sábado, 31 de março de 2018

Ressurreição como uma revolução na evolução

Resultado de imagem para imagem de ressurreição

31/03/2018
Na entrevista a seguir, concedida a João Vitor Santos,por e-mail à IHU On-Line de 27 de março de 2018 Boff a explica que “a Ressurreição é a concretização da utopia pregada por Jesus, o Reino de Deus que implica a superação da morte e do morrer”. Mas como compreender isso, relegando provas (científicas) concretas? É aí que, segundo o teólogo, a narrativa mítica se inscreve como alternativa. “O melhor caminho é elaborar narrativas e projetar mitos que, no sentido moderno do termo, é um meio de expressar o indizível. O mito não inventa o fato, dá-lhe uma forma que possamos compreendê-lo”, explica.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que medida a Modernidade inebria o entendimento pleno do conceito de Ressurreição?
Leonardo Boff – Não vejo que a Modernidade tenha interesse no tema da Ressurreição, não nos autores que conheço. Preocupam-se sim pelo tema da morte. Por outro lado, se tivermos um conceito mais aprofundado do ser humano, aí sim aponta o tema da Ressurreição. Se concedermos que o ser humano é um projeto infinito e devorado por um desejo que não conhece limites, como Aristóteles e Freud reconheceram, aí se coloca a questão: qual é o objeto adequado ao seu impulso infinito e ao obscuro objeto de seu desejo infinito?

Só um infinito sacia nossa sede de infinito, só uma vida que seja eterna faz descansar o desejo. É a famosa experiência agostiniana do “cor inquietum” que somente repousa quando encontra Deus. O sentido da vida é mais vida, é a plenitude da vida. É aquilo que nós cristãos chamamos de Ressurreição.

IHU On-Line – No que consiste o “ressuscitar” segundo a Teologia e a Antropologia?
Leonardo Boff – Ressurreição não pode ser identificada com a reanimação de um cadáver como o de Lázaro que, por fim, acabou morrendo. Ressurreição é a irrupção do “novissimus Adam” de São Paulo (1Cor 15,45). Vale dizer, é a completa realização de todas as virtualidades incontáveis presentes no ser humano. Se ele é um projeto infinito, a Ressurreição representa o momento  em que estas virtualidades chegam a sua plena floração.

IHU On-Line – Quais o limites de se buscar a Ressurreição como um dado histórico? E de que forma a leitura mítica pode ampliar o entendimento acerca da Ressurreição?
Leonardo Boff – Ninguém viu a ressurreição de Jesus. Temos apenas testemunhos de pessoas às quais deixou-se ver. E há apenas sinais como o sepulcro vazio e suas vestes. Portanto, não é um fato histórico passível de ser detectado por uma máquina fotográfica ou pela televisão. É um fato que aconteceu em Jesus, acessível pela fé dos testemunhos.

Esse evento não pertence ao mundo do bios, da vida biológica que sempre termina na morte. Por isso os textos judiciosamente falam em Zoé, que significa uma vida eterna. Também não dizem: nós vimos o Senhor, mas Ele deixou-se ver (óphte em grego, que é o medial de oráo ver). A iniciativa parte de Jesus e não dos apóstolos, aos quais permite vê-lo. Poderíamos dizer que a Ressurreição é a concretização da utopia pregada por Jesus, o Reino de Deus que implica a superação da morte e do morrer. Não sem razão que Orígenes , um dos mais geniais teólogos cristãos do norte do Egito no século III, denomina a ressurreição como a autobasileia tou Chritou. Traduzindo: a autorrealização do Reino em Cristo.

Quando as realidades são grandes demais, faltam-nos conceitos e palavras. O melhor caminho é elaborar narrativas e projetar mitos que no sentido moderno do termo (em C.G. Jung e nos antropólogos) é um meio de expressar o indizível. O mito não inventa o fato, dá-lhe uma forma que possamos compreendê-lo. Nessa linha dever-se-ia pensar a ressurreição de Jesus. Antropologicamente ela é fecunda, pois vem ao encontro daquilo que de utópico e infinito discernimos no ser humano.

IHU On-Line – Muitos estudiosos defendem que a Ressurreição do Cristo é a vitória da vida sobre a morte. Como podemos compreender tal perspectiva?
Leonardo Boff – A vida é chamada para a vida e não para a morte, mesmo quando sabemos que vamos morrer um dia. Esse é o anseio fundamental do ser humano, não apenas viver muito, mas, como notava Nietzsche , viver eternamente. Nesse sentido, a Ressurreição representa um tipo de vida tão plena que nela não penetra a morte.

Mas para isso ela precisa se transfigurar, vale dizer, realizar totalmente o ser humano em suas infindáveis possibilidades. Não vivemos para morrer, como diriam os existencialistas. Morremos para ressuscitar. Dom Pedro Casaldáliga o formulou bem: a alternativa crista é: ou vida ou ressurreição.

IHU On-Line – É possível afirmar que o Deus vivo no Cristo só se revela plenamente na Ressurreição? Por quê?
Leonardo Boff – Enquanto estava entre nós, Jesus participava de todo tipo de limitações e até achaques da existência humana. É o que está implícito da encarnação. O autor da Epístola aos Hebreus é bem concreto: “entre súplicas, clamores e lágrimas se dirigiu àquele que o podia salvar da morte… e aprendeu a obedecer por meio dos sofrimentos que teve” (Hbr 5,7-8). Mais adiante diz que ele “é o general da fé” (12,2). A Ressurreição é a ultrapassagem desta situação carnal e passa à situação “espiritual” (do Espírito de vida). Aqui Deus se revela como o Deus que faz de um morto vivo e de um vivo o “novíssimo Adão”. Dá-se a plena revelação do Deus vivo que quer a vida e que no livro da Sabedoria se revela como “o apaixonado amante da vida” (Sb 11,24).

IHU On-Line – No que consiste a ideia de “ressurreição da carne” e de que forma se articula com a perspectiva do túmulo vazio, tão detalhadamente descrito na narrativa de Marcos ?
Leonardo Boff – “Carne”, biblicamente, significa a situação humana frágil, doentia, mortal. Essa situação pela Ressurreição foi totalmente transmutada. Paulo o diz claramente: “semeia-se um corpo vital e ressuscita-se um corpo espiritual” (1 Cor 15,44.). Eu sustento a tese, aceita por muitos, de que as aparições no final do evangelho de Marcos seriam um acréscimo posterior, um pequeno resumo das aparições. O Marcos original não teria nada disso. Termina Jesus dizendo “aos discípulos e a Pedro que Ele (Jesus) os precederá na Galileia. Lá me vereis como vos disse” (Mc 16,7).

Com isso quero dizer: Jesus não se manifestou ainda de forma plena. Todos nós estamos a caminho da Galileia (o termo da história) para então vê-lo face a face. Assim me parece se entende melhor a história humana que apesar da Ressurreição de Cristo na verdade nada mudou, pois campeia a morte e a violência no mundo. Na esperança caminhamos para a Galileia da ressurreição. O próprio Jesus está em processo de ressurreição, pois seus irmãos e irmãs, que somos nós, ainda não ressuscitaram nem o universo que lhe pertence alcançou a sua plenitude. Ele está ainda em fase de cosmogênese. Quando tudo se completar, então, Jesus e sua comunidade terão finalmente ressuscitado . Aqui cabem as palavras de Ernst Bloch : “o gênesis está no fim e não no começo”.

IHU On-Line – O senhor diz que a Ressurreição representa “uma revolução na evolução”. Gostaria que detalhasse essa perspectiva.
Leonardo Boff – A moderna cosmologia unanimemente afirma que o estado do universo não é a estabilidade, mas a mobilidade. Tudo está se expandindo, se complexificando e se autocriando. A evolução permite que as virtualidades latentes dentro do universo conheçam emergências, possam irromper sob as formas mais diferentes. Neste sentido, o universo não está ainda pronto. Ao invés de falar em cosmologia, deveríamos falar em cosmogênese, a lenta e progressiva gênese de todas as coisas.

