quarta-feira, 25 de outubro de 2017

E pronto

António Lobo Antunes*

Vamos tomar este comprimidinho, vamos ver a nossa temperatura, vamos beber, excepcionalmente, um golinho de água. Isto depois de me cegarem com a lâmpada do tecto, no interior da qual o insecto que eu era se agitava

Os olhos das pessoas nas camas dos hospitais, que gritam em silêncio o tempo todo, ensurdecendo-me. Quantas vezes, ao ir-me embora, tinha a certeza de sair dali a gritar também. Claro que nas alturas em que fui internado estou certo que os meus olhos não se calavam igualmente mesmo que tentasse sorrir. Sobretudo à noite, quando ficava sozinho, acompanhado pelo rectângulo mais claro da janela, a certeza que a noite lá fora me trazia apenas tristeza e sofrimento. Depois, de repente, acendiam as luzes, mexiam em mim, injectavam-me ou davam-me remédios a engolir, saíam outra vez e eu estupefacto que fossem capazes de andar, eu que nem sequer conseguia carregar na campainha, ao lado da almofada, que me diziam servir para chamar os enfermeiros, os quais se dirigiam quase sempre a mim na primeira pessoa do plural, cheios de diminutivos surpreendentes:

– Vamos tomar este comprimidinho, vamos ver a nossa temperatura, vamos beber, excepcionalmente, um golinho de água.

Isto depois de me cegarem com a lâmpada do tecto, no interior da qual o insecto que eu era se agitava, movendo as pobres patas filiformes, sem entender, arrepiado, aflito. A claridade desaparecia, as solas diminuíam no corredor, eis a janela de novo, eis o silêncio, eis o que designam de noite. Tão escura a noite, tão indecifrável, tão plena de ameaças confusas, terríveis, contra as quais as minhas pobres mãos quietas nada podiam, os meus joelhos agudos nada podiam, as frágeis membranas das minhas pálpebras nada podiam. 
De vez em quando uma torre no corredor, um telefone longíssimo, vagos sons dispersos, o colchão tão duro na minha coluna, suponho que pernas, lá em baixo, que considerava minhas e não as sentia. Sentia, quando muito, um ténue zumbido à minha roda mas de quem, mas de quê, meio submerso em trevas fixas, opacas. Sentia os meus dentes, incapazes de morderem, de morderem-se, a pasta sem forma da língua, feita de areia e lama. O ar entrava e saía, numa espécie de assobio vago, no meu corpo esburacado. Não pensava em ninguém. Não pensava fosse no que fosse: encontrava-me dentro de um pobre verme inerte, restos de eu que não existiam já. 

E tentando dizer 

– Eu 

que som me chegaria? Se a morte é isto não é difícil nem estranha, apenas a continuação de uma queda sem fim apesar de imóvel. De tempos a tempos vagos rostos inexplicáveis, vagos gestos, vagas palavras, gestos e palavras que não me pertenciam: o que me pertencia era um vazio gorduroso que parecia pulsar, uma ausência mas de quê, nem sequer uma dor: uma ausência absoluta, sem motivo, sem nexo, que me não dizia respeito, dizia respeito ao escuro que me rodeava, entrando em mim e afastando-se de mim, eu que sem mim possuía. Tudo tão distante agora, tão alheio, tão vago. Nome? Se me perguntassem, por exemplo, o nome, não compreendia a pergunta. O que significa um nome, o que quer dizer um nome, que coisa é um nome, o que se faz com um nome, eu que nem me interrogava acerca do nome consoante não me interrogava acerca fosse do que fosse: o que são interrogações, o que são respostas? Estamos já depois disso, não descubro os nexos de nada, não penso, não questiono, aceito se isto é aceitar, se isto é continuar vivo ainda. Continuar vivo? Qual o sentido de vivo, o que quer dizer? Vivo que palavra estranha, mais que estranha: impossível. A luz de novo, que aceito sem aceitar nem rejeitar: sou um objecto ou nem sequer um objecto, algo que deixou de haver. Que diferença faz que haja ou não é uma pergunta que não formulo porque não formulo perguntas nem me interessam perguntas, afasto-me apenas, quer dizer não me afasto sequer, não sou, nunca fui, já não grito. Nenhum grito. NENHUM GRITO. Nenhum grito mas também nenhuma paz. Um restinho de areia, um restinho de pó. Não: nem areia, nem pó, uma espécie de entrada numa espécie de espaço e não entrada nem espaço, somente uma queda invisível, uma espécie de queda imóvel numa espécie de ausência que, por sua vez, desaparece também. Agora posso levantar-me e partir mau grado não ser eu quem se levanta e parte. Quem é? Não sei, não tenho curiosidade em saber. NÃO TENHO NADA. 
E o não ter nada desvanece-se também. Fica a janela apenas. E a noite que cessa. 
Só queria, só queria, só queria, só queria, só que queri, só quer, só que, só qu, só q, só, s
 -----------------
* Escritor e psiquiatra português.
Crónica publicada na VISÃO 1284 de 12 de outubro
Fonte:  http://visao.sapo.pt/opiniao/opiniao_antonioloboantunes/2017-10-19-E-pronto

Nenhum comentário:

Postar um comentário