sexta-feira, 16 de março de 2018

Donald Trump: MARCAS DA MALDADE


"Fogo e Fúria - Por Dentro da Casa Branca de Trump". Michael Wolff. Tradução: Donaldson M. Garschagen, Renata Guerra, 
Débora Landsberg, Cássio de Arantes Leite e Leonardo Alves. Objetiva, 344 págs., R$ 49,90.


Por Helena Celestino / para o Valor, do Rio

O jornalista e autor Michael Wolff tem uma escrita ferina e um olhar treinado para notar pequenos detalhes, daqueles que criam grandes polêmicas e muitas inimizades. Do primeiro encontro com Donald Trump, numa entrevista na casa do bilionário em Beverly Hills, lembra que ele engolia potes inteiros de sorvete. Dois anos depois, ao descrever os bastidores dos nove primeiros meses de Trump na Casa Branca, notou que o presidente tem medo de ser envenenado e adora McDonald's porque ninguém nunca advinhará quem será o próximo cliente. Pelo mesmo motivo, avisou às arrumadeiras para não tocarem na sua escova de dentes nem nas suas camisas, mesmo que elas estejam espalhadas pelo chão, porque, se estão lá, é assim que ele quer. Mais constrangedor: Trump mente sobre seu peso para não entrar na categoria obeso, revela Wolff.

As micromanias de um inesperado presidente parecem inofensivas. Mas, em "Fogo e Fúria - Por Dentro da Casa Branca de Trump", o mais recente livro do controvertido escritor americano, esses detalhes vêm entrelaçados com descrições do caos permanente da Casa Branca e declarações de assessores assustados diante da incapacidade de Trump para presidir os EUA. O resultado é um livro com revelações devastadoras sobre o cotidiano e a personalidade do político mais poderoso do Ocidente. "Não dá para olhar para esse homem, ouvi-lo falar e ler os tweets dele todos os dias sem ficar alarmado e se perguntar: 'Que diabos está acontecendo aqui?'", diz.

A resposta está no livro de 340 páginas escrito com base em depoimentos, relatos recolhidos em 200 entrevistas com os mais próximos conselheiros de Trump e o testemunho do próprio jornalista durante sete meses de observação da movimentação e das conversas em corredores ou salas contíguas ao Salão Oval. "Cem por cento da sua equipe diz que ele não tem competência para presidir os EUA", afirma Wolff em entrevista ao Valor.

Como conseguiu esse acesso privilegiado? Jornalistas dizem que ele "comprou" seu passe para a West Wing - a ala do presidente e de seus principais conselheiros - com artigos destruidores sobre o tratamento dado a Trump pela mídia americana. Na versão de Wolff, o presidente ofereceu-lhe emprego, ele recusou e fez a proposta do livro sobre os cem primeiros dias do governo. Trump não prestou atenção e, segundo o "New York Times", o escritor passou a ser visto circulando com familiaridade entre assessores, com os quais jantava rotineiramente no Bombay Club, restaurante vizinho ao hotel para onde se mudou, ambos a um quarteirão da sede do governo dos EUA.

"Nada contribui tanto para o caos e a disfunção da Casa Branca quanto o comportamento de Donald Trump", escreveu Wolff.

Antes do lançamento nos EUA, em janeiro, "Fogo e Fúria" já detonara uma tempestade política. O livro despertou a ira de Trump, e seus advogados tentaram proibir a sua publicação. Os americanos voltaram a discutir a saúde mental do comandante em chefe do país, e Steve Bannon, personagem central do livro e estrategista-chefe da Presidência, foi banido da Casa Branca.
A repercussão foi estrondosa. Michael Wolff, de 64 anos, tornou-se um jornalista famoso, e seu livro, um best-seller instantâneo. Dois milhões de exemplares foram vendidos em dois meses nos EUA; direitos para o cinema ou televisão, comprados pela Endeavor Content; e o livro foi lançado em 35 países. Em janeiro, na cerimônia do Grammy Awards, a a democrata Hillary Clinton fez uma supreendente aparição e, com "Fogo e Fúria" nas mãos, leu um trecho nada benévolo sobre o seu arquirrival. Na turnê pela Europa na última semana de fevereiro, Wolff foi mimado e recebido como celebridade - num só dia, deu 26 entrevistas.