Quando digo, seguindo Jürgen Moltmann , que Ressurreição é uma revolução na evolução, quero dizer que Ressurreição é uma pequena antecipação do fim bom da criação, como se o termo da evolução se antecipasse e nos mostrasse em pequeno o que nos está preparado. Isso é uma revolução dentro da evolução que ainda continua e segue seu curso.

IHU On-Line – De que forma o panenteísmo pode contribuir para o entendimento da Ressurreição no nosso tempo?
Leonardo Boff – A expressão panenteísmo foi criada no século XIX por um teólogo protestante de nome Krause . Ela não tem nada a ver com panteismo.Ele quer dizer aquilo que a teologia antiga e clássica ensinava e ainda ensina com a expressão “pericórese” (a intro e retro relação de tudo com tudo) ou “circumincesio”. Primeiramente era aplicada na relação da criação com o Criador: ambos estão de tal maneira imbricados que um não pode ser entendido sem o outro. Depois, aplicou-se à cristologia e à doutrina trinitária. As três divinas Pessoas estão tão intimamente relacionadas que uma sempre implica a outra e assim eternamente.

Panenteísmo significa, então, que Deus está em tudo e tudo está em Deus, resguardadas as diferenças entre criatura e Criador. Não se trata de panteísmo segundo o qual tudo é indistintamente Deus. O próprio Voltaire mostrou o absurdo filosófico que tal afirmação comporta. O panenteísmo guarda as diferenças, mas revela como ambos estão presentes um no outro e que não podem ser pensados separadamente. Esta compreensão pode gerar uma mística como aquela de Pierre Teilhard de Chardin ou de São Francisco de Assis , que conseguiam ver Deus em todas e em qualquer realidade.

O Cristo cósmico das epístolas de São Paulo e da introdução do evangelho de São João dão-nos a perspectiva do “pleroma”, vale dizer, da universalidade da presença do Ressuscitado em todas as coisas. Célebre é o dito 33 do evangelho apócrifo de São Tomé que grandes nomes da exegese como Joaquim Jeremias e outros lhe conferem grande autoridade, pois parece ter saído da boca do Ressuscitado: “Eu sou a Luz do mundo. Tudo saiu de mim e tudo volta a mim. Rache a lenha e estou dentro dela, levante a pedra e estou debaixo dela. Porque estarei convosco todos os dias até o final dos tempos”. Levantar uma pedra é oneroso e rachar lenha é penoso. Mesmo esses afazeres comuns contêm a presença do Ressuscitado.

IHU On-Line – Como a volta à experiência da Ressurreição do Cristo pode inspirar a humanidade do nosso tempo a superar seus dilemas?
Leonardo Boff – Talvez este pequeno conto da área da ecologia pode responder a esta pergunta e que se encontra no meu livro Ecologia: grito da Terra – grito dos pobres (p. 307): “Certa feita um velho e santo monge foi visitado em sonho pelo Ressuscitado. Este, o Ressuscitado, o convidou para passearem pelo jardim. O monge acedeu com entusiasmo e cheio de curiosidade. Depois de andarem longo tempo, para frente e para trás pelo caminho do jardim como fazem os monges depois do almoço, ainda hoje, o santo e velho religioso ousou perguntar: ‘Senhor, quando andavas pelos caminhos da Palestina, dissestes, certa feita, que voltarias um dia com toda a pompa e glória. Está demorando tanto esta sua volta!’ Depois de momentos de silêncio que pareciam uma eternidade, o Ressuscitado respondeu: ‘meu irmãozinho querido: quando minha presença no universo e na natureza for evidente; quando minha presença sob a tua pele e no teu coração for tão real quanto a minha presença aqui e agora; quando esta consciência se tornar corpo e sangue em ti a ponto de não mais pensares nisso; quando estiveres tão imbuído desta verdade que não mais precisas perguntar com curiosidade, então, meu querido irmão, eu terei retornado com toda a minha pompa e glória”. E mais não se precisa dizer: o Ressuscitado está entre nós apenas nas fímbrias do mistério; quem crer e for sensível perceberá sua presença.■

Fonte: Edição 518 | 27 Março 2018-IHU

Leia mais

“Morrer é penetrar no coração do universo onde todas as teias de relação encontram o seu nó de origem e de sustentação”. Entrevista especial com Leonardo Boff, publicada nas Notícias do Dia de 2-11-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2GKwdq1.
Humano assim como Jesus só Deus mesmo. Artigo de Leonardo Boff, publicado nas Notícias do Dia de 20-12-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2GPRRta.
Francisco de Assis. O protótipo ocidental da razão cordial e emocional. Entrevista especial com Leonardo Boff, publicada nas Notícias do Dia de 2-10-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2prAFle.
Ecologia integral. A grande novidade da Laudato Si’. “Nem a ONU produziu um texto desta natureza”. Entrevista especial com Leonardo Boff, publicada nas Notícias do Dia de 18-7-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2GJ8c2x.
Os intelectuais que têm algum sentido ético precisam falar sobre a Terra ameaçada. Entrevista especial com Leonardo Boff, publicada nas Notícias do Dia de 16-10-2012, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2eZz17B.
“Quem vai derrotar o capital será a Terra”. Entrevista com Leonardo Boff, publicada nas Notícias do Dia de 3-8-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2G8LIdu.
------------
Fonte: https://leonardoboff.wordpress.com/2018/03/31/ressurreicao-como-uma-revolucao-na-evolucao/ 
Imagem da Internet

quinta-feira, 29 de março de 2018

As novas escolas do futuro

Arnaldo Niskier*

Alunos de escola técnica em São Paulo participam de aula em laboratório

Alunos de escola técnica em São Paulo participam de aula em laboratório - Luiz Carlos Murauskas - 1º.abr.15/Folhapress

O professor deve atualizar-se nas tecnologias e se descobrir um facilitador do processo educacional, reinventando ações didático-pedagógicas


As mudanças de grande amplitude que caracterizam a sociedade contemporânea vêm causando um impacto de proporções inéditas no campo educacional, particularmente no que concerne à juventude.

O aumento crescente da demanda por mais escolaridade, a busca por novas formações, a necessidade de percursos curriculares mais flexíveis, a existência de recursos pedagógicos tecnologicamente avançados, o advento da internet e das redes sociais e a comprovada limitação das metodologias mais ortodoxas tornam evidente que a escola, como é hoje, não atende às expectativas e necessidades da juventude brasileira.

Das profissões de 2019, 60% ainda não existem. É preciso preparar nossos jovens para esse mercado. O conhecimento é o maior insumo do século 21. É ele que determinará o sucesso de um profissional. E o maior centro de distribuição de conhecimento segue sendo a escola.

Ao longo da história, a escola foi adaptando-se às novas tecnologias. Num primeiro momento, a educação formal era baseada em aulas expositivas, com o enfoque no discurso do professor. Hoje, temos diversas mídias educacionais. O grande desafio é saber utilizá-las de modo eficiente e permitir que contribuam com as práticas pedagógicas.

Já se fala em quarta revolução industrial. São tecnologias capazes de integrar os domínios físicos, digitais e biológicos da vida humana. Essa revolução seria caracterizada pela difusão da internet móvel, o surgimento dos sensores menores, mais poderosos e mais baratos, e pela inteligência artificial e aprendizado da máquina.

O professor deve atualizar-se nas tecnologias inovadoras e se descobrir um facilitador do processo educacional, reinventando um conjunto de ações didático-pedagógicas.

Prevê-se a valorização do ensino técnico-profissional de que o país tanto carece. O ensino médio deve oferecer habilidades e competências aos alunos segundo suas escolhas pessoais --e de acordo com as variações do mercado.

É o que faz com sucesso o Sistema S desde a década de 50, com a boa tradição dos seus cursos profissionalizantes. Quando o assunto é tecnologia aplicada à educação, o Sesi, Senai e Senac são pioneiros na formação dos profissionais do futuro. Essas entidades colocam os jovens em contato com a tecnologia desde cedo e contribuem com a formação de adultos mais conectados à inovação.

