André Lara Resende*
"O mundo moderno é muito complexo para ser reduzido a uma
fórmula, uma condenação ou uma solução. Deve ser observado sem
arroubos
de entusiasmo ou de indignação"
- Raymond Aron.
É pouco provável que antes da crise financeira de 2008 a proposta de
analisar os novos rumos do capitalismo fosse capaz de atrair público.
Desde o fim dos anos 1980, depois da queda do Muro de Berlim, o sucesso
da economia capitalista globalizada, com a incorporação da China
transformada em nova locomotiva, não deixava dúvida: as modernas
economias de mercado eram incomparáveis na sua capacidade de criar
riqueza, estimular o progresso tecnológico e garantir o crescimento.
Onde há consenso, o debate, a análise, não desperta interesse. Toda
unanimidade é burra, costumava repetir Nelson Rodrigues. Mas não só as
economias, também as convicções são cíclicas.
O termo "capitalismo" data do fim do século XIX. A expressão "o
capitalista", como referência ao dono do capital, aparece antes, já no
início do século XIX, utilizada por autores como David Ricardo e outros,
mas "o capitalismo", como um sistema de organização social e econômica,
foi cunhado por seus críticos - o mais famoso deles, evidentemente,
sendo Karl Marx, em "O Capital", de 1867. Muitos outros, anarquistas e
socialistas, como Pierre-Joseph Proudhon e Werner Sombart, utilizaram o
termo para definir uma forma de organização econômica e social, em que a
produção e a distribuição de bens e serviços são de propriedade privada
e têm fins lucrativos, ou seja, visam a acumulação de capital.
O capitalismo, em várias vertentes, é dominante no mundo ocidental,
desde o fim do feudalismo medieval. Inicialmente, sua versão primitiva,
mercantilista, baseada no comércio, foi estimulada pelas oportunidades
que se abriram com o avanço da navegação e as descobertas do Novo Mundo.
Só com a Revolução Industrial do século XIX, quando surge o mercado de
trabalho assalariado, o capitalismo adquire as características que seus
críticos do fim daquele século - Marx, sobretudo - lhe atribuem. O fato
de o termo ter sido cunhado por seus críticos lhe confere uma conotação
negativa, atenuada ao longo do tempo, mas que ainda hoje não deixa de
suscitar polêmica.
O sistema de preços determinados nos mercados, pela interação da
oferta e da demanda, é um dos elementos do capitalismo moderno, mas o
capitalismo, nas suas várias formas, não se confunde com o mercado
competitivo, que é uma abstração conceitual, um idealtipo. As economias
capitalistas observadas na prática, desde o século XIX até hoje, não são
homogêneas. Formas muito distintas de organização econômica, tanto em
termos de distanciamento do idealtipo competitivo, quanto em relação à
propriedade exclusivamente privada do capital, são qualificadas como
capitalistas. Daí os inúmeros apostos qualificativos - como mercantil,
industrial, monopolista, de Estado, financeiro, corporativo - comumente
encontrados quando se fala em capitalismo.
Ao controlar as forças cíclicas
naturais do capitalismo, pode-se
ter esclerosado grande parte
das suas virtudes
Desde sua introdução com Marx, no fim do século XIX, até o último
quarto do século XX, e a derrocada do comunismo soviético, o termo
capitalismo esteve sempre associado a uma conotação crítica. Durante
quase todo o século XX, a visão progressista dominante sustentou que o
capitalismo, embora criador de riquezas, era intrinsecamente injusto,
estimulador das desigualdades e desagregador. Por estar baseado na
exploração do trabalho, transformado em mercadoria, conduzia à luta de
classes, à deterioração da vida comunitária e do espírito público. Mas
essa nem sempre foi a visão intelectualmente dominante. A partir do fim
do século XVI, durante todo o século XVII e parte do século XVIII, a
atividade mercantil - na época ainda não chamada de capitalismo - foi
vista como um fator altamente positivo e civilizatório.
Como sustenta Albert Hirschman em "Rival Views of Market Society", de
1986, a ideia de que o interesse individual, em contraposição às
paixões, é socialmente positivo, aparece no fim do século XVI. O duque
de Rohan, em "On the Interest of Princes and States", defende a tese de
que o interesse econômico do príncipe, perseguido de forma racional, com
prudência e moderação, serve melhor ao interesse comum, ao bem de
todos, do que a sociedade deixada ao sabor das paixões, da busca da
glória pessoal, de acordo com o ideal heróico medieval. A busca,
metódica e ordenada, do interesse econômico individual passou a ser
vista como amplamente preferível às ações dirigidas pelas paixões,
violentas, desordenadas e imprevisíveis.