O sucesso de público, porém, não é replicado nas resenhas dos jornais. Críticos desconfiam do rigor de Wolff na apuração dos fatos, apontam contradições nas informações e falta de clareza sobre a origem das suas informações e acusam o jornalista de descrever cenas não testemunhadas por ele. "Deixo as fontes darem suas versões, e ao leitor cabe julgá-las", escreve na introdução do livro.

Michael Wolff está longe de ser unanimidade. O "New York Times" chamou-o de "uma piranha de primeira categoria na maré midiática de Manhattan", comentário explicitado melhor em outro perfil dele publicado pela "New Republic" em 2004. "Uma das figuras mais poderosas, mais chamativas e mais detestadas da mídia nova-iorquina", criticava a revista. A antipatia dos colegas foi angariada por meio de suas colunas semanais na "New York", em que desde o fim dos anos 90 analisava a política com sarcasmo e um olhar mundano. Sua verve ferina já deixara furioso Robert Murdoch, personagem de uma biografia não autorizada, com um provocativo título, "The Man Who Own the News" (O Homem que É Dono da Notícia, em tradução livre).

Mas, desta vez, Wolff foi mais ousado ao mirar um alvo até então protegido pela liturgia do cargo: a privacidade do presidente. A sua crônica dos bastidores da Presidência começa na noite da eleição, com as lágrimas de revolta de Melania Trump e a reviravolta nos planos já arquitetados pelo bilionário, pela sua família e pelos assessores para a vida após a derrota dada como certa do candidato republicano. "Ao saber que foi eleito, o rosto de Trump parecia o de alguém que tinha visto um fantasma", teria dito o filho do presidente a alguém.

O jornalista descreve com particular maldade o ódio entre as três facções em que se dividiam os principais conselheiros do presidente: os Jarvanka (Jared Kushner e Ivanka Trump, genro e nora de Trump); representantes da Nova York democrática, agindo contra os republicanos tradicionais encarnados em Reince Priebus (chefe da Casa Civil), e os militantes da "revolução nacionalista populista", liderada pelo "alt-right" Steve Bannon. "Em outros tempos, eles teriam se matado", escreve. Na turbulência política atual, foram todos demitidos, com exceção dos Jarvanka.

Wolff detalha o pânico de todos com a investigação sobre as relações secretas com a Rússia na época da campanha eleitoral e o desespero dos conselheiros com um presidente retratado como aberrante, desligado das questões do governo e praticamente iletrado. "Ele não lê, é totalmente TV. O homem nunca dá uma pausa no papel de Donald Trump."

Como na série da Netflix "House of Cards", "Fogo e Fúria" descreve uma Casa Branca borbulhante de rivalidades, obsessões, fantasmas e angústias. Já a política aparece pouco.
Wolff tem uma voz rouca e o tempo cronometrado para esta entrevista. Como Trump, o jornalista também tem um show, repetido ao longo destes últimos dois meses de lançamento do livro. Ele continua no ataque: "Trump não sabe nada da América Latina, nem se interessa".

Valor: Quando o senhor estava trabalhando em "Fogo e Fúria", em que momento percebeu que se tratava de uma história explosiva?
Michael Wolff: Não tenho certeza de que cheguei a perceber isso. Enquanto estava trabalhando, reparei que tinha nas mãos um relato da desilusão dos assessores mais próximos de Trump com a capacidade dele para ser presidente dos EUA. Eu estava tão envolvido que não cheguei a perceber como era grande e significativo o que estava vendo e ouvindo, estava simplesmente tentando escrever, contar o que eu vi e ouvi. Só no fim me dei conta de que tinha uma história capaz de arrebatar a atenção do mundo.

Valor: Arrepende-se de alguma coisa que escreveu ou que deixou de publicar?
Wolff: Não, tudo o que sei está no livro.

