua e acelera as tendências da economia capitalista para deflagrar crises de superacumulação e de crédito, provocando com violência a continuidade do processo de "expropriação dos expropriadores" e de destruição de valor na esfera produtiva e financeira. A "reunião do que não deveria estar separado" impõe o "retorno" aos fundamentos, o que se efetua mediante a desvalorização dos títulos que representam direitos à apropriação da renda futura e do patrimônio: títulos de dívida e de propriedade, mercadorias não vendidas e sem valor, capacidade produtiva excedente. Nas crises, fica demonstrado que não é possível preservar o capital em funções [capital produtivo] das escaladas de valorização da riqueza capitalista na esfera financeira.

As relações entre as economias "real"
 e monetário-financeira nascem 
das formas assumidas 
pelo capital em expansão 
e transformação 

As relações entre a "economia real" e a economia monetário-financeira não são de exterioridade, mas nascem das formas necessárias assumidas pelo capital em seu movimento de expansão e transformação permanentes. Aí estão inscritas a concentração e centralização do controle do capital líquido em instituições de grande porte e cada vez mais interdependentes. O circuito "D-D" nasce das tendências centrais do regime do capital: um processo necessário e inexorável, porque a acumulação capitalista é acumulação de riqueza abstrata e, ao mesmo tempo, um movimento de abstração real que transfigura o dinheiro, a encarnação substantivada do valor e da riqueza, nas formas "desenvolvidas" do dinheiro de crédito, do capital a juros e do capital fictício.
Não há oposição entre as formas - capital produtivo versus capital financeiro - mas um desenvolvimento contraditório. Por isso, o capital financeiro, em seu movimento de valorização, tende a arrastar o capital em funções para o frenesi especulativo, a criação contábil de capital fictício. A chamada desregulamentação financeira mostrou de forma cabal como a "natureza" intrinsecamente especulativa do capital fictício se apoderou da gestão empresarial, impondo práticas destinadas a aumentar a participação dos ativos financeiros na composição do patrimônio, inflar o valor desses ativos e conferir maior poder aos acionistas. Particularmente significativas são as implicações da "nova finança" sobre a governança corporativa. A dominância da "criação de valor" na esfera financeira expressa o poder do acionista, agora reforçado pela nova modalidade de remuneração dos administradores, efetivada mediante o exercício de opções de compra das ações da empresa.
A "geração de valor" para os acionistas acirra a concorrência entre as empresas na busca de ganhos especulativos de curto prazo, enquanto a liquidez dos mercados permite a constante reestruturação das carteiras pelos administradores dos fundos financeiros "coletivizados". No sistema de crédito, os prestamistas finais disponibilizam - através dos bancos comerciais e demais intermediários financeiros - recursos destinados ao conjunto da classe capitalista, para um empreendimento que eles não sabem qual é. Entregam aos especialistas das finanças a administração de suas "poupanças" e dependem de seus critérios para a obtenção de rendimentos.
No último ciclo de exuberância financeira, que culminou na crise de 2008, foi ampla e irrestrita a utilização das técnicas de alavancagem com o propósito de elevar os rendimentos das carteiras em um ambiente de taxas de juros reduzidas. Isso favoreceu a concentração da massa de ativos mobiliários em um número reduzido de instituições financeiras grandes demais para falir. Os administradores dessas instituições ganharam poder na definição de estratégias de utilização das "poupanças" das famílias e dos lucros acumulados pelas empresas, assim como no direcionamento do crédito. Na esfera internacional, a abertura das contas de capital suscitou a disseminação dos regimes de taxas de câmbio flutuantes, que ampliaram o papel de "ativos financeiros" das moedas nacionais, não raro em detrimento de sua dimensão de preço relativo entre importações e exportações.

