ENTREVISTA
Simon Blackburn, filósofo
O
britânico Simon Blackburn é um dos filósofos mais prestigiados da
contemporaneidade. Especialista em filosofia da mente, da linguagem e da
psicologia, tem se destacado pelos esforços no sentido de popularizar a
disciplina.
Palestrante do Fronteiras do Pensamento nesta segunda-feira, na Capital, Blackburn se dedica à tradicional busca filosófica pela noção de verdade, investigando como se estrutura a percepção da realidade. Ao entender que um critério confiável de verdade pode ser encontrado no sentido das proposições construídas por meio da linguagem, defende que a apreensão do mundo pelo indivíduo e a formação de crenças impacta em hábitos, emoções, sentimentos e atitudes que se projetam como fatos dados e reais.
A originalidade de seu pensamento é reconhecida pelas teorias que desenvolveu a respeito do neo-humanismo e do quase-realismo. Blackburn elaborou esses conceitos ao se dedicar a categorias com as quais a filosofia se debate ao longo da história, como verdade, razão e ética, refletindo sobre o modo como são formados percepções, valores e juízos. Para Blackburn, o neo-humano é o sujeito capaz de situar ideias e crenças entre a realidade e a subjetividade. Dito de outra maneira, entre o realismo e o antirrealismo, a posição quase-realista “explica e justifica a aparência realista do pensamento moral cotidiano”.
Blackburn não se lança por inteiro ao relativismo que marca as teorias pós-modernas. É crítico daquilo que chama de “vale-tudo”, ao questionar as tradicionais defesas da verdade como narrativa, dos fatos como sentidos elásticos e do mundo como texto aberto. O 11 de Setembro, por exemplo, teria revelado que a temporada de defesa dos pluralismos assistia ao retorno justamente de ideias absolutas, reabilitando a verdade, a razão e a objetividade. Com tal posição, Blackburn retomou a longa disputa filosófica entre absolutistas (crentes na verdade) e relativistas (inclinados ao ceticismo).
– A academia se tornou menos aberta aos pluralismos descontraídos – comenta.
Blackburn é membro da American Academy of Arts and Sciences e vice-presidente da British Humanist Association. A seguir, um resumo da entrevista concedida por e-mail pelo filósofo :
Zero Hora – Na contemporaneidade, marcada pelo fim dos grandes discursos e narrativas, qual é o papel da filosofia? E que bases ela encontraria para se sustentar?
Simon Blackburn – Há tradições da filosofia que se dirigem aos grandes discursos e narrativas, no sentido de grandes visões da história, da política e da humanidade. A metafísica do cristianismo ou as tradições do século 19, de Hegel e Marx, são talvez os exemplos mais importantes, embora a tradição derive de Platão. Mas a filosofia tem a tradição alternativa de investigação, muito menor, mais detalhada e mais científica: Aristóteles, digamos, em oposição a Platão. Essa tradição pode evitar a questão de uma base para a existência, substituindo-a por determinadas soluções para problemas particulares sobre a existência que os seres humanos enfrentam em momentos diferentes.
ZH – Nesse sentido, seria possível dizer que a filosofia teria uma tendência a se popularizar?
Blackburn – Na medida em que o cristianismo (que é uma espécie de platonismo) e o marxismo se tornaram populares, isso é claramente possível. Mas, com a tradição de pequena escala que eu mencionei acima, não é provável que seja simples o suficiente para ser popular.
ZH – A busca por um critério confiável para a noção de verdade acompanha a trajetória da filosofia. O senhor acredita que ele poderia ser fundamentado na linguagem? Como verdade e linguagem podem ser relacionadas?
Blackburn – Uma coisa importante a dizer sobre a verdade é que, depois de compreender o significado de uma proposição, você também entende o que seria necessário para torná-la realidade. Isso é explorado de diversas maneiras na filosofia contemporânea. Ao mesmo tempo, é emitido um princípio de “verificação”, segundo o qual você só entende uma proposição se sabe por qual método pode verificá-la. Essa compreensão é muito próxima da experiência, mas o que faria uma proposição verdadeira pode ser mais frágil do que isso. Ainda assim, é a chave para entender a consequência ou o significado de uma frase. Essa é uma instrução muito boa para levar as pessoas a confrontar o verdadeiro significado de seus comentários.