Na época, a tese progressista era de que o comércio, conduzido pelos
interesses individuais, em busca de ganhos materiais, serviria de freio
mais eficiente ao comportamento passional, do que o tradicional apelo à
religião, ao dever e à moral. O comércio era visto como elemento
civilizador, tanto para os senhores, como para seus súditos. "Le doux
commerce", percebido como indutor do contato entre estrangeiros,
estimulador da moderação e da probidade, entre outras virtudes.
A valorização do interesse econômico, em contraponto à paixão, ajudou
a legitimar a atividade comercial. Levou à valorização da vida privada,
que, desde o mundo clássico até a Renascença, sempre esteve relegada ao
nível mais baixo da hierarquia das atividades humanas. A valorização da
vida privada, por sua vez, permitiu o aumento do consumo pessoal, que
se transformou em elemento-chave do dinamismo capitalista da
modernidade.
A valorização intelectual da busca do interesse econômico individual
atingiu seu ápice com o Iluminismo escocês, ainda no século XVIII. O
fascínio pela a ideia da busca dos interesses indiviuais como elemento
de civilização e progresso, levou à formulação da tese da "mão
invisível" de Adam Smith. Perseguir interesses individuais seria não
apenas racional, como também a melhor forma de atender ao interesse
público. O bem-estar de todos estará mais bem atendido se perseguido de
forma indireta. Em paralelo, surge a valorização do homem médio, do
"middle rank", do pequeno comerciante, do pequeno empresário, que na
segunda metade do século XIX, quando os ventos intelectuais já tinham
mudado, são pejorativamente designados de "os burgueses" por Marx.
Os primeiros sinais da mudança dos ventos das ideias aparecem no
início do século XIX. Com a Revolução Industrial, os interesses
econômicos se tormam dominantes. Surge então o lamento nostálgico pelo
"mundo que perdemos", bem expresso por Edmund Burke: "The age of
chivalry is gone, that of sophisters, economists and calculators has
succeeded, and the glory of Europe is gone forever". Numa reversão
surprendente, a sociedade feudal, que era vista como "rude e bárbara",
sempre ameaçada pelas paixões de tiranos violentos, passou a ser vista
com nostalgia, baseada em valores como a honra, o respeito, a confiança e
a lealdade. Valores sem os quais a sociedade movida pelos interesses
individuais não poderia funcionar, mas que haviam sido erodidos por ela.
A nostalgia do mundo perdido abre caminho para os novos críticos,
mais duros, da sociedade capitalista. A crítica deixa de ser cultural,
nostálgica. Passa a denunciar a capacidade destrutiva, desagregadora,
das novas forças liberadas numa sociedade integralmente movida pelos
interesses materiais. Assim como a valorização dos interesses
individuais e do comércio atingiu seu ápice com David Hume e Adam Smith,
a mudança de rumo dos ventos intelectuais, a partir do fim do século
XVIII, culminou com Karl Marx, na segunda metade do século XIX.
Do fim do século XIX até o último quarto do século XX, a crítica
marxista foi intelectualmente predominante. A alternativa marxista ao
capitalismo - a revolução proletária e a socialização dos meios de
produção - pode ter permanecido sempre polêmica, mas a crítica marxista
influenciou de forma decisiva os rumos do capitalismo no século XX.
De forma esquemática, a crítica marxista ao capitalismo tem quatro vertentes:
1. A econômica, segundo a qual o sistema seria instável, sujeito a
crises recorrentes, até a crise final, que abriria espaço para a
alternativa socialista.
2. A social, segundo a qual o sistema seria injusto, baseado na
exploração do trabalho assalariado, levaria à concentração da renda e
seria incapaz de erradicar a pobreza, pois ela exerce o papel funcional
de "exército industrial de reserva".
3. A política, segundo a qual a democracia capitalista é uma
impostura. A alienação cultural impediria os trabalhadores de comprender
que não há interesses comuns, mas sim interesses de classes, que não
podem ser reconciliados na democracia representativa capitalista.
4. A cultural, segundo a qual o sistema levaria à alienação dos
trabalhadores em relação aos seus verdadeiros objetivos. No capitalismo,
a sociedade é consumista, egoísta e alienada.
Ao longo do século XX, a crítica marxista, sempre como referência, foi sendo gradualmente enfraquecida.
