quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Fé, esperança e caridade segundo João Paulo I



Minha mãe dizia-me, quando era já grandinho: Em pequeno foste muito doente; tive de te levar de médico em médico, e velar-te noites inteiras; acreditas? Como poderia eu dizer: — Mãezinha, não te acredito? Sim, acredito-te, acredito no que me dizes, mas acredito especialmente em ti. Assim é na fé. Não se trata unicamente de crer nas coisas que Deus revelou mas n'Ele, que merece a nossa fé, que tanto nos amou e tanto fez por amor de nós.
Difícil é também aceitar algumas verdades, porque as verdades da fé são de duas espécies: algumas agradáveis, outras desagradáveis ao nosso espírito. (...)
Procuremos melhorar a Igreja, tornando-nos melhores. Cada um de nós, toda a Igreja, poderia rezar a oração que eu costumo rezar: Senhor, aceita-me como sou, com os meus defeitos, com as minhas faltas, mas faz que me torne como tu desejas. (...)
13.9.1978

Esperança

Têm surgido de vez em quando no decurso dos séculos afirmações e tendências de cristãos demasiado pessimistas quanto ao homem. Mas tais afirmações foram desaprovadas pela Igreja e esquecidas graças a uma falange de santos alegres e ativos, graças ao humanismo cristão, aos mestres de ascética que Saint-Beuve chamou "les doux" e graças ainda a uma teologia compreensiva. São Tomás de Aquino, por exemplo, coloca entre as virtudes a iucunditas ou seja a capacidade de converter num sorriso alegre — na medida e no modo conveniente — as coisas ouvidas e vistas. Jucundo deste modo — explicava aos meus alunos — foi aquele pedreiro irlandês, que se precipitou do andaime e quebrou as pernas. Levado ao hospital, vieram o médico e a Irmã enfermeira. "Pobrezinho — disse esta última feriu-se muito caindo". Replicou o ferido: "Madre, não foi precisamente caindo, mas chegando ao chão é que me feri". Declarando ser virtude gracejar e fazer sorrir, São Tomás encontrava-se de acordo com a "alegre nova" pregada por Cristo, com a hilaritas recomendada por Santo Agostinho. Vencia o pessimismo, revestia de alegria a vida cristã, convidava-nos a tomar ânimo também com os gozos sãos e puros que se nos deparam no caminho".
Quando eu era rapaz, li alguma coisa sobre Andrew Carnegie, escocês, que imigrou com os pais para a América e chegou pouco a pouco a ser um dos maiores ricaços do mundo. Não era católico, mas impressionou-me que falasse com insistência das alegrias genuínas e autênticas da sua vida.
"Nasci na miséria — dizia —, mas não trocaria as recordações da minha meninice com as dos filhos dos milionários. Que sabem eles das alegrias familiares, da terna figura da mãe que junta em si os cargos de encarregada de crianças, de lavadeira, de cozinheira, de mestra, de anjo e de santa?". Muito novo empregara-se numa fiação de Pittsburg com 56 míseras liras mensais de salário. Uma tarde, em vez de lhe dar logo a paga, o tesoureiro disse-lhe que esperasse. Carnegie tremia: "Vão-me agora despedir". Pelo contrário, depois de pagar aos outros, o tesoureiro disse-lhe: "Andrew, tenho reparado atentamente no seu trabalho; concluí que vale mais que o dos outros. Subo-lhe o salário para 67 liras". Carnegie de corrida voltou a casa, onde a mãe chorou de contentamento devido à promoção do filho.
"Falais de milionários — dizia Carnegie muitos anos depois —, todos os meus milhões colocados juntos não me deram nunca a alegria daquelas 11 liras de aumento". Certamente, estas alegrias, ainda que boas e animadoras, não têm o valor todo; são alguma coisa, não são tudo; servem de meio, não são o fim último; não duram sempre, mas só breve tempo. "Delas usem os cristãos — escrevia São Paulo —, mas como se delas não usassem, porque a aparência deste mundo passa" (Cfr. 1 Cor. 7, 31). Cristo já dissera: Procurai primeiro que tudo o reino de Deus (Mt. 6, 33).
20.9.1978
 

