segunda-feira, 1 de junho de 2020

Giorgio Agamben: Que sociedade é essa que só reconhece a sobrevivência como valor?

Giorgio Agamben: “O estado de exceção se tornou norma” | Cultura ...
Para o filósofo italiano, em nome do imperativo sanitário, sacrificamos nossas liberdades, mas também nossas condições normais de vida, nossas amizades e até mesmo o respeito por nossos mortos

Desde o começo da epidemia da Covid-19, o filósofo italiano foi uma voz dissidente. Num primeiro texto, publicado no site do L’OBS, ele ressaltava a “invenção de uma epidemia” e enumerava as inúmeras privações de liberdades provocadas pelo confinamento. “Mesmo depois que o terrorismo foi desconsiderado como causa de medidas de exceção, a invenção de uma epidemia parece oferecer um pretexto ideal para ampliá-las para além de quaisquer limites.” Tal afirmação suscitou uma dura resposta do filósofo Slavoj Zizek, no nº 2889, do L’OBS.

Em outro texto, publicado no início de março, Agamben[1] estimava que, de fato, “as disposições recentes transformaram cada indivíduo num transmissor potencial do vírus, exatamente como as leis sobre o terrorismo consideravam, na prática, cada cidadão como um potencial terrorista.” Finalmente, em 17 de março, publicou “Esclarecimentos”. O texto traduzido do italiano para o francês foi publicado em maio. No momento em que se abre um novo período de “desconfinamento” cujos contornos são aleatórios, as questões que Agamben colocava há dois meses atingem a todos nós.
O artigo é de Giorgio Agamben, filósofo italiano, publicado por L’OBS, Nº 2897, 14-20 de maio 2020. A tradução é de Edgard Carvalho e Fagner França

Eis o artigo.

“O medo é um mal conselheiro”, mas faz surgir inúmeros elementos que podíamos fingir não ver. O primeiro elemento foi a onda de pânico que paralisou nosso país; ele mostra claramente que nossa sociedade não acredita em mais nada a não ser na vida nua. Fica claro agora que os italianos estão dispostos a sacrificar tudo, ou quase tudo, para não ficar doentes: suas condições normais de vida, suas relações sociais, seu trabalho e até mesmo suas amizades, seus afetos e, também, suas convicções religiosas e políticas. A vida nua – e o medo de perdê-la – não é algo que une os homens, mas que os cega e separa. Como na peste descrita no romance “Os noivos” de Manzoni[2], os outros seres humanos aparecem sempre como pestíferos (Manzoni recorre ao termo untore[3]), que devem ser evitados a qualquer preço e ficar a distância de um metro pelo menos.

Os mortos – nossos mortos – não têm direito às cerimonias fúnebres e, na verdade, não sabemos o que pode ter acontecido com os cadáveres de pessoas queridas. Nossos familiares desapareceram e é surpreendente que as igrejas não digam nada sobre isso. Qual o significado das relações humanas num país que se habituou a viver dessa maneira por um período que não se sabe quanto tempo irá durar? Que sociedade é essa que só reconhece a sobrevivência como valor?

O outro elemento, que não é menos inquietante que o primeiro, e que a epidemia fez surgir muito claramente, reside no fato de que o estado de exceção converteu-se doravante em condição normal. No passado houve epidemias mais graves, mas apesar disso ninguém jamais imaginou declarar um estado de urgência que proíbe tudo, até mesmo nossos deslocamentos.

Os homens se habituaram a viver numa condição de crise perene e de perene urgência e, por isso, parecem não se dar conta de que sua vida foi reduzida à uma condição meramente biológica e que perderam qualquer dimensão social e política e, até mesmo, humana e afetiva. Uma sociedade que vive num estado de urgência perene não pode ser considerada uma sociedade livre. De fato, vivemos numa sociedade que sacrificou a liberdade em nome de supostas “razões de segurança” e que, por isso mesmo, encontra-se condenada a viver num estado de medo e insegurança perenes.

Não causa surpresa que se evoque a guerra, quando se fala desse vírus. As medidas de urgência nos obrigam a viver em condições de recolhimento obrigatório. Mas pelo fato de que essa guerra é travada contra um inimigo que pode se alojar no corpo de qualquer homem, será que ela não pode ser entendida como a mais absurda de todas as guerras? Na verdade, trata-se de uma guerra civil. O inimigo não está no exterior, mas sim no interior de cada um de nós.

O que inquieta não é tanto o presente e nem apenas ele, mas o que virá depois. Assim, tal como todas as guerras deixaram como legado da paz uma série de nefastas tecnologias - das cercas de arame farpado às centrais nucleares - pode-se certamente supor que, após a urgência sanitária, surgirão experimentações que os governos não conseguiram implementar até agora: fechar as universidades e as escolas e dar aulas pela internet, parar de uma vez por todas de se reunir e debater em conjunto política e cultura, contentar-se de trocar mensagens digitais e, por toda parte onde for possível, fazer com que as máquinas substituam qualquer espécie de contato – qualquer contágio - entre os seres humanos.

Notas:
[1] Especialista em Martin Heidegger e Carl Schmitt, o filósofo italiano, de 78 anos, é figura de destaque na filosofia europeia. “O poder soberano da vida, primeiro volume do ciclo Homo sacer, exerceu influência determinante na nova geração radical. Em 2018, a editora Le Seuil publicou todos os volumes do Homo sacer. [A traducão brasileira é da Boitempo editorial].