O Sesi mantém aulas de robótica no currículo de 400 de suas escolas de ensino médio e fundamental. Há cinco anos, organiza um torneio de robótica para estudantes de 9 a 16 anos, de escolas públicas e particulares, desafiados a criar soluções inovadoras e construir robôs com peças de Lego.

É lamentável que, em nosso país, ainda faltem investimentos na qualificação de professores. Faltam também laboratórios e bibliotecas. O Brasil tem cerca de 200 mil escolas, a maioria sem bibliotecas e laboratórios compatíveis. Diante disso, como oferecer a nossos educandos a possibilidade de uma educação de qualidade?

É essencial corrigir essas falhas. As sociedades mais bem-sucedidas economicamente e as que alcançaram os graus mais elevados de bem-estar são as que mais dominam as várias áreas do saber. A questão da educação é estratégica para atingir o estágio de desenvolvimento que almejamos como nação.
-------------------
* Professor e jornalista, é membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), presidente do CIEE/RJ (Conselho de Integração Empresa-Escola) e doutor honoris causa pela Unama (Universidade da Amazônia)
Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2018/03/arnaldo-niskier-as-novas-escolas-do-futuro.shtml

sexta-feira, 23 de março de 2018

Leonardo Boff: "Marx nunca fue padre de la Teología de la Liberación"

Dibujo de Ombú
Muchos, sobre todo los más jóvenes, ignoran casi todo sobre una teología muy polémica que generó muchos 
malentendidos en América Latina.


Muchos creyeron, con terror, que la Iglesia Católica se estaba llenando de comunistas, o que algunos curas locos estaban abrazando ideas sospechosas. El movimiento se llamó Teología de la Liberación y reunió a varias vertientes católicas y protestantes. Comenzó a consolidarse a fines de los años 60 y tuvo, entre sus fundadores, al teólogo y sacerdote brasileño Leonardo Boff, que estuvo de paso por Montevideo.

Hombre de andar lento pero firme, se despliega con perspicacia. Apenas comienza un interrogante se intuye que el entrevistado ya conoce la pregunta y espera su turno con calma. Tiene una mirada reconciliada no exenta de autocrítica sobre el pasado que le tocó batallar. Porque cuestiones teológicas que podrían parecer discusiones bizantinas o fantásticas adquirieron en América Latina una novedad y una relevancia que hoy, al menos entre los jóvenes, parece olvidada.

A 50 años de estos hechos, y sin la ceguera que impuso la bipolaridad de la Guerra Fría, Boff discute algunos mitos y aclara otros sobre lo que muchos consideraron, aun hablando bajito, un pensamiento teológico original.

SABIDURÍA DEL POBRE.

¿Cómo entiende la Teología de la Liberación desde el presente?
Ahora veo más claro los contextos donde nace. La juventud hablaba de liberación en Francia, en Estados Unidos y en América Latina. Todo esto contaminó también a los grupos de iglesia que estaban interesados en cambios sociales, porque los niveles de pobreza y de explotación eran muy visibles. Entonces, a fines de los años 60 va surgiendo un pensamiento cuyo punto de arranque fue el peruano Gustavo Gutiérrez, cuando estaba en Brasil estudiando el golpe militar del 64, y ahí se encontró con Hélder Câmara, quien decía que el desarrollo de América Latina es el desarrollo del subdesarrollo, y que teníamos que sustituir desarrollo por liberación. Analizando el desarrollo como proceso de opresión de las clases obreras por las clases dominantes emergió la palabra liberación, que ya estaba en la cultura y que se transformó en un discurso teológico.

¿Cómo entraron en la reflexión la pobreza y la explotación?
Lo primero fue la sensibilidad ante las cuestiones sociales. La pregunta era cómo desde la fe cristiana se puede ayudar al pueblo oprimido, que era primeramente obrero, después entraron los negros, los indígenas, las mujeres, todo ese mundo del sufrimiento. Cómo la fe cristiana puede ayudar para que ellos se hagan sujetos y protagonistas de su liberación. No es que la Iglesia, como siempre ha hecho, vaya al pobre y haga asistencialismo, paternalismo, ayuda. Aquí es al revés. Nos abrimos al pobre, lo consideramos sujeto real y podemos aprender de él, porque decir que el pobre es ignorante es ser ignorante. El pobre sabe mucho. Pero tenemos que reforzar lo que él tiene dentro. Si él se articula con otros pobres, organiza movimientos, puede empezar un camino que llamamos de liberación. Y ahí entra la fe cristiana. La fe puede tener varios usos, un uso de resignación, decir que es voluntad de Dios la pobreza y la riqueza. Aquí no. La religión es una protesta contra esa situación que Dios no quiere y cómo desde la fe cristiana sus comunidades pueden organizarse para crear movimientos que se liberen.

¿Cuáles fueron los primeros pasos?
Fue surgiendo en distintos lugares de América Latina. Aquí en Uruguay con Juan Luis Segundo, con Hugo Assman en Bolivia. Pero el primero que lo elaboró teóricamente fue Gutiérrez en 1971. Y yo, que no lo había conocido todavía ni a él ni a Segundo, publiqué mi Jesús Cristo libertador en 1972. Desde la práctica de Jesús, de la opción por los pobres, de crítica a la riqueza y a los ricos y del "felices los pobres", el libro fue la tentativa de elaborar una visión de Cristo que se compromete y cuya muerte no es voluntad del Padre sino consecuencia de una práctica que creó un conflicto doble: con la religión legalista de ese tiempo y con las fuerzas de ocupación; y que murió en ese contexto, un contexto de compromiso y liberación.

Este nacimiento ¿cómo se fue articulando con ese movimiento mayor?
Antes de la reflexión había grupos de cristianos que estaban articulados, apoyados por Hélder Câmara, por Paulo Freire con su pedagogía, que ya actuaban como cristianos trabajando en las periferias, organizando grupos, alfabetizándolos y comunicando que tienen que ser ellos protagonistas de su vida y su liberación. A partir de lo que existía de práctica hemos iniciado la reflexión. No al revés. Muchos ya militaban en grupos de izquierda, partidos, movimientos, y varios obispos proféticos como Câmara, como el cardenal Evaristo Arns, daban una cobertura ideológica, eclesial, de autoridad, para que no fueran perseguidos por la policía política, porque el argumento era: todos los que hablan de la transformación de la sociedad son marxistas y por eso son enemigos del Estado y hay que perseguirlos. Y la Teología de la Liberación apareció en la lectura de ellos como un Caballo de Troya por el que el marxismo iba a penetrar en América Latina. Marx nunca fue padre ni padrino de la Teología de la Liberación. Pero en el contexto de la Guerra Fría se permitía esa lectura, de ahí la vigilancia y persecución de esta teología.

Esta vigilancia y persecución en algún momento provocó un resquebrajamiento en el interior mismo de la Iglesia. Usted fue silenciado. ¿No había también una necesidad de liberación hacia adentro de la Iglesia?
Inicialmente no era hacia adentro de la Iglesia. Yo fui el primero que lo intentó hacia adentro. Pero al comienzo fue una teología bastante pacífica porque tenía la cobertura de la Iglesia oficial, los obispos, pero simultáneamente estaban los obispos conservadores y, por supuesto, los militares. Roma aceptó el discurso de ellos. Como eran épocas de Guerra Fría, con la vieja Europa alarmada con el fenómeno del marxismo, veían un riesgo. Entonces nos perseguían, nos vigilaban. Muchos fueron apresados, interrogados, torturados. Incluso el secretario de Hélder Câmara fue muerto. Yo fui el primero que lanzó la pregunta: la Iglesia no puede simplemente exigir liberación a la sociedad, ella misma tiene que ser un espacio de libertad y liberación. Pero no lo es porque los laicos no tienen lugar en la Iglesia, las mujeres son invisibles y hay una concentración extrema de poder. Eso a la luz del Evangelio, de lo que entendemos hoy por democracia y participación. La Iglesia también tiene que ser liberada.