A crítica econômica foi desacreditada pela receita de John Maynard
Keynes, na "Teoria Geral da Renda e do Emprego", de 1936. Formulada
depois da Grande Crise dos anos 1930, foi refinada durante os anos 50 e
60, até culminar com a chamada "síntese macroeconômica" dos anos 80. A
fórmula para evitar as grandes flutuações macroeconômicas das economias
capitalistas havia sido encontrada. A receita era ter a dívida pública
sob controle, uma política fiscal contracíclica, uma política monetária
pautada por metas inflacionárias e a taxa de cambio flutuante. Nas
últimas décadas do século XX, consolidou-se a impressão de que os ciclos
macroeconômicos haviam sido finalmente eliminados. Uma nova era, "A
Grande Moderação", havia chegado, com a descoberta do remédio para a
instabilidade crônica da economia capitalista.
O aumento dos gastos públicos, como
recomenda a terapia keynesiana,
é questionável numa economia
ainda com excesso de dívidas
A crítica social foi aplacada pelas reformas tributárias,
trabalhistas e sociais do pós-Segunda Guerra. Em todo o mundo ocidental,
principalmente na Europa, foi criada uma rede de proteção trabalhista e
de assistência social, através do significativo aumento da participação
do Estado na economia. A economia capitalista do "Welfare State"
parecia ter respondido à crítica social do capitalismo, sem necessidade
de suprimi-lo.
A crítica política à democracia representativa capitalista foi
desmoralizada pelo autoritarismo, pela violência oficial e pela falta de
liberdades cívicas dos regimes comunistas. A começar pelo soviético,
mas também pelo dos seus satélites no Leste Europeu, assim como em Cuba,
na China e em toda parte onde o comunismo de inspiração marxista foi
instaurado.
A crítica cultural, primeiro rompeu com a ortodoxia marxista, através
da chamada Escola de Frankfurt, do Institute for Social Research,
fundado na década de XX, por onde passaram pensadores como Max
Hockheimer, Theodor Adorno, Erich From, Herbert Marcuse e, mais
recentemente, Jürgen Habermas. Depois se distancia definitivamente do
marxismo e se confunde com a crítica da modernidade, como é o caso do
filósofo polonês Lesleck Kolakowski, com "Modernity on Endless Trial"
(1990), do historiador americano Daniel J. Boorstin, com o brilhante e
pioneiro "The Image: A Guide to Pseudo-events in America" (1961), cuja
temática é retomada pelos franceses Guy Debord, em "La Société du
Spetacle" (1967) e Jean Baudrillard, em La Société de Consommation"
(1970) e "Simulacres et Simulation" (1981).
De forma progressiva, tanto intelectualmente quanto na prática, a
crítica marxista foi perdendo força, até ser completamente marginalizada
com a derrocada da União Soviética, a queda do Muro de Berlim e a
adesão da China ao capitalismo mundial. Nas duas décadas, desde o final
dos anos 1980 até a crise de 2008, o sucesso da economia globalizada
parecia ter enterrado definitivamente a crítica marxista. Todo um
conjunto de ideias, que serviu de pano de fundo para o grande debate
intelectual e para a revisão do capitalismo do século XX, parecia ter
sido relegado à história do pensamento. Uma nova visão hegemônica teria
se consolidado: o que se pode chamar de o otimismo do capitalismo
tecnológico. Os extraordinários avanços da tecnologia, estimulados pela
competição capitalista de um mundo globalizado, abririam novas e
inimagináveis possibilidades.
O quadro mudou com a crise de 2008. A "Grande Moderação", conquistada
com a aplicação da "Síntese Macroeconômica", revelou-se um equívoco. A
sofisticação dos mercados financeiros, com o desenvolvimento dos
mercados virtuais, dos chamados "derivativos", que em tese deveria ter
sido capaz de reduzir ou dispersar riscos, mostrou-se apenas mais uma
forma de exponenciar o endividamento e a alavancagem. Uma alavancagem
impermeável aos olhos, não apenas das autoridades reguladoras, mas
também aos olhos dos próprios dirigentes das instituições que a
utilizavam.
Não será possível continuar com a série de
ciclos de expansão do consumo material, alimentado
pela turbina do
crédito,
até uma nova crise
Quando a crise eclodiu, a escala das instituições financeiras
globalizadas obrigou os governos nacionais a socorrê-las. Evitou-se um
grande colapso, mas à custa de um aumento expressivo da dívida pública e
do passivo dos bancos centrais. Em alguns casos, como na Islândia e na
Grécia, o endividamento público superou o limite tolerável e levou à
quebra do Estado. Na Europa, a crise bancária está temporariamente
reprimida pelo financiamento do Banco Central Europeu de Mario Draghi
aos bancos centrais nacionais. Mas ainda ameaça o euro e a própria União
Europeia.