A interdependência e a "solidariedade" 
dos capitais individuais no sistema 
de crédito os tornam mais sujeitos 
a episódios de crises sistêmicas

Na esteira da liberalização das contas de capital e da desregulamentação, as grandes instituições construíram uma teia de relações "internacionalizadas" de débito-crédito entre bancos de depósito, bancos de investimento e investidores institucionais. O avanço dessas interrelações foi respaldado pela expansão do mercado interbancário global e pelo aperfeiçoamento dos sistemas de pagamentos. Os bancos de investimento e os demais bancos "sombra" aproximaram-se das funções monetárias dos bancos comerciais, abastecendo seus passivos nos "mercados atacadistas de dinheiro" ("wholesale money markets"), amparados nas aplicações de curto prazo de empresas e famílias. Não por acaso, nos anos 2000 a dívida intrafinanceira como proporção do PIB americano cresceu mais rapidamente do que o endividamento das famílias e das empresas. A "endogeinização" da criação monetária mediante a expansão do crédito chegou à perfeição em suas relações com o crescimento do estoque de quase-moedas abrigado nos "money markets funds". Esses fenômenos correspondem ao que Marx designou "controle privado da riqueza social", fenômeno que se realiza no movimento de expansão do sistema capitalista.
Essa socialização da riqueza significa não apenas que o credito permite o aumento das escalas produtivas, da massa de trabalhadores reunidos sob o comando de um só capitalista. Significa mais que isso: os capitais individuais passam a ser mais interdependentes e "solidários" no sistema de crédito e, portanto, mais sujeitos a episódio de crise sistêmica. A "separação" entre o capital em funções e o capital a juros (capital-propriedade) promove a subordinação "solidária" do capital produtivo à sua forma mais "desencarnada".
A remuneração do capital em geral "aparece" sob a forma de juros e dividendos. Formas aparenciais são, ao mesmo tempo, formas ilusórias, no sentido de que ocultam as conexões fundamentais desse modo de produção, mas também são formas necessárias, expressões das relações de produção "transformadas" pelo processo de abstração real. Os juros aparecem como forma de remuneração do capital "sans phrase" e sua formação nos mercados de riqueza mobiliária depende da demanda e oferta de capital dinheiro transfigurado na forma de capital a juros, capital-propriedade. Essa é a forma mais abstrata de existência do capital, a sua forma "verdadeira", no sentido de que é a mais desenvolvida. "É evidente que no capital a juros, o capital se completa como fonte misteriosa e autocriativa de seu próprio acrescentamento.... é o capital par excellence". ("Teorias da Mais Valia", vol. III)
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* Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp
Fonte:  http://www.valor.com.br/cultura/2811516/os-labirintos-do-capital

Os rumos do capitalismo


André Lara Resende*
"O mundo moderno é muito complexo para ser reduzido a uma fórmula, uma condenação ou uma solução. Deve ser observado sem 
arroubos de entusiasmo ou de indignação" 
- Raymond Aron.

É pouco provável que antes da crise financeira de 2008 a proposta de analisar os novos rumos do capitalismo fosse capaz de atrair público. Desde o fim dos anos 1980, depois da queda do Muro de Berlim, o sucesso da economia capitalista globalizada, com a incorporação da China transformada em nova locomotiva, não deixava dúvida: as modernas economias de mercado eram incomparáveis na sua capacidade de criar riqueza, estimular o progresso tecnológico e garantir o crescimento. Onde há consenso, o debate, a análise, não desperta interesse. Toda unanimidade é burra, costumava repetir Nelson Rodrigues. Mas não só as economias, também as convicções são cíclicas.
O termo "capitalismo" data do fim do século XIX. A expressão "o capitalista", como referência ao dono do capital, aparece antes, já no início do século XIX, utilizada por autores como David Ricardo e outros, mas "o capitalismo", como um sistema de organização social e econômica, foi cunhado por seus críticos - o mais famoso deles, evidentemente, sendo Karl Marx, em "O Capital", de 1867. Muitos outros, anarquistas e socialistas, como Pierre-Joseph Proudhon e Werner Sombart, utilizaram o termo para definir uma forma de organização econômica e social, em que a produção e a distribuição de bens e serviços são de propriedade privada e têm fins lucrativos, ou seja, visam a acumulação de capital.
O capitalismo, em várias vertentes, é dominante no mundo ocidental, desde o fim do feudalismo medieval. Inicialmente, sua versão primitiva, mercantilista, baseada no comércio, foi estimulada pelas oportunidades que se abriram com o avanço da navegação e as descobertas do Novo Mundo. Só com a Revolução Industrial do século XIX, quando surge o mercado de trabalho assalariado, o capitalismo adquire as características que seus críticos do fim daquele século - Marx, sobretudo - lhe atribuem. O fato de o termo ter sido cunhado por seus críticos lhe confere uma conotação negativa, atenuada ao longo do tempo, mas que ainda hoje não deixa de suscitar polêmica.
O sistema de preços determinados nos mercados, pela interação da oferta e da demanda, é um dos elementos do capitalismo moderno, mas o capitalismo, nas suas várias formas, não se confunde com o mercado competitivo, que é uma abstração conceitual, um idealtipo. As economias capitalistas observadas na prática, desde o século XIX até hoje, não são homogêneas. Formas muito distintas de organização econômica, tanto em termos de distanciamento do idealtipo competitivo, quanto em relação à propriedade exclusivamente privada do capital, são qualificadas como capitalistas. Daí os inúmeros apostos qualificativos - como mercantil, industrial, monopolista, de Estado, financeiro, corporativo - comumente encontrados quando se fala em capitalismo.