¿Cuál era el lugar de los cristianos en esa época de efervescencia y de contradicción?
En Brasil, una gran parte de la pastoral católica universitaria creó a comienzos de los 60 la Acción popular, un movimiento político de izquierda donde muchos fueron a la lucha armada, y luego perseguidos, presos, exiliados. Y otros grupos similares. Había conciencia de que esa opresión era sistémica, que no era algo meramente pacifico e histórico sino producido por un sistema económico que explotaba a las personas, el capitalismo. Que había que optar. Pero nosotros siempre olvidábamos el contexto más grande, el de la Guerra Fría, y el de la represión sistemática a todos los que no se alineaban a esto. Éramos perseguidos al interior de la Iglesia por los conservadores y al exterior por los militares o la derecha. Todos lo hacían con buena voluntad. Yo incluso discutía con el cardenal Ratzinger que decía: nosotros lo hacemos para defender al pueblo porque si entra el marxismo ateo se acaba el cristianismo, la Iglesia y ustedes van todos a prisión. Era lo que fascinaba a los europeos: el miedo. Nosotros no, el enemigo concreto que teníamos era el capitalismo real. Hubo incomprensión, y de nuestra parte ingenuidad.

¿Cómo se despierta de esa ingenuidad?
Lento nos fuimos dando cuenta. En Brasil fueron los primeros, quizás. Entraron en la guerrilla pero no lucharon con armas. Pero en Perú, Colombia, América Central fue mayor la participación de cristianos en luchas armadas. Hoy hay que hacer una fuerte crítica a todo esto. Pero una cosa sí conseguimos: elevar la conciencia del pueblo, de que la pobreza no es natural ni querida por Dios sino producida por un sistema que vive de la explotación del trabajo, de las personas, de la naturaleza. En eso ayudó mucho Paulo Freire. Él fue uno de los fundadores de la Teología de la Liberación con su pedagogía del oprimido. No es la pedagogía para el oprimido, es cómo el oprimido se da cuenta de su opresión, cómo vomita al opresor para no imitarlo.

BERGOGLIO PERONISTA.

¿Qué pasó en Argentina? ¿Dónde hunde sus raíces el pensamiento del actual Papa Bergoglio?
Bergoglio es una vocación adulta, era químico antes, entró en el Seminario y Juan Carlos Scannone fue su profesor en San Miguel. Scannone, que es amigo mío, trabajó la teología del pueblo oprimido y de la cultura silenciada y me confesó que cuando Bergoglio escuchó esa teología, se entusiasmó enormemente e hizo un voto de una vez a la semana visitar una villa miseria y luchar por ese tipo de teología. Todos ellos estaban muy ligados al peronismo, incluso Bergoglio lo confesó. Me lo contó la presidenta Dilma, quien se hizo muy amiga del Papa. Bergoglio viene de ese caldo cultural eclesial de la vertiente argentina de la Teología de la Liberación, mezclada con elementos del peronismo, de justicia social. En Brasil el énfasis estaba más en lo económico y lo político, en Perú entró la dimensión de la cultura y de lo indígena, en Colombia el enfrentamiento militar, en América Central el enfrentamiento a la dictadura y la represión. En cada país la Teología de la Liberación ha tenido sus acentos.

¿Cuáles son las cuestiones actuales que un teólogo tiene como piedra en el zapato?
Ya a fines de los ochenta dije que tenemos que insertar al gran pobre, que es el de la tierra explotada, y empecé a hacer una ecoteología de la liberación que coincidió con la creación en la ONU de un pequeño grupo que redactó la "Carta de la tierra, principios y valores para salvar la Casa común". Ahí comencé a trabajar la cuestión de la ecología y me di cuenta que la cuestión central no eran las religiones ni las iglesias sino cómo ellas pueden ayudar a salvar la tierra y garantizar las bases de su sustento. Cuando Bergoglio fue nombrado Papa inmediatamente le escribí una carta diciéndole que no se ocupara tanto de la Curia y de la Iglesia sino de cómo pueden ayudar a salvar la crisis ecológica y superar el riesgo que vivimos. Y él lo tomó en serio. Yo he colaborado con algunos textos. El futuro del sistema vida, del sistema tierra, no está garantizado: por el calentamiento global, por la escasez mundial del agua, por el desequilibrio del sistema que se ve por los eventos extremos. Eso hay que pensarlo teológicamente. Cómo se despierta una conciencia de responsabilidad para salvar esa herencia sagrada. Y cómo, en el proceso de globalización que está aplastando y homogeneizando a las culturas, preservar a las identidades y hacer que la Iglesia se encarne en esas culturas.

¿Y la cuestión de género, el lugar de la mujer en la Iglesia?
Es un tema siempre abierto. Vivimos bajo la cultura patriarcal. Las mujeres me han ayudado mucho a entender el tema. La Iglesia católica no tiene sensibilidad para esto. Todas las iglesias, incluso los judíos, abrieron a las mujeres el lugar para ser rabinas, pastoras. La Iglesia católica no, absolutamente. Este Papa prometió abrir algo pero hasta ahora no ha hecho nada. Es un tema de justicia. Abrir espacio para que la condición de lo femenino tenga su expresión y colabore teológicamente para dar otra visión de Dios, de una madre paternal o de un padre maternal.

Usted se ha consagrado a la teología, ha publicado decenas de libros, ha sido premiado. ¿Cómo percibe este largo camino?
Mi familia fue de las primeras que entraron a la región de Concordia, en Santa Catarina, viniendo desde Rio Grande do Sul. No había carreteras. Allí se abría la primera carretera y había un camión que pasaba. Para mí el olor más simpático que existía era el olor del combustible. Viendo ese camión enorme yo decía que quería manejarlo alguna vez. Mi vocación era ser camionero. Era la ilusión de un niño que viene de lo profundo de la selva, que llega de la Edad de Piedra y ve el mundo moderno. Cuando Norberto Bobbio me dio el doctorado honoris causa en política para irritar a Roma, en el discurso que pronuncié dije: "Yo vengo del interior de esa era primitiva y lentamente fui ascendiendo, aprendiendo a leer, a escribir, hasta llegar a la Universidad y ahora en esta gran Universidad, en un largo camino que es el camino de la humanidad para seguir ascendiendo en una línea de humanización y liberación".

Obsequioso silencio.

Durante el juicio doctrinal que se desarrolló en Roma y terminó condenando a Boff en 1984 a un "obsequioso silencio", el brasileño estuvo sentado en la misma silla donde 350 años antes estuvo Galileo Galilei acusado por un tribunal inquisidor.

—¿Cómo evoca aquel proceso?

—Lo curioso es que quien me juzgó, el cardenal Joseph Ratzinger que después fue Benedicto XVI, había sido mi profesor y era amigo. Con mucha incomodidad, porque intercambiábamos bastante, él mismo publicó mi tesis doctoral. Pero cuando de simple teólogo lo convirtieron en cardenal y lo llevaron a Roma, cambió totalmente. Era un teólogo progresista, abierto y ahí se cerró, entró en la lógica del poder, de obedecer estrictamente al Papa. Y empezó la represión sistemática. Bajo Ratzinger fueron condenados 114 teólogos de toda la Iglesia.

—Aquello iba más allá de Leonardo Boff.

—Cuando fui juzgado el presidente de la Conferencia Episcopal Brasileña, Ivo Lorscheider, me llamó a Brasilia: "Lo que se hace contra ti es contra nosotros, como no pueden atacarnos directamente, lo hacen con uno de nuestros asesores principales. Acá hay un problema político". Roma quería condenar a las comunidades de base como grupos políticos y no eclesiales. Me interesaba salvar ese tipo de Iglesia. Lorscheider junto al cardenal Arns fueron a Roma a testimoniar: "Si esa teología tiene errores vamos a corregirla. Le hace bien a nuestro pueblo" dijeron. Exigieron participar del diálogo. Ratzinger se puso furioso y les dijo que no. Arns fue a hablar con el papa Juan Pablo II y surgió una solución "católica": la mitad del tiempo Ratzinger me interrogó solo y la otra ellos pudieron participar. Allí Ratzinger temblaba como niño.
---------
Fonte:  https://www.elpais.com.uy/cultural/marx-nunca-padre-teologia-liberacion.html?utm_source=news-elpais&utm_medium=email&utm_term=%22Marx%20nunca%20fue%20padre%20de%20la%20Teolog%C3%ADa%20de%20la%20Liberaci%C3%B3n%22&utm_content=23032018&utm_campaign=Cultural

quarta-feira, 21 de março de 2018

Alba Zaluar, antropóloga cita Marielle e diz ser preciso provocar vergonha nos criminosos

A antropóloga Alba Zaluar, 75

A antropóloga Alba Zaluar, 75 - Reprodução

Alba Zaluar pergunta: Por que população aceita um menino andando com fuzil? 

