José de Souza Martins*
Foto Carvall
Uma das fotos do presidente e coadjuvantes
no
Dia da Pátria confirma a desvalorização
dos símbolos para acentuar pessoas
Para as ciências humanas, este é um momento
peculiar de revelações do que somos como povo e como sociedade. As mudanças
sociais e políticas que ocorreram nos últimos meses nos mostraram o que de nós
não víamos.
Nossos impasses, insuficiências e esperanças
aparecem no banal do dia a dia. A pátria simbólica está na composição de uma
foto e na escolha política da distribuição de quem e como nela aparece. Caso do
retrato de figurões no desfile do Dia da Pátria. Ele revela o que são, e não
sabem, os fotografados que personificam as instituições. Os escolhidos a dedo
para ladear o governante tornam-se nele atores do nosso simbolismo milenarista,
do tempo em que tínhamos religião e fé. Na mudança dessa composição, na
sucessão histórica dos governos, o poder nos diz o que vem a deixar de ser e o
que está se tornando.
Na comparação de diferentes episódios de valor
social e simbólico equivalentes, maiores são as revelações. A foto de Ulysses
Guimarães a assinar a Constituição de 1988 com uma prosaica caneta
esferográfica, dessas que se compra na rua, destoou significativamente das de
outros momentos de igual importância.
A caneta com que a princesa Isabel assinou a
Lei Áurea lhe foi oferecida pelo povo, mediante subscrição pública: era de
ouro, prata e pedras preciosas. Também o era a caneta com que o marechal
Deodoro assinou o projeto da primeira Constituição republicana.
Descompassos entre os episódios nos falam da
decadência dos símbolos e, portanto, de uma deplorável banalização da política,
que se tornou falsamente solene, pois barulhenta e vulgar.
Uma das fotos do presidente e coadjuvantes no
Dia da Pátria confirma a desvalorização dos símbolos para acentuar pessoas. No
centro, o presidente da República, com a faixa presidencial. Ele faz com os
polegares gesto de positivo e sorri dirigindo-se especificamente a alguém na
multidão. Um gesto vulgar do nosso neopulismo sem estilo porque em desacordo
com ritos e formalidades próprias das solenidades do poder democrático.
Fotos e documentários de Getúlio Vargas, no
mandato de 1950 a 1954, mostram o governante ciente da formalidade do mando, no
populismo teatral de interagir com a massa, sem nela distinguir pessoas. O
oposto do caso do governante atual. No direcionamento da saudação, ator de uma
concepção estamental da sociedade de desiguais, que o era antes da Independência.
À sua direita está o bispo Edir Macedo, da
Igreja Universal do Reino de Deus. Desde o Estado Novo, na medida do possível,
os governantes evitaram compartilhar a cena de atos públicos com representantes
de igrejas e de seitas. Lula rompeu essa regra, mas com algum critério.
Getúlio, referindo-se ao catolicismo, nos anos
1930, e atenuando a separação de Estado e Igreja, inaugurara a concepção de
religião da maioria da nação, para violar o preceito republicano e angariar
apoio da Igreja Católica à sua ditadura. Mas só eventualmente uma autoridade
eclesiástica participava do grupo cênico formado em alguma solenidade.
Nas décadas recentes, igrejas têm aceito a
violação da separação constitucional de Estado e religião. Essa promiscuidade
nos torna menos democráticos do que devemos, na contaminação do que é cívico e
laico pelo que não o é.
À esquerda do presidente está o animador de
televisão Sílvio Santos. Salvo engano, é a primeira vez que um ícone dos meios
de comunicação de massa é elevado ao palco da mais solene das cerimônias da
República. O que reconfigura o desenho simbólico do Estado, inscrevendo na
concepção da política e do solene a lógica do espetáculo publicitário, de um
símbolo da economia de mercado, o que torna essa lógica uma instituição do
poder.
A revelação mais importante dessa fotografia
é, pois, a da mudança significativa na composição da trindade simbólica do
nosso mando político. Desde o Descobrimento, a Santíssima Trindade é o núcleo
de nossa concepção religiosa de poder e destino. Tradição que nos vem de
Joaquim de Fiore, monge cistercense do século XII, que anunciou o advento da terceira
era, a do Espírito Santo, tempo em que o mundo seria virado de cabeça pra cima.
O país tem vivido, ao longo de sua história,
na ansiedade e na expectação dessa hora do primado do Brasil do avesso, tempo
da revelação e da revolução, da inversão do mundo da iniquidade, da chegada do
tempo da liberdade, da fartura e da alegria. A trindade joaquimita está
inscrita na consciência social brasileira há séculos. Mesmo que o poderoso do
centro da imagem nada saiba sobre isso, na fotografia do espetáculo do poder os
coadjuvantes são posicionados de modo a evidenciar nele um centro de três
pilares simbólicos agora usurpados por uma visão mercantil da história.
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* José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador
Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros,
autor de Fronteira - A Degradação do Outro nos Confins do Humano (Contexto).