Ao controlar as forças cíclicas 
naturais do capitalismo, pode-se 
ter esclerosado grande parte
 das suas virtudes

Desde sua introdução com Marx, no fim do século XIX, até o último quarto do século XX, e a derrocada do comunismo soviético, o termo capitalismo esteve sempre associado a uma conotação crítica. Durante quase todo o século XX, a visão progressista dominante sustentou que o capitalismo, embora criador de riquezas, era intrinsecamente injusto, estimulador das desigualdades e desagregador. Por estar baseado na exploração do trabalho, transformado em mercadoria, conduzia à luta de classes, à deterioração da vida comunitária e do espírito público. Mas essa nem sempre foi a visão intelectualmente dominante. A partir do fim do século XVI, durante todo o século XVII e parte do século XVIII, a atividade mercantil - na época ainda não chamada de capitalismo - foi vista como um fator altamente positivo e civilizatório.
Como sustenta Albert Hirschman em "Rival Views of Market Society", de 1986, a ideia de que o interesse individual, em contraposição às paixões, é socialmente positivo, aparece no fim do século XVI. O duque de Rohan, em "On the Interest of Princes and States", defende a tese de que o interesse econômico do príncipe, perseguido de forma racional, com prudência e moderação, serve melhor ao interesse comum, ao bem de todos, do que a sociedade deixada ao sabor das paixões, da busca da glória pessoal, de acordo com o ideal heróico medieval. A busca, metódica e ordenada, do interesse econômico individual passou a ser vista como amplamente preferível às ações dirigidas pelas paixões, violentas, desordenadas e imprevisíveis.
Na época, a tese progressista era de que o comércio, conduzido pelos interesses individuais, em busca de ganhos materiais, serviria de freio mais eficiente ao comportamento passional, do que o tradicional apelo à religião, ao dever e à moral. O comércio era visto como elemento civilizador, tanto para os senhores, como para seus súditos. "Le doux commerce", percebido como indutor do contato entre estrangeiros, estimulador da moderação e da probidade, entre outras virtudes.
A valorização do interesse econômico, em contraponto à paixão, ajudou a legitimar a atividade comercial. Levou à valorização da vida privada, que, desde o mundo clássico até a Renascença, sempre esteve relegada ao nível mais baixo da hierarquia das atividades humanas. A valorização da vida privada, por sua vez, permitiu o aumento do consumo pessoal, que se transformou em elemento-chave do dinamismo capitalista da modernidade.
A valorização intelectual da busca do interesse econômico individual atingiu seu ápice com o Iluminismo escocês, ainda no século XVIII. O fascínio pela a ideia da busca dos interesses indiviuais como elemento de civilização e progresso, levou à formulação da tese da "mão invisível" de Adam Smith. Perseguir interesses individuais seria não apenas racional, como também a melhor forma de atender ao interesse público. O bem-estar de todos estará mais bem atendido se perseguido de forma indireta. Em paralelo, surge a valorização do homem médio, do "middle rank", do pequeno comerciante, do pequeno empresário, que na segunda metade do século XIX, quando os ventos intelectuais já tinham mudado, são pejorativamente designados de "os burgueses" por Marx.