Fernanda Mena / São Paulo

Decana nos estudos sobre segurança pública no Brasil, a antropóloga Alba Zaluar diz só ter visto nos tempos da ditadura militar mobilização popular tão grande e intensa como aquela motivada pelo assassinato da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL).

Para a professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), no entanto, o crime contra a política do Complexo da Maré pode extrapolar a retaliação a suas firmes denúncias de violações de direitos humanos, em especial por parte da polícia.

“Por que mataram Marielle?”, questiona Zaluar, que desconfia tanto de milícias e policiais corruptos, interessados em sabotar a intervenção federal, quanto da extrema direita, numa tentativa de espalhar o pânico para vender uma solução radical nas próximas eleições. Para ela, cidadãos precisam se envolver mais nas questões de segurança, que não poderia ser creditada como algo de responsabilidade só do Estado. 
 
 
Folha - Quais hipóteses a sra. levanta para o assassinato de Marielle Franco?
Alba ZaluarEla irritava muito os militares na linha do [deputado federal Jair] Bolsonaro [PSL-RJ], que são adeptos da violação de direitos civis e sociais dos mais pobres. Certamente ela incutia raiva também nos milicianos e nesses policiais que violam direitos humanos. Só que nessa trama havia se instaurado uma intervenção federal. Portanto pode haver um aspecto de sabotagem aí. Houve um anterior.

Como assim?
O episódio da Vila Kennedy é muito esquisito. O Rio está coberto de camelôs, sem que a prefeitura faça nada. Por que justamente quando o Exército entra naquele complexo residencial a prefeitura resolve, sem aviso prévio, entrar com tratores e derrubar uma série de quiosques de pessoas que tinham seu comércio ali há 15 ou 20 anos? Não tem sentido. No meu entender, foi para jogar a população local contra a intervenção federal.

E no caso da Marielle?
Esse assassinato brutal pode ser algo planejado para provocar confusão e rejeição à intervenção. Podem estar envolvidos todos os grupos ameaçados pela intervenção: policiais corruptos e violadores de direitos, milicianos e até facções. Ainda assim, não acredito no envolvimento de nenhum comando, porque Marielle tinha uma defesa muito clara dos direitos humanos, o que apela bastante para o pessoal que está preso.

A sra. é simpática à intervenção federal?
Eu era contra a intervenção, mas até agora não fizeram nada de errado.

Mesmo as declarações de que era preciso evitar uma nova Comissão da Verdade ou os mandados de busca e apreensão coletivos?
A intervenção é um erro em si. Não podem querer que o jovem com fuzil seja alvo, porque ele só pode ser morto caso esteja atirando em alguém.

Mas o general tem me parecido uma pessoa sensata. Ele está combatendo as milícias, está fazendo uma avaliação de cada batalhão da Polícia Militar. Na Vila Kennedy, ele se preocupou em derrubar barricadas que impediam o ir e vir da população local. Ainda assim, a intervenção não vai solucionar o problema. O que o Brasil precisa é um Plano de Segurança Pública Nacional.
Como teria de ser esse plano?
Elaborado por um governo legitimamente eleito, que tenha a confiança dos governados e dos estados. Só então teremos condições de atacar o problema com a troca de informações entre os entes da federação e os vários órgãos da segurança.

Quais as consequências políticas do assassinato de Marielle?
O PSOL vai se fortalecer no Rio ao mesmo tempo em que Bolsonaro deve perder terreno, porque a morte dela provocou uma enorme comoção. As pessoas ficaram indignadas com a covardia daquele ato e isso abriu a possibilidade de se pensar como ela pensava: garantindo os direitos civis e sociais da população mais pobre.

Marielle era uma vereadora muito atuante e uma pessoa muito querida. Debatíamos muito, porque não estou de acordo com certas posições do PSOL. Mas ela era gentil e aberta. Então, ela me ouvia e eu a ouvia também. Eu estava na manifestação na Cinelândia e na Assembleia. Foi impressionante. As pessoas estavam chorando nas ruas. Eu não via isso desde o regime militar. Mas as bandeiras eram horríveis.

Quais?
Tipo “Abaixo a intervenção federal”, que pode ter sido até posta por provocadores e pessoas interessadas nisso. Mas também pode ter sido obra do PSOL, que é contra e ponto. Ainda que eles tenham finalmente se reunido com o general Braga Netto, o que me deixou bastante contente.

Tinha também “Fim da TV Globo” e “Fim da Polícia Militar”, ou seja, 300 mil empregos a menos no Rio de Janeiro.

A ideia de acabar com a PM é recorrente em protestos.
É uma coisa estúpida, porque a PM tem mais de 40 mil membros no estado. Não dá pra acabar com ela. O que tem de se fazer é uma reforma.

Há falta de preparo também?
Os policiais estão absolutamente estressados. Enfrentar garotos com fuzil na mão não é mole. Eles estão sendo caçados. Mais de cem morreram no ano passado. Neste ano já são quase 30. Eles precisariam de tratamento, mas não há tempo pra isso porque eles precisam ir pra rua. Tem um monte em serviços burocráticos para fugir das ruas.

Quantas mortes de inocentes por balas perdidas podem ser fruto desse estresse?
Aí vem uma falta de treinamento a respeito de quando intervir. Várias situações de presença em favelas altamente povoadas não fazem sentido porque não pode haver troca de tiros ali. Melhor ir embora. Mas o problema é que acontecem coisas como no Complexo do Alemão, quando traficantes foram dar tiro na UPP. Aí fica difícil porque nenhum ser humano quer morrer, então a reação é atirar de volta. E aí, pronto, pega em gente que não tem nada a ver com isso.

Mas os traficantes também trocam tiros entre eles nessas mesmas áreas e também provocam a morte de pessoas que não têm nada a ver. E aí está o meu problema com o pessoal do PSOL e dos direitos humanos: eles se calam sobre isso.

Sobre a violência do tráfico?
Sim. É uma violência extrema a dos comandos. Isso tem de ser denunciado também. Faz parte do pacote. E eles simplesmente não tratam disso como um problema, mas é.
E tem a coisa de apresentar os jovens traficantes como vítimas do Estado, coisa que eles são, mas é algo que também os deixa confortáveis para continuarem fazendo —desculpe o termo pouco acadêmico— a merda que eles fazem, trocando tiros entre si, matando quem não tem nada com isso.

Eles não são vítimas também da falta de oportunidades?
São vítimas, mas também agentes. Marielle era agente. Agia combatendo a violência policial. Essa perspectiva ‘vitimizante’ infantiliza os cidadãos brasileiros, que têm responsabilidades. Está na Constituição. Mas temos também de combater a violência do tráfico. Por que a população aceita que aqueles meninos andem pra cima e pra baixo com fuzis?

Todo processo de pacificação de sociedades passa por provocar vergonha em quem comete crimes, ainda mais em quem mata. Se não houver uma mudança de mentalidade, isso não vai acabar.

Trabalhei muito tempo na medicina social da Uerj e aprendi com o pessoal do SUS que sem a participação e cooperação daqueles que são alvo da política, não dá certo. 

No caso da violência e da criminalidade acontece a mesma coisa: coloca-se a responsabilidade 100% no Estado, como se a sociedade não tivesse nenhuma contribuição.