Os Estados Unidos, favorecidos pela condição de emissores da moeda
reserva mundial, foram capazes de reagir de forma mais radical em
relação à atuação do seu banco central. Desde 2008, o Fed expandiu de
forma agressiva seu passivo e monetizou grande parte do aumento do
endividamento público decorrente do socorro ao setor financeiro. A lição
aprendida com a crise dos anos 1930 permitiu que uma nova Grande
Depressão fosse evitada. Em contrapartida, a economia americana continua
excessivamente endividada. Parte do excesso de dívida privada foi
transferido para o setor público, mas o endividamento total, público e
privado, continua excessivo.
A depressão tem custos intoleráveis, mas, com a quebra generalizada,
elimina-se o excesso de endividamento e abre-se a porta para um novo
ciclo de expansão. Ao evitar-se a quebra, impede-se a redução,
catastrófica, mas natural, do excesso de dívidas que precisam ser
digeridas, antes que o consumo e o investimento possam retomar fôlego.
Troca-se um fim horroroso por um horror sem fim.
Diante desse impasse, o autor a ser reestudado é com certeza Joseph
Schumpeter. Economista austro-húngaro, com longa carreira na academia e
no setor público, primeiro na Europa e depois na academia americana,
Schumpeter é o grande teórico dos ciclos econômicos. Já nos anos 1930,
era crítico em relação à excessiva formalização matemática da teoria
econômica. Segundo ele, a tentativa de mimetizar as ciências naturais,
em nome do rigor metodológico, resultava na incapacidade de compreender a
economia como um fenômeno social. Defensor entusiasmado do capitalismo e
da fecundidade do espírito empresarial - do "entrepreneur" - enfatizou a
importância da "destruição criativa" do capitalismo como mola
propulsora dos avanços em todas as esferas da sociedade. É provável que,
ao se domesticar o capitalismo, ao controlar artificialmente suas
forças cíclicas naturais, pode-se ter esclerosado grande parte de suas
virtudes, de sua força criativa e renovadora.
A economia americana continua estagnada. Assim como o Japão está
estagnado há mais de 15 anos, depois do fim de uma bolha imobiliária, os
Estados Unidos também deverão ficar estagnados até que o excesso de
dívida seja digerido. A China foi capaz de sustentar altíssimas taxas de
crescimento, mesmo depois da crise de 2008. Serviu de locomotiva,
principalmente para os países exportadores de matérias-primas, como o
Brasil, e impediu que a economia mundial como um todo estagnasse, mas já
há sinais de que economia chinesa está em processo de desaceleração.
Quatro anos depois do inicio da crise, ainda não há solução à vista.
Não há nem mesmo consenso sobre como proceder. O debate, hoje, tanto na
Europa quanto nos Estados Unidos, parece estar polarizado entre o
imperativo contraditório de manter o endividamento público sob controle e
relançar o crescimento, através do estímulo keynesiano de mais gastos
públicos. A ortodoxia fiscal é defendida primordialmente pelos
republicanos nos Estados Unidos e pela Alemanha na Europa. A política
fiscal anticíclica keynesiana é defendida pelos democratas nos Estados
Unidos e pela França de François Hollande.
À primeira vista, crescer parece ser a solução. O crescimento reduz o
valor relativo das dívidas. Sem crescimento, ao contrário, as dívidas
nunca serão digeridas. A lógica sugere que não se deve tentar controlar a
dívida pública enquanto a economia está estagnada, pois o resultado é
uma política fiscal pró-cíclica, que pode levar à queda da renda e ao
agravamento da relação entre a dívida pública e o produto.
Ocorre que a terapia keynesiana foi concebida para a economia que
passou pela depressão e eliminou o excesso de dívidas, para a economia
que está paralisada, mas pronta para reagir ao estímulo dos gastos
governamentais. Os gastos públicos funcionam então como um motor de
arranque, capaz de relançar o consumo e o investimento, numa economia
devastada pelas quebras generalizadas. O aumento dos gastos públicos é
questionável numa economia ainda com excesso de dívidas públicas e
privadas. Consumidores sobre-endividados poupam toda renda adicional
para reduzir suas dívidas. Governos sobre-endividados, que gastam mais
do que arrecadam, correm o risco de perder a credibilidade e não serem
mais capazes de refinanciar suas dívidas. Uma verdadeira sinuca de bico.