Valor: O senhor escreveu: "Trump não lê e não ouve ninguém por mais de dois minutos". Agora ele enfrenta uma saída em massa de seus conselheiros e assessores, um êxodo jamais visto na Casa Branca. Como ele toma decisões?
Wolff: Acho que a Casa Branca está vivendo um momento crítico, a crise está crescendo. Muitos dos que chegaram à Casa Branca com ele há pouco mais de um ano já foram embora, os que ainda estão lá ameaçam sair e aparentemente é quase impossível para Trump contratar novos assessores. É isso mesmo, ele não lê e não confia em ninguém.

Valor: O caos que o senhor descreveu e presenciou na Casa Branca continua o mesmo? Wolff: Exato, só que agora há cada vez menos pessoas lá.

Valor: Alguém disse que "Fogo e Fúria" marcou uma espécie de volta ao tempo em que livros eram o centro das conversas. Dois meses depois de lançado o livro, o que aconteceu? O senhor foi processado? Encontrou o presidente de novo?
Wolff: Recebemos uma carta do advogado da Presidência opondo-se à publicação do livro, e nada mais. Era muito tarde para dizer que se opunha à publicação de um livro que já era best-seller no mundo. O presidente disse que ia me processar por difamação e invasão de privacidade. Isso jamais aconteceu antes - um presidente processar um escritor ou tentar impedir a publicação de um livro sob o argumento de que foi difamado e teve a privacidade invadida. Além disso, nada mais aconteceu. Por enquanto, a minha relação com o presidente acabou, não o encontrei mais.

"Cem por cento da sua equipe diz que ele não tem competência para presidir os EUA", diz o jornalista e autor Michael Wolff sobre Donald Trump

Valor: O senhor diz que todos descrevem Trump como uma criança, e dois dos conselheiros mais graduados o o chamam de "um idiota cercado de palhaços". É isso mesmo? Depois de estar próximo dele por mais de um ano, qual é a sua visão do presidente?
Wolff: No livro, é muito importante para mim não falar sobre a minha impressão, transmiti a visão das pessoas que trabalham com ele, todas inteligentes e muito próximas desse homem. É unânime, a opinião de 100% da equipe é a de que Trump não tem competência para ser presidente. Alguns dizem que ele é como uma criança de 7 anos, outros dizem 12. Mas, a essa altura, esta é uma conclusão óbvia: ele não é digno de ser presidente dos EUA.

Valor: Citando o senhor: "O paradoxo da Presidência de Trump é que suas ações são as mais ideologicamente motivadas, mas, ao mesmo tempo, as menos pautadas por ideologia". Pode explicar melhor?
Wolff: Trump não acredita em nada, ele não se preocupa com nada além de saber como pode chamar atenção sobre ele mesmo. Nada do que ele vem fazendo pode ser percebido como uma antítese ao consenso liberal [ou de esquerda, na tradução para a política americana].É uma situação bizarra: um homem que não tem crenças virou representante de uma corrente com valores muito fortes.

Valor: Olhando um pouco para o mundo: nas conversas com Trump, percebeu se ele tem alguma informação sobre as relações dos Estados Unidos com a América Latina?
Wolff: Não, ele não sabe nada sobre isso e não tem nenhum interesse. Zero. Quando o entrevistei em junho, fiz uma pergunta sobre a relação com a Europa e citei o Brexit. Ele me perguntou: "O quê?". Eu expliquei, e ele disse: "Ah, vamos falar de outra coisa". Ele não sabe nada disso e não se interessa.

Valor: Trump surpreendeu o mundo ao aceitar um encontro com o líder da Coreia do Norte. O senhor diria que é o jeito Trump de fazer política externa?
Wolff: É, acho que isso é quase nada, ele percebeu que tinha uma oportunidade de tudo girar em torno dele, em vez de iniciar uma ampla discussão. Isso é bom para Trump, viajar, atrair a atenção e a mídia, embora tudo vá ficar na mesma. É uma maneira de ganhar atenção, é parte do "Trump show". Até agora, toda a sua atuação em relação a Coreia do Norte foi para receber atenção, é isso o que ele mais gosta. Mas tem um ponto importante: pelo menos, por agora, ele não vai à guerra contra a Coreia do Norte.