Como mudar isso?
Quem se cala diante dessa violência passa a ideia de que é justificável que o jovem vá pra rua roubar pessoas, tirar seus bens ou mesmo tirar vidas nessas guerras de facções. Assim, isso não vai ter fim. 
As pessoas têm de estar dispostas a cooperar de alguma maneira. Está aí o disque-denúncia. E é preciso criar mecanismos para que testemunhas de homicídios possam de fato testemunhar. É muito importante denunciar quem exerce um poder ilegítimo e despótico como aquele que os traficantes exercem. 

O cidadão tem de se enxergar como responsável parcial por este cenário. O Estado não vai resolver isso sozinho.
 -----------------------

Raio X

Nascimento
2 de junho de 1942, no Rio 
Formação
Graduada em ciências sociais, mestre e doutora em antropologia social
Carreira
Foi professora na Unicamp e na Uerj, onde fundou, em 1997, o Núcleo de Pesquisa das Violências (Nupevi). É autora de "Condomínio do Diabo" (Uerj), "Um Século de Favela" (FGV) e "A Máquina e a Revolta" (ed. Brasiliense), sobre a Cidade de Deus.

Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/03/antropologa-cita-marielle-e-diz-ser-preciso-provocar-vergonha-nos-criminosos.shtml

terça-feira, 20 de março de 2018

Reféns da lógica “ou-ou”

Laurinda Alves*

 Resultado de imagem para Tomás Halík e livros


“Percorri uma boa parte do mundo, e o que consegui ver e conhecer não me autoriza a permanecer na lógica elementar do “ou-ou”. Tenho a consciência de que, quando alguém diz e pensa algo diferente de mim, isso se pode dever apenas a que ele vê as coisas a partir de outro ponto de vista, de outra perspectiva, de outra tradição ou experiência; que ele se expressa numa outra “linguagem”“.

Começo com Tomás Halík, filósofo e teólogo checo, padre católico internacionalmente conhecido pela sua capacidade de diálogo entre crentes e não crentes, recentemente distinguido com o Prémio Templeton, um dos mais prestigiados a nível mundial, que antes foi atribuído a personalidades como o actual Dalai Lama, Desmond Tutu e Alexander Soljenitsín, entre muitos outros. A Madre Teresa de Calcutá foi excepção e recebeu ambos, o Nobel da Paz e o Templeton.

Abro um parêntesis para sublinhar que monetariamente o Prémio Templeton vale mais que o próprio Nobel pois essa foi a vontade expressa do empresário e filantropo John Templeton quando o estabeleceu pela primeira vez, em 1972, como forma de reconhecimento do pensamento e obra de “alguém vivo, que contribui de forma excepcional para a afirmação da dimensão espiritual da vida”. Templeton achava que a espiritualidade era ignorada na atribuição dos prémios Nobel e, por isso, fez questão de que o valor do seu prémio excedesse sempre o dos Nobel, tentando assim valorizar ainda mais a espiritualidade que a ciência e as artes.

Voltando a Tomás Halík, pensador profundo e elevado que toca as fibras mais sensíveis de quem procura um sentido para a vida, independentemente das suas crenças ou religião, quando ele fala da lógica elementar “ou-ou” sabe que todos estamos tomados por esta lógica e por uma inclinação natural para absolutizarmos o nosso ponto de vista. É humano e é um kit de sobrevivência, por assim dizer.

Tornar absoluto o meu ponto de vista, o meu código de valores, a minha cultura, a minha conduta, a minha opinião, o meu conhecimento, a minha experiência, as minhas razões e por aí adiante é partir sempre do princípio que a minha maneira de sentir, pensar, decidir e agir estão mais certas que as dos outros. Não só mais certas, como mais inteligentes e melhores.

Embora a ideia da absolutização nos possa repugnar, na verdade todos caímos na mesma armadilha. Absolutizar está fatalmente associado a qualificar e, por isso, qualificamo-nos como bons e inteligentes, ao passo que aqueles que pensam, falam e agem de forma diferente da nossa são logo desvalorizados e catalogados num tom menor. E é tão fácil verificar isto… basta cair na conta de que naturalmente achamos que os que concordam connosco são mais inteligentes do que aqueles que discordam.

Por isso Halík toca numa matéria cara a todos: as ideias de cada um são preciosas para cada um, mas não são toda a realidade nem são as únicas ideias válidas ou boas. Além disso a natureza humana é complexa e ninguém é só uma coisa “ou” só outra. A lógica “ou-ou” é uma teia onde ficamos facilmente enredados. Presos nas malhas da expressão mínima a que facilmente nos reduzimos uns aos outros.

Quando experimentamos a lógica do “e” tudo muda porque deixa de haver apenas uma razão, uma ideia justa, um conceito iluminado, e passa a existir um sem número de possibilidades, porque todos podemos ser uma coisa “e” outra. Não temos que ficar espartilhados no ser isto “ou” aquilo. A combinação múltipla do “e” também multiplica as possibilidades de diálogo e de encontro com aqueles que pensam e agem de forma diferente.

Alargar os horizontes pessoais passa por isso mesmo, por abrir às lógicas dos outros, por resistir à tentação de absolutizar a partir de uma visão e acção ‘à minha maneira’, por deixar de funcionar na lógica “ou-ou”. Sempre que funcionamos exclusivamente nesta lógica, ficamos muito limitados porque ela nos impõe que “ou” tu “ou” eu estamos errados. Ora podemos estar ambos certos. E mais, muitos que pensam de forma ainda mais divergente podem estar igualmente certos e as suas ideias serem tão geniais como as de qualquer outro. Egoisticamente falando deveríamos expandir a consciência e cultivar a abertura ao infinito, pois só desta forma seremos capazes de evoluir.

A tentação de nos fecharmos e de nos protegermos dos que pensam de forma diferente (ou de os excluirmos!) é humana, mas é perversa. Encolhe os horizontes, isola e pode autoexcluir. Não serve. Não leva a lado nenhum, sobretudo porque empobrece as relações humanas, deslustra qualquer discussão e enquista todo o debate ou troca de ideias numa total absolutização dos pontos de vista. Faz-nos reféns de lógicas que impedem de alimentar um diálogo recíproco, de partilhar experiências, de evoluir no conhecimento e também no autoconhecimento.
---------
* Colunista
Fonte:  https://observador.pt/opiniao/refens-da-logica-ou-ou/ 19/03/2018
Imagem da internet

segunda-feira, 19 de março de 2018

Quando iremos superar o racismo?

Joseph E. Stiglitz*

Resultado de imagem para “Healing Our Divided Society: Investing in America Fifty Years After the Kerner Report”

O soft power dos EUA está diluído não só por Trump, mas também pela persistente discriminação racial

Em 1967, uma onda de protestos se espalhou pelos EUA, de Newark, Nova Jersey, a Detroit e Minneapolis no Meio Oeste americano — na sequência da explosão de violência no bairro de Watts, em Los Angeles. Em resposta, o presidente Lyndon B. Johnson criou uma comissão, liderada pelo então governador de Illinois, Otto Kerner, para investigar as causas e propor medidas para enfrentá-las. Há 50 anos, a Comissão Consultiva Nacional de Desordens Civis (mais conhecida como Comissão Kerner) divulgou um relatório, apresentando uma minuciosa descrição das condições nos EUA que provocaram a desordem.

A Comissão Kerner descreveu um país em que os afro-americanos enfrentavam sistemática discriminação, sofriam com más condições de educação e moradia e não tinham acesso a oportunidades econômicas. Para eles, não existia o “sonho americano”. A causa raiz foi a “atitude racial e o comportamento dos americanos brancos em relação aos conterrâneos negros. Preconceito de raça foi forjado de forma decisiva em nossa história; e agora ameaça o nosso futuro”.

Fiz parte do grupo reunido pela Fundação Eisenhower para avaliar o progresso feito no meio século subsequente. Infelizmente, a mais famosa linha do relatório da Comissão Kerner — “Nossa nação está indo na direção de duas sociedades, uma negra, outra branca, segregada e desigual” — continua sendo verdade.