ZH – Ao tratar da verdade, como situar a disputa filosófica dos pensamentos absolutista (crentes na verdade) e relativista (inclinados ao ceticismo)?
Blackburn – William James (psicólogo e filósofo norte-americano considerado o pai do pragmatismo) pensou que isso era um choque de temperamentos tanto quanto um confronto de argumentos. Ele considerava que o temperamento absolutista era autoritário, por ansiar respostas definitivas e certezas, enquanto que o relativista é mais tolerante, de mente aberta, pragmático e flexível. Nesse sentido, o temperamento relativista parece mais atraente, mas pode se tornar insosso.
ZH – Com o 11 de Setembro, houve um sinal de que, após uma temporada de defesa dos pluralismos e relativismos, assistia-se ao retorno do peso da verdade, da razão e da objetividade?
Blackburn – Sim, acho que o 11 de Setembro fez a academia dos EUA, especialmente, perceber que o tipo de “vale-tudo” do pós-modernismo não era suficiente. Qualquer civilização precisa de valores que tenham como objetivo definir seu povo, especialmente os jovens.
ZH – De que forma os conceitos sobre neo-humanismo e quase-realismo podem ajudar a compreender como se estrutura a percepção e a apreensão da realidade pelo indivíduo?
Blackburn – Bem, essa é uma questão muito grande. O debate entre realistas e idealistas sempre foi sobre o quanto de nosso mundo simplesmente recebemos e representamos e o quanto ativamente selecionamos, construímos e interpretamos. Um vê a mente como essencialmente passiva ou receptiva, outro, como atuante e construtiva. Minha própria visão (a do neo-humanismo e do quase-realismo) é de que precisamos de uma mistura de ambos e que é tolice escolher um lado em total oposição ao outro.
ZH – O senhor já abordou a obra de Platão à luz da política externa dos EUA. A partir desse viés, de que modo pode-se analisar o movimento neoconservador dos EUA e seu direcionamento não apenas na política externa agressiva, mas também com suas ações autoritárias?
Blackburn – Quando escrevi o meu pequeno livro sobre A República, de Platão, eu estava consciente do movimento neoconservador, é claro. E Platão pode ser usado como uma figura representativa para a política conservadora, elitista e até mesmo agressiva. No entanto, acho que é uma leitura errada dele. Temos de lembrar que os líderes ou governantes da cidade ideal de Platão são, acima de tudo, educados. Eles são os membros excepcionalmente capazes da sociedade e estudaram matemática por 10 anos e dialética ou lógica por cinco. A ideia de um George W. Bush ou Dick Cheney (respectivamente presidente e vice-presidente dos EUA entre 2001 e 2009) como uma versão moderna de um dos guardiões de Platão é completamente ridícula. Platão também dedicou algum tempo em A República a advertir as pessoas a se afastarem dos homens glamourizados pela ação e pelo espírito, ao passo que é exatamente assim que os neoconservadores gostavam de retratar-se, posando com estrelas de cinema e fazendo retratos em porta-aviões. Platão teria, justamente, achado tudo isso repugnante.
ZH – É possível acreditarmos na possibilidade de padrões éticos universalmente aceitos?
Blackburn – Bem, suponho que isso possa significar duas coisas. Uma delas é se existem normas a que cada forma de vida humana tem de se conformar e que são, portanto, realizadas universalmente. Os antropólogos geralmente duvidam disso: há variações extraordinárias nas diferentes formas de vida das pessoas e que incluem o que elas valorizam e admiram por meio do comportamento. Mas pode-se perguntar se há padrões a que todas as sociedades devam se inscrever e se o fazem ou não. Nesse sentido, devo dizer que objetivar a paz, a não guerra, ajudar os necessitados, alimentar as crianças, dar voz política para todos e muitos outros valores são universais simplesmente no sentido de que, se as pessoas não aderiram a eles, seria melhor se o fizessem. Algumas vezes é sugerido que esse tipo de universalismo liberal é uma mera expressão dos valores modernos ou ocidentais e que não devem ser impostos ao resto do mundo. Concordo que não devem ser impostos – as pessoas têm de encontrar os seus próprios valores –, mas eu não acho que haja algo “meramente” moderno ou ocidental nisso, porque acredito que marca uma diretriz universal para as melhores possibilidades de vida para tantas pessoas quanto for possível.