A aplicação do remédio keynesiano é hoje questionável. A
possibilidade de que estejamos próximos de duas restrições, que eram
ainda distantes nos anos 1930, exige, efetivamente, repensar os rumos do
capitalismo. A primeira é o limite do tolerável - no sentido de não vir
a se tornar disfuncional - da participação do Estado na economia. Em
toda parte, até mesmo onde o capitalismo nunca foi seriamente
questionado, como nos Estados Unidos, houve, ao longo de todo o século
XX, sistemático aumento da carga fiscal e da participação do Estado na
renda nacional. As respostas, tanto para a crítica econômica - da
instabilidade intrínseca - quanto para a critica social - da
desigualdade crônica - ao capitalismo, levaram ao aumento da
participação do Estado na economia.
A segunda nova restrição é a proximidade dos limites físicos do
planeta. É evidente que não será possível continuar indefinidamente com a
série de ciclos de expansão do consumo material, alimentado pela
turbina do crédito, até uma nova crise, que só se resolve com mais
crescimento. A menos que haja uma radical mudança tecnológica, será
preciso encontrar a fórmula do aumento do bem-estar numa economia
estacionária. A mudança tecnológica não parece provável, pois a questão
do ambiente é um caso clássico de bens públicos, que o mercado não
precifica de forma correta. Pode-se dizer que os problemas do
capitalismo são decorrentes do seu sucesso. As respostas desenvolvidas
para aplacar as críticas, quanto à instabilidade intrínseca e à
injustiça social, levaram a um extraordinário aumento do consumo
material e da participação do Estado na renda.
Duas críticas, uma à direita e outra à esquerda, depois de um longo
período em que ficaram abafadas pelo sucesso do capitalismo de massas,
merecem ser reavaliadas. A primeira, à direita, a da chamada Escola
Austríaca, é quanto ao risco do aumento crônico da intermediação do
Estado na economia. Um de seus expoentes, Hayek, tem sido recentemente
contraposto a Keynes na questão das políticas anticíclicas, mas esta não
me parece sua contribuição relevante. É no seu papel de defensor do
mercado, como insuperável transmissor de informação e estimulador da
criatividade, que se pode encontrar a mais coerente e fundamentada
análise dos riscos econômicos e sociais do aumento do papel do Estado.
A crítica à esquerda é quanto ao risco do consumismo. A tese da
alienação consumista permeia a crítica cultural do capitalismo de
massas, desde a Escola de Frankfurt, até os novos teóricos da sociedade
do espetáculo.
Já há, neste curto período desde a crise de 2008, sinais de que a
crítica cultural ao capitalismo será retomada. Dois livros
recém-lançados questionam o capitalismo como uma troca faustiana - "How
Much is Enough", de Robert e Edward Skidelsky, e "What Money Can't Buy",
de Michael Sandel. Ao transformar todas as esferas da vida numa questão
de cálculo financeiro, ganhamos capacidade de criar riqueza, mas, em
contrapartida, nos tornamos insaciáveis. A busca desenfreada por
crescimento econômico, por mais consumo material, nos levou a esquecer
de por que queremos mais. Mais consumo material tornou-se um objetivo em
si mesmo. Sandel sustenta que a comercialização de algumas esferas da
vida corrompe seu significado. Ecos da crítica marxista à
"commoditização" e à alienação capitalista. Robert e Edwar Skidelsky
sustentam que o capitalismo moderno levou ao esquecimento do que o mundo
clássico definiu como "The Good Life".
Será preciso superar o fosso profundo do preconceito ideológico -
enraizado por um século de debate rancoroso - para encontrar a síntese
dessas duas vertentes críticas e encontrar respostas para o que me
parecem as duas grandes questões de nosso tempo. Primeiro, como reduzir a
disparidade dos padrões de vida, sem continuar a aumentar a
intermediação do Estado e restringir as liberdades individuais. Segundo,
como reverter o consumismo, a insaciabilidade material, sem reduzir a
percepção de bem-estar. São grandes desafios, sem dúvida. A competição
capitalista parece-me imprescindível para que seja possível encontrar as
respostas aos problemas criados pelo seu sucesso. Só a pluralidade das
ideias, que foi capaz de desmistificar todo tipo de autoritarismo, seja o
religioso, o fundamentalista ou o ideológico, e criar a cultura da
automomia do indivíduo, será capaz de fazer a revisão cultural que as
circunstâncias exigem, sem sacrificar as conquistas do Iluminismo.
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*André Lara Resende é economista
Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/2811522/os-rumos-do-capitalismo