O recém-lançado livro baseado em nossos esforços, “Healing Our Divided Society: Investing in America Fifty Years After the Kerner Report” (“Curando nossa sociedade dividida: Investindo nos EUA 50 anos após o Relatório Kerner”, em tradução direta), editado por Harris and Alan Curtis, é uma leitura sombria. Como escrevi no capítulo que me coube, “algumas áreas problemáticas identificadas no Relatório Kerner melhoraram (participação na política e no governo por americanos negros — simbolizada pela eleição de um presidente negro), algumas permaneceram sem alteração (disparidades de educação e empregos), e algumas pioraram (desigualdade de saúde e renda)”. Outros capítulos discutem um dos aspectos mais perturbadores da desigualdade racial nos EUA: a desigualdade de acesso à Justiça, reforçada por um sistema de encarceramento em massa que mira amplamente nos afro-americanos.

Não resta dúvida de que o movimento pelos direitos civis meio século atrás fez diferença. Uma variedade de formas abertas de discriminação se tornou ilegal. Normas sociais mudaram. Mas desenraizar nosso racismo institucional profundamente implantado se mostrou difícil. Pior, o presidente Donald Trump explorou esse racismo e reavivou as chamas da intolerância.

A principal mensagem do novo relatório reflete o agudo insight do líder do movimento dos direitos civis Martin Luther King, Jr.: obter justiça econômica para os afro-americanos não pode estar dissociado de obter justiça econômica para todos os americanos. King batizou sua marcha de agosto de 1963 em Washington — da qual participei e na qual ele fez seu inesquecível discurso “Eu tenho um sonho” — como a marcha por emprego e liberdade. E, mesmo assim, a divisão nos EUA cresceu muito mais, com efeitos devastadores sobre aqueles sem educação universitária, um grupo que inclui quase três quartos dos afro-americanos.

Além disso, a discriminação é desenfreada e muitas vezes oculta. O setor financeiro americano explorou os afro-americanos, sobretudo nos anos anteriores à crise financeira, vendendo a eles produtos voláteis com altas taxas que corriam o risco de explodir, e explodiram. Milhares perderam suas casas e, no fim, a disparidade na riqueza, já grande, cresceu ainda mais. Um dos principais bancos, Wells Fargo, pagou multas altíssimas por impor juros mais altos ao tomadores de empréstimo afro-americanos e latinos; mas ninguém foi realmente responsabilizado por muitos outros abusos. Quase meio século após a promulgação de leis antidiscriminação, racismo, ganância e o poder do mercado ainda atuam conjuntamente para prejudicar afro-americanos.

Há, entretanto, muitas razões para esperança. Em primeiro lugar, nossa compreensão da discriminação melhorou, o vencedor do prêmio Nobel de Economia Gary Becker poderia escrever que, em um mercado competitivo, a discriminação seria impossível; o mercado elevaria o salário de qualquer um mal remunerado. Hoje, compreendemos que o mercado está repleto de imperfeições — inclusive imperfeições de informação e concorrência — que geram ampla oportunidade de discriminação e exploração.

Além disso, reconhecemos que os EUA estão pagando um alto preço pela desigualdade, e um preço especialmente alto por sua desigualdade racial. Uma sociedade marcada por tais divisões não será um farol para o mundo, e sua economia não irá florescer. A verdadeira força dos EUA não é seu poderio militar, mas seu soft power, que foi profundamente diluído não apenas por Trump, mas igualmente pela persistente discriminação racial. Todo mundo perderá se esta questão não for confrontada.

O sinal mais promissor é a disseminação do ativismo, especialmente entre os jovens, que perceberam que já é hora de os EUA cumprirem seus ideais nobremente expressos em sua Declaração de Independência, de que todos os homens são criados iguais. Um século e meio depois após a abolição da escravatura, o legado deste sistema perdura. Foi preciso um século para promulgar a legislação garantindo direitos iguais; mas hoje, os políticos e tribunais controlados por republicanos com frequência renegam este compromisso.

Como concluí em meu capítulo: “um mundo alternativo é possível. Mas 50 anos de luta nos mostraram como é difícil alcançar esta visão alternativa.” Para mais progresso será necessário determinação, sustentada na fé expressa nas palavras imortais do spiritual que se tornou hino do movimento pelos direitos civis: “Nós devemos superar.”
 ------------------------
*Joseph E. Stiglitz é vencedor do Prêmio Nobel de Economia de 2001
Imagem da Internet

Escrever com o coração

Luis A R Branco*
img_2439 
“Eu não posso escrever para agradar a todos, mas alguém, em algum lugar será tocado se eu colocar meu coração nisso”.
~ Sara Winters

Em outras palavras o que Sara Winters quer dizer é que há uma diferença quando se escreve com o coração. E aqui temos por desafio compreender, ou melhor, definirmos o que significa escrever com o coração. Em primeira análise podemos pressupor que escrever com o coração significa escrever com intensidade. Obviamente que intensidade vai além do volume com o qual se fala, mas tem a ver com a profundidade com a qual se toca em alguém. É quando dizemos: “Uau! Isto foi profundo!” ou “Isto tocou-me imenso!” Fernando Pessoa ao falar destas coisas do coração disse: “Há um grande cansaço na alma do meu coração.”[1] Com a referência a “alma do meu coração”, Fernando Pessoa referia-se ao que de mais profundo existia em seu ser.

Escrever é isto, é sentar-se junto com o leitor e comunicar coisas da alma. Certamente que nem tudo o que é escrito tem esta vertente sentimental que toca a alma. Mas é possível ser no mínimo interessante de maneira a prender a atenção dos nossos leitores. Li uma série de três livros do estilo jornalístico-histórico, escrito pelo jornalista Laurentino Gomes com os títulos 1808, 1822 e 1889 que falam da fuga da corte portuguesa para o Brasil em 1808 e os acontecimentos que tomaram conta do Brasil depois deste evento. Os livros são escritos de forma tão cativantes que é difícil colocá-los de lado. Laurentino Gomes acertou o coração do leitor.

A Escritura Sagrada também define o coração como este lugar profundo no ser humano: “Sobre tudo o que se deve guardar, guarda o teu coração, porque dele procedem as fontes da vida.” (Provérbios 4:23) O comentarista John Gil faz o seguinte comentário sobre este texto e o significado de guardar o coração: Guarda “A mente da vaidade, a compreensão do erro, a vontade da perversidade, a consciência sem culpa, as afecções de serem desordenadas e colocadas sobre os objetos malignos, os pensamentos de serem empregados em assuntos ruins; e o todo caindo nas mãos do inimigo…” Portanto, escrever com o coração tem um significado para além do meramente sentimental. Tem a ver também com os valores morais.

O famoso missionário metodista, Eli Stanley Jones escreveu alguns princípios pessoais os quais usava sempre nas suas abordagens, um deles acredito que é pertinente para a nossa realidade no que diz respeito ao escrever para tocar alguém. Dizia ele: ”Seja absolutamente franco: não pode haver camuflagem nem propósito escondido na nossa abordagem. As pessoas precisam saber o que irão ouvir!”[2] Isto esta relacionado com o fato de guardarmos o coração não apenas nosso, mas também dos nossos leitores. Quando há falta de verdade, o livro pode ser uma armadilha maligna para aprisionar o leitor nas grades da mentira.

Hoje se tornou fácil escrever livros. Vender os livros já é mais difícil, mas escrever tornou-se mais fácil. Com isto temos uma grande variedade de literatura, boas e ruins. E em nosso contexto cristão podemos arriscar em dizer que a boa literatura é aquela que promove a verdade. Da história à poesia é possível escrever com verdade. O escritor cristão tem um compromisso com a verdade. A verdade não tocará todos os corações, mas tocará alguns.