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francisco.dalcol@zerohora.com.br
FRANCISCO DALCOL
Palestrante do Fronteiras do Pensamento nesta segunda-feira, na Capital, Blackburn se dedica à tradicional busca filosófica pela noção de verdade, investigando como se estrutura a percepção da realidade. Ao entender que um critério confiável de verdade pode ser encontrado no sentido das proposições construídas por meio da linguagem, defende que a apreensão do mundo pelo indivíduo e a formação de crenças impacta em hábitos, emoções, sentimentos e atitudes que se projetam como fatos dados e reais.
A originalidade de seu pensamento é reconhecida pelas teorias que desenvolveu a respeito do neo-humanismo e do quase-realismo. Blackburn elaborou esses conceitos ao se dedicar a categorias com as quais a filosofia se debate ao longo da história, como verdade, razão e ética, refletindo sobre o modo como são formados percepções, valores e juízos. Para Blackburn, o neo-humano é o sujeito capaz de situar ideias e crenças entre a realidade e a subjetividade. Dito de outra maneira, entre o realismo e o antirrealismo, a posição quase-realista “explica e justifica a aparência realista do pensamento moral cotidiano”.
Blackburn não se lança por inteiro ao relativismo que marca as teorias pós-modernas. É crítico daquilo que chama de “vale-tudo”, ao questionar as tradicionais defesas da verdade como narrativa, dos fatos como sentidos elásticos e do mundo como texto aberto. O 11 de Setembro, por exemplo, teria revelado que a temporada de defesa dos pluralismos assistia ao retorno justamente de ideias absolutas, reabilitando a verdade, a razão e a objetividade. Com tal posição, Blackburn retomou a longa disputa filosófica entre absolutistas (crentes na verdade) e relativistas (inclinados ao ceticismo).
– A academia se tornou menos aberta aos pluralismos descontraídos – comenta.
Blackburn é membro da American Academy of Arts and Sciences e vice-presidente da British Humanist Association. A seguir, um resumo da entrevista concedida por e-mail pelo filósofo :
Zero Hora – Na contemporaneidade, marcada pelo fim dos grandes discursos e narrativas, qual é o papel da filosofia? E que bases ela encontraria para se sustentar?
Simon Blackburn – Há tradições da filosofia que se dirigem aos grandes discursos e narrativas, no sentido de grandes visões da história, da política e da humanidade. A metafísica do cristianismo ou as tradições do século 19, de Hegel e Marx, são talvez os exemplos mais importantes, embora a tradição derive de Platão. Mas a filosofia tem a tradição alternativa de investigação, muito menor, mais detalhada e mais científica: Aristóteles, digamos, em oposição a Platão. Essa tradição pode evitar a questão de uma base para a existência, substituindo-a por determinadas soluções para problemas particulares sobre a existência que os seres humanos enfrentam em momentos diferentes.
ZH – Nesse sentido, seria possível dizer que a filosofia teria uma tendência a se popularizar?
Blackburn – Na medida em que o cristianismo (que é uma espécie de platonismo) e o marxismo se tornaram populares, isso é claramente possível. Mas, com a tradição de pequena escala que eu mencionei acima, não é provável que seja simples o suficiente para ser popular.
ZH – A busca por um critério confiável para a noção de verdade acompanha a trajetória da filosofia. O senhor acredita que ele poderia ser fundamentado na linguagem? Como verdade e linguagem podem ser relacionadas?
Blackburn – Uma coisa importante a dizer sobre a verdade é que, depois de compreender o significado de uma proposição, você também entende o que seria necessário para torná-la realidade. Isso é explorado de diversas maneiras na filosofia contemporânea. Ao mesmo tempo, é emitido um princípio de “verificação”, segundo o qual você só entende uma proposição se sabe por qual método pode verificá-la. Essa compreensão é muito próxima da experiência, mas o que faria uma proposição verdadeira pode ser mais frágil do que isso. Ainda assim, é a chave para entender a consequência ou o significado de uma frase. Essa é uma instrução muito boa para levar as pessoas a confrontar o verdadeiro significado de seus comentários.
ZH – Ao tratar da verdade, como situar a disputa filosófica dos pensamentos absolutista (crentes na verdade) e relativista (inclinados ao ceticismo)?