Valor: O senhor escreveu que a questão central na Casa Branca é quem vai sobreviver
à investigação sobre as relações da equipe de Trump com a Rússia durante a campanha eleitoral. Quem o senhor acha que não vai sobreviver? O próprio presidente?
Wolff: Existem várias razões para o impeachment de Donald Trump. Vai depender da eleição em novembro. Se os democratas conseguem a maioria na Câmara dos Deputados, é mais provável que ele passe por um processo de impeachment.

Valor: O casal Ivanka Trump e Jared Kushner, formado pela filha e pelo genro do presidente, é considerado uma "bomba-relógio" dentro da Casa Branca. Por quê?
Wolff: Várias pessoas acham que muitos dos erros de Trump foram causados pelos conselhos de Jared e Ivanka. Eles são os assessores com mais influência sobre Trump. Eles são parte do caos criado na Casa Branca, suscitaram uma enorme antipatia entre a equipe de profissionais. Todos dizem que é muito difícil trabalhar quando existe uma "família real" agindo politicamente no governo. E mais, é provável que Jared seja indiciado nas investigações sobre os contatos com a Rússia.

Valor: Como Kushner pode ser o principal negociador americano no Oriente Médio e com o México se não tem acesso a documentos sigilosos?
Wolff: Ele não sabe nada sobre nada, não tem formação nem informação, não conhece história e não tem experiência. Sua única credencial é ser genro do presidente.

Valor: Fora Trump, quem é o mais interessante personagem nessa Casa Branca cheia de intrigas e pessoas trombando umas com as outras?
Wolff: Para mim, é Steve Bannon. Não concordo com nenhuma das suas ideias políticas, mas Steve é muito inteligente, intuitivo, a única pessoa na Casa Branca que tinha uma visão do que precisaria ser feito, o único a pensar politicamente. Ele pensa estrategicamente, e a demissão desfez seus planos. Mas ele acha que Trump é só um capítulo do que chama de movimento popular nacionalista global, parte de uma importante tendência em curso na história.

Valor: O senhor disse que, com Trump, os EUA entraram na "mais extraordinária tempestade política desde Watergate". A imprensa teve um papel excepcional nessa época (anos 70). Como o senhor vê a atuação da imprensa na era Trump?
Wolff: Ainda não está claro se a mídia está perseguindo ou ajudando Trump. Acho que não temos ainda a resposta para essa pergunta. A importância do papel da mídia em Watergate só ficou evidente mais tarde, também não era claro enquanto o caso se desenrolava. Eu não diria que a mídia é ou será o agente da queda de Trump. Diria o oposto, a mídia foi o agente da ascensão de Trump. Mas há muitos outros movimentos que podem derrubar Trump, seja [Robert] Mueller [encarregado do inquérito para apurar a interferência russa na eleição americana], o # Metoo [movimento das mulheres de denúncia de assédio], o Partido Democrata, o Partido Republicano, o FBI, o Departamento de Justiça - todos estão atrás de Trump.

Valor: Steve Bannon disse que o presidente tem 33% de chances de chegar ao fim do governo, 33% de chance de passar por um impeachment e outros 33% de renunciar. Em qual desfecho o senhor acredita?
Wolff: Acho que Steve está certo. O mais importante é que Steve e eu acreditamos que existe zero chances de Trump se eleger para um novo mandato ou mesmo ser candidato a reeleição.

Valor: Depois de tudo o que viu e contou, está preocupado com o futuro dos EUA? Devemos ficar também?
Wolff: Não. Quer dizer, sim. Todo mundo está preocupado com o seu próprio futuro. Acho que a Presidência de Trump vai ser vista como um difícil e estranho momento, que será considerado uma experiência malsucedida e um enorme erro.

"Fogo e Fúria - Por Dentro da Casa Branca de Trump". Michael Wolff. Tradução: Donaldson M. Garschagen, Renata Guerra, Débora Landsberg, Cássio de Arantes Leite e Leonardo Alves. Objetiva, 344 págs., R$ 49,90.

Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/5388279/marcas-da-maldade

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