Vivemos numa época onde toda verdade objectiva é questionada. A verdade objectiva pode ofender alguns, pode não tocar alguns corações, mas incomodar as mentes rebeldes. O Apóstolo Paulo fala sobre isto ao mencionar que chegará um momento em que as pessoas irão virar as costas para a verdade e trocá-las por ilusão. Irão atrás de coisas que alimentem as suas fantasias. Gilles Lipovetsky diz que: “Hoje, até a espiritualidade funciona em livre-serviço, na expressão das emoções e dos sentimentos, na procura resultante da preocupação com o melhor-estar pessoal…”[3]. E ainda: “Neste jardim das delícias, o bem-estar tornou-se deus, o consumo é o seu templo e o corpo, o seu livro sagrado.”[4]

Se tivermos consciência sobre o que se passa no mundo em que vivemos saberemos o que escrever para a presente geração. Não para alimentar a fome gerada pelos efeitos negativos da pós-modernidade, mas para satisfazer a real fome espiritual do nosso tempo. Há uma fome espiritual nos dias em que vivemos e nós temos o Pão da Vida capaz de alimentar toda sorte de fome.

NOTAS:

[1] Livro do Desassossego. Vol.I. Fernando Pessoa. (Organização e fixação de inéditos de Teresa Sobral Cunha.) Coimbra: Presença, 1990.  pág. 208.
[2] E. Stanley Jones, The Christ of the Indian Road (publication place: Abingdon Press, 1925), pág. 21-22.
[3] Gilles Lipovetsky. A Felicidade Paradoxal: ensaios sobre a saciedade do hiperconsumismo (Lisboa: Edições 70, 2007) pág. 113.
[4] Idem, 131.
----------
* Luis Alexandre Ribeiro Branco. Concluiu Filosofia Cristã e Apologética - Trinity College of the Bible and Theological Seminary em 2016. É Professor Associado com Agregação e Investigador Principal na Universidade de Lisboa. Publicou 4 artigos em revistas especializadas, possui 27 livros publicados. Possui 15 itens de produção técnica. Recebeu 1 prémio e/ou homenagem. Actua nas áreas de Humanidades com ênfase em Filosofia, Ética e Religião e Humanidades com ênfase em História e Arqueologia. Nas suas actividades profissionais interagiu com 7 colaboradores em co-autorias de trabalhos científicos. 
Fonte:  https://verdadenapratica.wordpress.com/2018/03/19/escrever-com-o-coracao/

No tempo do cinema de calçada

Juremir Machado da Silva*

 Resultado de imagem para cinemas antigos de porto alegre

O bairro de Montparnasse, em Paris, onde morei vários anos, vai ser modificado. Os franceses querem criar uma “comercialidade moderna”. Na tradução do jornal “Libération”, comércio de rua. Depois do delírio de vidro e concreto dos anos 1970, retorno ao natural. Europeus ricos têm essas manias: ruas, vida ao ar livre, piqueniques, bondes, trens. Nós, mais desenvolvidos, gostamos de ar condicionado, shopping center, carros individuais, transporte rodoviário e ambientes fechados e verticais.
Aí está: a rua será a grande invenção europeia.

O leitor Ari Rosa de Oliveira me enviou faz algum tempo uma lista dos cinemas de Porto Alegre que tinham porta para as calçadas. Conheci vários deles ao chegar em Porto Alegre no nada distante ano de 1980. Depois, foram varridos pelas salas de shopping, essas caixas sem alma com cheiro de pipoca com manteiga e fartura de filmes ruins. Na lista do Ary aparecem 46 cinemas: Cacique, Guarany (de 1913), Vitória, Carlos Gomes, São João, Continente (que trocaria de nome para Lido), Sala Vogue, Avenida, Garibaldi (1914), Marrocos, Roma, Presidente, Baltimore, que eu muito frequentei, Orpheu (depois Astor), Estrela, Moinhos de Vento (depois Coral), Real, Ritz, Rex, Ópera, Marabá, Tália, Rio Branco, Atlas, Pirajá, Castelo, Alvorada, Cavalhada, Teresópolis, Glória, Cine Teatro Ipiranga, Colombo, Eldorado, Rosário, Rey, América, Metro, Sarandi, Regente, Paquetá, Imperial, Scala, Miramar, Brasil e Capitólio. Eu fui muito no Bristol e no ABC ver filme à meia-noite.

Nostalgia? Um pouco. A tecnologia muda e devasta realidades que pareciam sólidas com o “Mont Lee” de Hollywood. Nas cidades do interior, os cinemas morreram faz tempo. Passei a minha infância e adolescência sonhando nos cinemas Internacional e Colombo, em Santana do Livramento. Não existem mais. Outro dia, falei disso com jovens. Um deles foi sincero: “Para que sala de cinema se agora temos Netflix?” Outro, mais risonho, sacou seu celular e disparou: “Meu cinema está aqui, no bolso, tinindo”. Tem uma vantagem indiscutível nisso: sem pipoca amanteigada. A minha hipótese é esta: os cinemas só persistem para que as pessoas possam comer quilos de pipoca em público. Já era.
Não voltaremos a andar de carruagem. Uma pena. Não teremos bondes puxados a cavalo. Lamentável. Não receberemos leite em casa em garrafas. Que saudade. Eu sou nostálgico assumido. Uma nostalgia de cinema. Admiro tudo que não tenho. Ainda vou morar no meio do mato. Fico perplexo vendo pessoas instaladas em salas climatizadas artificialmente quando é possível sentar embaixo de uma árvore frondosa. Nenhuma máquina produz o frescor de uma mangueira ou de um umbu. Quando estou num lugar gelado com ar condicionado vou ficando angustiado, com a sensação de que a realidade foi roubada. No lado de fora, uma alegria me invade. Comemoro a permanência da natureza.

Assumo que há contradições em tudo o que estou dizendo. Eu me contradigo porque ainda não encontrei a fórmula matemática da coerência existencial. Uma sala de cinema de rua sem ar condicionado deve ser insuportável se a temperatura andar pelos 40 graus. Por outro lado, por que alguém liga o ar quando a temperatura externa está em 25 graus? As pessoas são diferentes. Há quem ame o frio. Eu adoro o calor. Temperatura média de 30 graus é o natural para mim. O que tem isso a ver com cinema de rua? Nada. Quando alguém está conversando no bar mistura ou não assuntos? Claro que mistura.

Ou não é papo de bar.

Paris tem muitas cidades de interior dentro dos seus muros. Porto Alegre vai perdendo o seu charme interiorano. Como nos deixamos dominar pela violência, precisamos da segurança dos centros comerciais. Agora tem faculdade em shopping. É bizarro. Sinaliza que a educação seria um produto como qualquer outro. Conversa vai, conversa vem, vamos lá, de quem eram os filmes que a gente via nalguns desses cinemas que apagaram as luzes e venderam os projetos em briques?

Uma turminha assim: Fellini, Bertolucci, Carlos Saura, Woody Allen, Bergman, Antonioni, Resnais, Lelouch, Hitchcock, Polanski, Kuprick, Scorcese, Coppola, Kurosawa, De Palma, Truffaut, Chaplin. Alguns ainda estão por aí. E tem Quentin Tarantino na parada. Mais nostalgia. Já não se criam clubes de futebol como antigamente, já não surgem pintores como antes, já não aparecem bandas como Beatles e Rolling Stones, nunca mais um Truffaut, mas tem Messi e CR7. Não me decido. Acho que tudo piorou. Mas sei que podem me provar o contrário. Já me provaram tudo e o contrário na bucha. Sou pós-moderno. Aceitei. Desconfio de todas as provas e cedo diante de todos os argumentos.

Não tenho convicções. Salvo o horror a cheiro de pipoca no cinema.

E a certeza de que sombra de árvore é melhor que ar em saquinho. Pronto.

Quando a noite cai, eu me vejo caminhando para o cinema onde me espera o mais novo filme de Jean Renoir. A porta de entrada dá para uma rua florida onde bebo um guaraná Gazapina e vejo tudo sépia. Quando saio, apoiado na minha bengala, sou um menino fora de época.
-------------
* Sociólogo. Jornalista. Escritor. Prof. Universitário.  Colunista do Correio do Povo. 
Fonte: http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2018/03/10736/no-tempo-do-cinema-de-calcada/
Imagem da Internet : Cine Vitória em Porto Alegre