Blackburn – William James (psicólogo e filósofo norte-americano considerado o pai do pragmatismo) pensou que isso era um choque de temperamentos tanto quanto um confronto de argumentos. Ele considerava que o temperamento absolutista era autoritário, por ansiar respostas definitivas e certezas, enquanto que o relativista é mais tolerante, de mente aberta, pragmático e flexível. Nesse sentido, o temperamento relativista parece mais atraente, mas pode se tornar insosso.
ZH – Com o 11 de Setembro, houve um sinal de que, após uma temporada de defesa dos pluralismos e relativismos, assistia-se ao retorno do peso da verdade, da razão e da objetividade?
Blackburn – Sim, acho que o 11 de Setembro fez a academia dos EUA, especialmente, perceber que o tipo de “vale-tudo” do pós-modernismo não era suficiente. Qualquer civilização precisa de valores que tenham como objetivo definir seu povo, especialmente os jovens.
ZH – De que forma os conceitos sobre neo-humanismo e quase-realismo podem ajudar a compreender como se estrutura a percepção e a apreensão da realidade pelo indivíduo?
Blackburn – Bem, essa é uma questão muito grande. O debate entre realistas e idealistas sempre foi sobre o quanto de nosso mundo simplesmente recebemos e representamos e o quanto ativamente selecionamos, construímos e interpretamos. Um vê a mente como essencialmente passiva ou receptiva, outro, como atuante e construtiva. Minha própria visão (a do neo-humanismo e do quase-realismo) é de que precisamos de uma mistura de ambos e que é tolice escolher um lado em total oposição ao outro.
ZH – O senhor já abordou a obra de Platão à luz da política externa dos EUA. A partir desse viés, de que modo pode-se analisar o movimento neoconservador dos EUA e seu direcionamento não apenas na política externa agressiva, mas também com suas ações autoritárias?
Blackburn – Quando escrevi o meu pequeno livro sobre A República, de Platão, eu estava consciente do movimento neoconservador, é claro. E Platão pode ser usado como uma figura representativa para a política conservadora, elitista e até mesmo agressiva. No entanto, acho que é uma leitura errada dele. Temos de lembrar que os líderes ou governantes da cidade ideal de Platão são, acima de tudo, educados. Eles são os membros excepcionalmente capazes da sociedade e estudaram matemática por 10 anos e dialética ou lógica por cinco. A ideia de um George W. Bush ou Dick Cheney (respectivamente presidente e vice-presidente dos EUA entre 2001 e 2009) como uma versão moderna de um dos guardiões de Platão é completamente ridícula. Platão também dedicou algum tempo em A República a advertir as pessoas a se afastarem dos homens glamourizados pela ação e pelo espírito, ao passo que é exatamente assim que os neoconservadores gostavam de retratar-se, posando com estrelas de cinema e fazendo retratos em porta-aviões. Platão teria, justamente, achado tudo isso repugnante.
ZH – É possível acreditarmos na possibilidade de padrões éticos universalmente aceitos?
Blackburn – Bem, suponho que isso possa significar duas coisas. Uma delas é se existem normas a que cada forma de vida humana tem de se conformar e que são, portanto, realizadas universalmente. Os antropólogos geralmente duvidam disso: há variações extraordinárias nas diferentes formas de vida das pessoas e que incluem o que elas valorizam e admiram por meio do comportamento. Mas pode-se perguntar se há padrões a que todas as sociedades devam se inscrever e se o fazem ou não. Nesse sentido, devo dizer que objetivar a paz, a não guerra, ajudar os necessitados, alimentar as crianças, dar voz política para todos e muitos outros valores são universais simplesmente no sentido de que, se as pessoas não aderiram a eles, seria melhor se o fizessem. Algumas vezes é sugerido que esse tipo de universalismo liberal é uma mera expressão dos valores modernos ou ocidentais e que não devem ser impostos ao resto do mundo. Concordo que não devem ser impostos – as pessoas têm de encontrar os seus próprios valores –, mas eu não acho que haja algo “meramente” moderno ou ocidental nisso, porque acredito que marca uma diretriz universal para as melhores possibilidades de vida para tantas pessoas quanto for possível.
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francisco.dalcol@zerohora.com.br
FRANCISCO DALCOL
Fonte: ZH on line, 18/08/2012
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