Os primeiros sinais da mudança dos ventos das ideias aparecem no início do século XIX. Com a Revolução Industrial, os interesses econômicos se tormam dominantes. Surge então o lamento nostálgico pelo "mundo que perdemos", bem expresso por Edmund Burke: "The age of chivalry is gone, that of sophisters, economists and calculators has succeeded, and the glory of Europe is gone forever". Numa reversão surprendente, a sociedade feudal, que era vista como "rude e bárbara", sempre ameaçada pelas paixões de tiranos violentos, passou a ser vista com nostalgia, baseada em valores como a honra, o respeito, a confiança e a lealdade. Valores sem os quais a sociedade movida pelos interesses individuais não poderia funcionar, mas que haviam sido erodidos por ela.
A nostalgia do mundo perdido abre caminho para os novos críticos, mais duros, da sociedade capitalista. A crítica deixa de ser cultural, nostálgica. Passa a denunciar a capacidade destrutiva, desagregadora, das novas forças liberadas numa sociedade integralmente movida pelos interesses materiais. Assim como a valorização dos interesses individuais e do comércio atingiu seu ápice com David Hume e Adam Smith, a mudança de rumo dos ventos intelectuais, a partir do fim do século XVIII, culminou com Karl Marx, na segunda metade do século XIX.
Do fim do século XIX até o último quarto do século XX, a crítica marxista foi intelectualmente predominante. A alternativa marxista ao capitalismo - a revolução proletária e a socialização dos meios de produção - pode ter permanecido sempre polêmica, mas a crítica marxista influenciou de forma decisiva os rumos do capitalismo no século XX.
De forma esquemática, a crítica marxista ao capitalismo tem quatro vertentes:
1. A econômica, segundo a qual o sistema seria instável, sujeito a crises recorrentes, até a crise final, que abriria espaço para a alternativa socialista.
2. A social, segundo a qual o sistema seria injusto, baseado na exploração do trabalho assalariado, levaria à concentração da renda e seria incapaz de erradicar a pobreza, pois ela exerce o papel funcional de "exército industrial de reserva".
3. A política, segundo a qual a democracia capitalista é uma impostura. A alienação cultural impediria os trabalhadores de comprender que não há interesses comuns, mas sim interesses de classes, que não podem ser reconciliados na democracia representativa capitalista.
4. A cultural, segundo a qual o sistema levaria à alienação dos trabalhadores em relação aos seus verdadeiros objetivos. No capitalismo, a sociedade é consumista, egoísta e alienada.
Ao longo do século XX, a crítica marxista, sempre como referência, foi sendo gradualmente enfraquecida.
A crítica econômica foi desacreditada pela receita de John Maynard Keynes, na "Teoria Geral da Renda e do Emprego", de 1936. Formulada depois da Grande Crise dos anos 1930, foi refinada durante os anos 50 e 60, até culminar com a chamada "síntese macroeconômica" dos anos 80. A fórmula para evitar as grandes flutuações macroeconômicas das economias capitalistas havia sido encontrada. A receita era ter a dívida pública sob controle, uma política fiscal contracíclica, uma política monetária pautada por metas inflacionárias e a taxa de cambio flutuante. Nas últimas décadas do século XX, consolidou-se a impressão de que os ciclos macroeconômicos haviam sido finalmente eliminados. Uma nova era, "A Grande Moderação", havia chegado, com a descoberta do remédio para a instabilidade crônica da economia capitalista.