Caridade

Numa palavra: amar significa viajar, correr com o coração para o objeto amado. Diz a Imitação de Cristo: quem ama "currit, volat, laetatur": corre, voa e alegra-se (Imitação de Cristo, 1. III, c. V, n. 4). Amar a Deus é portanto um viajar com o coração para Deus. Viagem belíssima, embora comporte por vezes sacrifícios. Mas estes não nos devem fazer parar. Jesus está na cruz: queres beijá-l'O? Não o podes fazer sem te debruçares sobre a cruz e deixar que te fira algum espinho da coroa, que está na cabeça do Senhor (Cfr. Sales, Oeuvres, Annecy, t. XXI. p. 153). Não podes fazer a figura do bom São Pedro, que foi valente em gritar "Viva Jesus" no monte Tabor, onde havia alegria, mas não deixou sequer que o vissem ao lado de Jesus no monte Calvário, onde havia risco e dor (Ibidem:. t. XV, p. 140). O amor a Deus é também viagem misteriosa: isto é, eu não parto se Deus não toma primeiro a iniciativa. (...)
Com todo o coração. Faço notar, aqui, o adjetivo "todo". O totalitarismo, em política, é feio. Na religião, pelo contrário, um totalitarismo nosso, quanto a Deus, está muitíssimo bem. Foi escrito: Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças. Estes mandamentos, que hoje te imponho, serão gravados no teu coração. Ensiná-los-ás aos teus filhos e meditá-los-ás quer em tua casa, quer em viagem, quer ao deitar-te ou ao levantar-te. Atá-los-ás, como símbolo, no teu braço, e usá-los-ás como um frontal entre os teus olhos. Escrevê-los-ás sobre os pilares da tua casa e sobre as tuas portas(Deut. 6, 5-9).
Aquele "todo", repetido e levado à prática com tanta insistência, é com toda a verdade a bandeira do maximalismo cristão. E é justo: Deus é demasiado grande, demasiado merece de nós, para que baste deitar-lhe, como a um pobre Lázaro, unicamente algumas migalhas do nosso tempo e do nosso coração. bem infinito e será a nossa felicidade eterna: dinheiro, prazeres e felicidades deste mundo, em comparação com Ele, são apenas fragmentos de bem e momentos fugidios de felicidade. Não seria acertado dar muito de nós a estas coisas e dar pouco a Jesus.
Acima de todas as coisas. Agora entra-se numa comparação direta entre Deus e o homem, entre Deus e o mundo. Não seria justo dizer: "Ou Deus ou o homem". Deve-se amar "não só a Deus mas também o homem"; este último, porém, nunca mais do que Deus ou contra Deus ou tanto como Deus. Por outras palavras: O amor de Deus é certamente dominador, mas não exclusivo. (...)
E por vosso amor amo o meu próximo. Estamos aqui diante de dois amores que são "irmãos gémeos" e inseparáveis. Algumas pessoas é fácil amá-las. Outras, é difícil: não nos são simpáticas, ofenderam-nos e fizeram-nos mal. Só se amo Deus a sério, chego a amá-las a elas, como filhas de Deus e porque Deus mo pede. Jesus fixou também como há de o próximo ser amado: quer dizer, não só com o sentimento, mas com obras. Este é o modo, disse: Perguntar-vos-ei: Tinha fome, e vós destes-me de comer quando assim estava faminto? Visitastes-me quando estava doente? (Cfr. Mt. 25, 34 ss.). O catecismo traduz estas e outras palavras da Bíblia no duplo catálogo das sete obras de misericórdia corporais e sete espirituais. O catálogo não é completo e convinha atualizá-lo. Entre os famintos, por exemplo, hoje não se trata só deste ou aquele indivíduo; são povos inteiros. Todos nos lembramos das notáveis palavras do Papa Paulo VI: "Os povos da fome dirigem-se hoje de modo dramático aos povos da opulência. A Igreja estremece perante este grito de angústia e convida cada um a responder com amor ao apelo do seu irmão" (Populorum Progressio, 3). Neste ponto, à caridade junta-se a justiça, porque — diz ainda Paulo VI — "a propriedade privada não constitui para ninguém um direito incondicional e absoluto. Ninguém tem direito de reservar para seu uso exclusivo aquilo que é supérfluo, quando a outros falta o necessário" (Ibid., 23). Por conseguinte, "torna-se escândalo intolerável... qualquer recurso exagerado aos armamentos" (Ibid., 53).
À luz destas vigorosas expressões vê-se quanto indivíduos e povos estão ainda longe de amar os outros "como a si mesmos", que é mandamento de Jesus.
Outro mandamento: perdôo as ofensas recebidas. A este perdão quase parece que o Senhor dá precedência sobre o culto: Se fores, portanto, apresentar uma oferta sobre o altar e ali te recordares que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua oferta diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão; depois, volta para apresentar a tua oferta (Mt. 5, 23-24).
As últimas palavras da oração são estas: ó Senhor, ame-vos eu cada vez mais. Também aqui há obediência a um mandamento de Deus, que estabeleceu no nosso coração a sede do progresso. Das palafitas, das cavernas e das primeiras cabanas passámos às casas, aos palácios e aos arranha-céus; das viagens a pé, e sobre o dorso de mula ou de camelo, aos carros, aos comboios e aos aviões. E deseja-se progredir ainda com meios cada vez mais rápidos, atingindo metas mais e mais altas: Mas amar a Deus — já o vimos - é também uma viagem: Deus quer que ela seja cada vez mais decidida e perfeita.
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João Paulo I
© SNPC | 26.08.12

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