terça-feira, 31 de outubro de 2017

A felicidade de cada um

Lya Luft Lya Luft*

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No curso da vida, a gente faz umas descobertas engraçadas sobre si mesmo

Somos, entre tantas coisas – animais predadores, meio obtusos, às vezes gloriosos –, uns eternos buscadores. Deve ser uma das molas de nossa vida, mais até do que sexo e poder. Essa busca meio indeterminada que nos faz sair da cama, tomar café, ver notícias no jornal e na TV (porque nos julgamos de ferro), ir para o trabalho ou a escola ou simplesmente ficar em casa. Buscamos eternamente, eu sei, essa estranhíssima coisa chamada felicidade: tão diferente em diferentes fases e até diversos lugares.
Menina, felicidade era segurança amorosa: os pais ali perto, o irmãozinho, as funcionárias que cuidavam de nós, o jardineiro conversando com plantas, a chuva na vidraça, o vento nas árvores, a lareira ou a perspectiva da praia, um dia de feriado para não ter de ir à escola (não, não fui boa aluna...). Sobretudo, estar ali em nossa casa, no meu quarto, a cama embutida em prateleiras cheias dos meus melhores amigos. Décadas depois, alguém me contou que ao visitar meu pai, em  seu escritório em casa, e admirar as prateleiras de livros forrando as paredes, meu pai fez um gesto simples e disse: "Esses  são os meus amigos".

Sem muito programar, que sou mais de impulsos, comecei a aprender a arte de recusar.

No curso da vida, a gente faz umas descobertas engraçadas sobre si mesmo, como certa vez quando, falando com jornalistas antes de uma palestra em São Paulo, um deles, muito jovem, disparou a pergunta que nunca tinham me feito: "Qual é o seu sonho de consumo?". Parei, sorri, surpreendida, e sem precisar pensar respondi: "Meu sonho de consumo? Ficar quieta". Era uma longa fase de muitas viagens para palestras e lançamentos. Era bom curtir o afeto dos leitores, era bom promover um livro.
No avião, voltando para casa, fui monologando coisas como: "Ora, se eu quero mesmo ficar mais quieta, por que não faço isso? Por que não diminuo esse giro de viagens e encontros e não curto mais o sossego que me falta?". Sem muito programar, que sou mais de impulsos, comecei a aprender a arte de recusar – nada fácil. Os convites mais simpáticos (quase todos são assim) tiveram de ser reduzidos, e como fazer essa seleção? Sempre havia uma razão verdadeira: estar preparando um novo livro, atender alguma coisa na família ou simplesmente estar cansada. "E se um dia não te convidarem para mais nada?". Bom, aí eu também não vou gostar nada! O jeito é dosar.
Fiquei bem mais feliz assim. Certa vez, perguntaram para minha filha onde seria mais fácil encontrar a mãe, e ela respondeu: "Em casa". Há quem estranhe: "Você quase não tem vida social, não frequenta os mais novos restaurantes, nem clubes, nem grupos...". Nada contra, mas para mim foi uma conquista. Uma obediência ao meu mais antigo e honrado desejo. Quando estou nessa falsa vagabundagem lírica, talvez de livro na mão até sem ler nem pensar nada especial, é que as coisas "se fazem" dentro de mim: futuros personagens, tramas, poemas, ou só encantamentos fugazes. Pode ser que nesta fase da vida eu mereça estar assim, com família, amigos, cachorrinhas, paisagem linda, o refúgio na Serra, música, livros, e tantos ótimos programas que – apesar dos protestos – a boa televisão oferece: agora, um concerto de Mozart para piano, tocado na TV por um Barenboim jovem.
(E ainda por cima, neste momento, começa a chover mansinho.)
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* Escritora
Fonte:  https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/lya-luft/noticia/2017/09/a-felicidade-de-cada-um-cj86l43i700i301pdn7996ju1.html
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