O aumento dos gastos públicos, como 
recomenda a terapia keynesiana,
 é questionável numa economia
 ainda com excesso de dívidas 

A crítica social foi aplacada pelas reformas tributárias, trabalhistas e sociais do pós-Segunda Guerra. Em todo o mundo ocidental, principalmente na Europa, foi criada uma rede de proteção trabalhista e de assistência social, através do significativo aumento da participação do Estado na economia. A economia capitalista do "Welfare State" parecia ter respondido à crítica social do capitalismo, sem necessidade de suprimi-lo.
A crítica política à democracia representativa capitalista foi desmoralizada pelo autoritarismo, pela violência oficial e pela falta de liberdades cívicas dos regimes comunistas. A começar pelo soviético, mas também pelo dos seus satélites no Leste Europeu, assim como em Cuba, na China e em toda parte onde o comunismo de inspiração marxista foi instaurado.
A crítica cultural, primeiro rompeu com a ortodoxia marxista, através da chamada Escola de Frankfurt, do Institute for Social Research, fundado na década de XX, por onde passaram pensadores como Max Hockheimer, Theodor Adorno, Erich From, Herbert Marcuse e, mais recentemente, Jürgen Habermas. Depois se distancia definitivamente do marxismo e se confunde com a crítica da modernidade, como é o caso do filósofo polonês Lesleck Kolakowski, com "Modernity on Endless Trial" (1990), do historiador americano Daniel J. Boorstin, com o brilhante e pioneiro "The Image: A Guide to Pseudo-events in America" (1961), cuja temática é retomada pelos franceses Guy Debord, em "La Société du Spetacle" (1967) e Jean Baudrillard, em La Société de Consommation" (1970) e "Simulacres et Simulation" (1981).
De forma progressiva, tanto intelectualmente quanto na prática, a crítica marxista foi perdendo força, até ser completamente marginalizada com a derrocada da União Soviética, a queda do Muro de Berlim e a adesão da China ao capitalismo mundial. Nas duas décadas, desde o final dos anos 1980 até a crise de 2008, o sucesso da economia globalizada parecia ter enterrado definitivamente a crítica marxista. Todo um conjunto de ideias, que serviu de pano de fundo para o grande debate intelectual e para a revisão do capitalismo do século XX, parecia ter sido relegado à história do pensamento. Uma nova visão hegemônica teria se consolidado: o que se pode chamar de o otimismo do capitalismo tecnológico. Os extraordinários avanços da tecnologia, estimulados pela competição capitalista de um mundo globalizado, abririam novas e inimagináveis possibilidades.
O quadro mudou com a crise de 2008. A "Grande Moderação", conquistada com a aplicação da "Síntese Macroeconômica", revelou-se um equívoco. A sofisticação dos mercados financeiros, com o desenvolvimento dos mercados virtuais, dos chamados "derivativos", que em tese deveria ter sido capaz de reduzir ou dispersar riscos, mostrou-se apenas mais uma forma de exponenciar o endividamento e a alavancagem. Uma alavancagem impermeável aos olhos, não apenas das autoridades reguladoras, mas também aos olhos dos próprios dirigentes das instituições que a utilizavam.

Não será possível continuar com a série de ciclos de expansão do consumo material, alimentado 
pela turbina do crédito, 
até uma nova crise

Quando a crise eclodiu, a escala das instituições financeiras globalizadas obrigou os governos nacionais a socorrê-las. Evitou-se um grande colapso, mas à custa de um aumento expressivo da dívida pública e do passivo dos bancos centrais. Em alguns casos, como na Islândia e na Grécia, o endividamento público superou o limite tolerável e levou à quebra do Estado. Na Europa, a crise bancária está temporariamente reprimida pelo financiamento do Banco Central Europeu de Mario Draghi aos bancos centrais nacionais. Mas ainda ameaça o euro e a própria União Europeia.
Os Estados Unidos, favorecidos pela condição de emissores da moeda reserva mundial, foram capazes de reagir de forma mais radical em relação à atuação do seu banco central. Desde 2008, o Fed expandiu de forma agressiva seu passivo e monetizou grande parte do aumento do endividamento público decorrente do socorro ao setor financeiro. A lição aprendida com a crise dos anos 1930 permitiu que uma nova Grande Depressão fosse evitada. Em contrapartida, a economia americana continua excessivamente endividada. Parte do excesso de dívida privada foi transferido para o setor público, mas o endividamento total, público e privado, continua excessivo.
A depressão tem custos intoleráveis, mas, com a quebra generalizada, elimina-se o excesso de endividamento e abre-se a porta para um novo ciclo de expansão. Ao evitar-se a quebra, impede-se a redução, catastrófica, mas natural, do excesso de dívidas que precisam ser digeridas, antes que o consumo e o investimento possam retomar fôlego. Troca-se um fim horroroso por um horror sem fim.
Diante desse impasse, o autor a ser reestudado é com certeza Joseph Schumpeter. Economista austro-húngaro, com longa carreira na academia e no setor público, primeiro na Europa e depois na academia americana, Schumpeter é o grande teórico dos ciclos econômicos. Já nos anos 1930, era crítico em relação à excessiva formalização matemática da teoria econômica. Segundo ele, a tentativa de mimetizar as ciências naturais, em nome do rigor metodológico, resultava na incapacidade de compreender a economia como um fenômeno social. Defensor entusiasmado do capitalismo e da fecundidade do espírito empresarial - do "entrepreneur" - enfatizou a importância da "destruição criativa" do capitalismo como mola propulsora dos avanços em todas as esferas da sociedade. É provável que, ao se domesticar o capitalismo, ao controlar artificialmente suas forças cíclicas naturais, pode-se ter esclerosado grande parte de suas virtudes, de sua força criativa e renovadora.
A economia americana continua estagnada. Assim como o Japão está estagnado há mais de 15 anos, depois do fim de uma bolha imobiliária, os Estados Unidos também deverão ficar estagnados até que o excesso de dívida seja digerido. A China foi capaz de sustentar altíssimas taxas de crescimento, mesmo depois da crise de 2008. Serviu de locomotiva, principalmente para os países exportadores de matérias-primas, como o Brasil, e impediu que a economia mundial como um todo estagnasse, mas já há sinais de que economia chinesa está em processo de desaceleração.
Quatro anos depois do inicio da crise, ainda não há solução à vista. Não há nem mesmo consenso sobre como proceder. O debate, hoje, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, parece estar polarizado entre o imperativo contraditório de manter o endividamento público sob controle e relançar o crescimento, através do estímulo keynesiano de mais gastos públicos. A ortodoxia fiscal é defendida primordialmente pelos republicanos nos Estados Unidos e pela Alemanha na Europa. A política fiscal anticíclica keynesiana é defendida pelos democratas nos Estados Unidos e pela França de François Hollande.
À primeira vista, crescer parece ser a solução. O crescimento reduz o valor relativo das dívidas. Sem crescimento, ao contrário, as dívidas nunca serão digeridas. A lógica sugere que não se deve tentar controlar a dívida pública enquanto a economia está estagnada, pois o resultado é uma política fiscal pró-cíclica, que pode levar à queda da renda e ao agravamento da relação entre a dívida pública e o produto.
Ocorre que a terapia keynesiana foi concebida para a economia que passou pela depressão e eliminou o excesso de dívidas, para a economia que está paralisada, mas pronta para reagir ao estímulo dos gastos governamentais. Os gastos públicos funcionam então como um motor de arranque, capaz de relançar o consumo e o investimento, numa economia devastada pelas quebras generalizadas. O aumento dos gastos públicos é questionável numa economia ainda com excesso de dívidas públicas e privadas. Consumidores sobre-endividados poupam toda renda adicional para reduzir suas dívidas. Governos sobre-endividados, que gastam mais do que arrecadam, correm o risco de perder a credibilidade e não serem mais capazes de refinanciar suas dívidas. Uma verdadeira sinuca de bico.
A aplicação do remédio keynesiano é hoje questionável. A possibilidade de que estejamos próximos de duas restrições, que eram ainda distantes nos anos 1930, exige, efetivamente, repensar os rumos do capitalismo. A primeira é o limite do tolerável - no sentido de não vir a se tornar disfuncional - da participação do Estado na economia. Em toda parte, até mesmo onde o capitalismo nunca foi seriamente questionado, como nos Estados Unidos, houve, ao longo de todo o século XX, sistemático aumento da carga fiscal e da participação do Estado na renda nacional. As respostas, tanto para a crítica econômica - da instabilidade intrínseca - quanto para a critica social - da desigualdade crônica - ao capitalismo, levaram ao aumento da participação do Estado na economia.
A segunda nova restrição é a proximidade dos limites físicos do planeta. É evidente que não será possível continuar indefinidamente com a série de ciclos de expansão do consumo material, alimentado pela turbina do crédito, até uma nova crise, que só se resolve com mais crescimento. A menos que haja uma radical mudança tecnológica, será preciso encontrar a fórmula do aumento do bem-estar numa economia estacionária. A mudança tecnológica não parece provável, pois a questão do ambiente é um caso clássico de bens públicos, que o mercado não precifica de forma correta. Pode-se dizer que os problemas do capitalismo são decorrentes do seu sucesso. As respostas desenvolvidas para aplacar as críticas, quanto à instabilidade intrínseca e à injustiça social, levaram a um extraordinário aumento do consumo material e da participação do Estado na renda.
Duas críticas, uma à direita e outra à esquerda, depois de um longo período em que ficaram abafadas pelo sucesso do capitalismo de massas, merecem ser reavaliadas. A primeira, à direita, a da chamada Escola Austríaca, é quanto ao risco do aumento crônico da intermediação do Estado na economia. Um de seus expoentes, Hayek, tem sido recentemente contraposto a Keynes na questão das políticas anticíclicas, mas esta não me parece sua contribuição relevante. É no seu papel de defensor do mercado, como insuperável transmissor de informação e estimulador da criatividade, que se pode encontrar a mais coerente e fundamentada análise dos riscos econômicos e sociais do aumento do papel do Estado.
A crítica à esquerda é quanto ao risco do consumismo. A tese da alienação consumista permeia a crítica cultural do capitalismo de massas, desde a Escola de Frankfurt, até os novos teóricos da sociedade do espetáculo.
Já há, neste curto período desde a crise de 2008, sinais de que a crítica cultural ao capitalismo será retomada. Dois livros recém-lançados questionam o capitalismo como uma troca faustiana - "How Much is Enough", de Robert e Edward Skidelsky, e "What Money Can't Buy", de Michael Sandel. Ao transformar todas as esferas da vida numa questão de cálculo financeiro, ganhamos capacidade de criar riqueza, mas, em contrapartida, nos tornamos insaciáveis. A busca desenfreada por crescimento econômico, por mais consumo material, nos levou a esquecer de por que queremos mais. Mais consumo material tornou-se um objetivo em si mesmo. Sandel sustenta que a comercialização de algumas esferas da vida corrompe seu significado. Ecos da crítica marxista à "commoditização" e à alienação capitalista. Robert e Edwar Skidelsky sustentam que o capitalismo moderno levou ao esquecimento do que o mundo clássico definiu como "The Good Life".
Será preciso superar o fosso profundo do preconceito ideológico - enraizado por um século de debate rancoroso - para encontrar a síntese dessas duas vertentes críticas e encontrar respostas para o que me parecem as duas grandes questões de nosso tempo. Primeiro, como reduzir a disparidade dos padrões de vida, sem continuar a aumentar a intermediação do Estado e restringir as liberdades individuais. Segundo, como reverter o consumismo, a insaciabilidade material, sem reduzir a percepção de bem-estar. São grandes desafios, sem dúvida. A competição capitalista parece-me imprescindível para que seja possível encontrar as respostas aos problemas criados pelo seu sucesso. Só a pluralidade das ideias, que foi capaz de desmistificar todo tipo de autoritarismo, seja o religioso, o fundamentalista ou o ideológico, e criar a cultura da automomia do indivíduo, será capaz de fazer a revisão cultural que as circunstâncias exigem, sem sacrificar as conquistas do Iluminismo.
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*André Lara Resende é economista
Fonte:  http://www.valor.com.br/cultura/2811522/os-rumos-do-capitalismo