[2] Alessandro Francesco Tommaso Manzoni (1785-1873). O romance foi publicado pela primeira vez em 1827, em três volumes, e transformado em ópera em 1856. Edição brasileira: Os noivos. Tradução de Francisco Degani. São Paulo: Nova Alexandria, 2012. 

[3] O termo significa literalmente hospedeiro de um virus e que nos convertemos nisso. (N.Ts.)
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Fonte:  http://www.ihu.unisinos.br/599437-que-sociedade-e-essa-que-so-reconhece-a-sobrevivencia-como-valor-artigo-de-giorgio-agamben - 
Acesso; 01/06/2020

Roberto Romano: “Nunca vi maior fragilidade geral do Estado brasileiro como estou vendo neste momento”

Situação é das mais complicadas na história brasileira", diz ...
 Roberto Romano - foto da Internet

"Somado a um tipo de personalidade que não pergunta, não dialoga, não discute e não propõe, além do fervor religioso, só poderia ter um governo de cunho autoritário".


O filósofo Roberto Romano, 74 anos, professor de ética e política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), afirma, em entrevista ao Correio, que os recentes arroubos autoritários do presidente Jair Bolsonaro sinalizam que ele “não está controlando a si mesmo nem a máquina do Executivo”, enquanto o Estado brasileiro amarga uma fragilidade jamais vista.

O docente, que, antes mesmo da posse do atual governo, já previa tempos de “muita tensão entre os Poderes e setores da sociedade” com Bolsonaro na presidência, frisa que cada vez que um governante se apresenta como fonte da lei, da força e da ordem econômica, ele fragiliza ainda mais as instituições.

Roberto Romano, que também havia previsto que Sérgio Moro e Bolsonaro poderiam se tornar adversários, agora vislumbra que o presidente sairá bem menor da crise do novo coronavírus, com prejuízos para seu projeto de reeleição. Segundo o docente, o desrespeito do presidente às normas da Organização Mundial da Saúde (OMS) e o menosprezo ao potencial devastador da covid-19 serão fortemente cobrados, dentro e fora do país.

A entrevista é de Jorge Vasconcellos, publicada por Correio Braziliense, 31-05-2020.

Eis a entrevista.

Em novembro de 2018, logo após a eleição do presidente Jair Bolsonaro, o senhor fez algumas previsões sobre o futuro presidente, em entrevista ao correio. Disse que se ele governasse apenas para seus seguidores, e não para todos os brasileiros, teria prejuízos políticos, como o isolamento. Isso se confirmou?
Eu acho que sim, porque, veja, não era apenas uma questão de leitura do que viria, mas uma leitura do passado. Quem acompanhou a vida política do Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados e desde o período que ele pertencia ao Exército, nota que ele tem traços muito graves daquilo que o Theodor Adorno chamaria de personalidade autoritária. Ele nunca se deu ao trabalho de ter um trato parlamentar no sentido mais clássico da palavra, de agregar, de votar, de discutir. Sempre foi peremptório, passando palavras de ordem, não aceitando o contraditório, o que é complicadíssimo na vida parlamentar.

E, quando foi eleito, certamente aquele episódio do atentado contra ele criou uma expectativa muito grande, e isso dava para notar naquele momento, de certo messianismo. Isso foi exasperado pelos setores chamados evangélicos, que o apoiam, e que, inclusive, fizeram trocadilho com seu nome, o Messias, e tudo mais. Somado a um tipo de personalidade que não pergunta, não dialoga, não discute e não propõe, além do fervor religioso, só poderia ter um governo de cunho autoritário.

O presidente, cada vez mais isolado politicamente, está concedendo cargos importantes ao Centrão em troca de apoio no Congresso, o chamado toma lá, dá cá, que ele sempre criticou. Por que ele chegou a esse ponto?
Em primeiro lugar, é uma situação que piorou muito: no tempo do Jânio Quadros, você tinha partidos fortes, como o PSD e o PTB, que haviam sido organizados por Getúlio Vargas e tinham uma estrutura muito forte, vertical, que atendiam a determinados setores de classe. O PSD atendia à classe média alta; e o PTB aos interesses dos operários. Esses partidos tinham como inimigo a UDN, que era um partido forte também, que reunia delegados liberais e, ao mesmo tempo, recursos econômicos bastante elevados. Então, havia partidos políticos. No caso do Fernando Collor de Mello, ainda havia partidos políticos. O país tinha acabado de sair de um regime ditatorial, o MDB estava coeso ainda, não tinha perdido a essência de partido de oposição à ditadura; e a Arena tinha se transformado no PFL.

Hoje, os partidos se dissolveram de tal modo que você não tem mais nenhum setor do Congresso que reúna políticos capazes de propor um projeto e um programa para o Brasil alternativo ao do Executivo. E aí o problema é muito grave porque você não vê mais possibilidade de diálogo. Se o presidente não tem diálogo com o MDB, se diálogo com a oposição ele não tem, pra onde ele vai se virar? Pequenos partidos que se formaram nos últimos tempos, como o Novo, romperam com ele. A única opção que lhe coube foi voltar para aquele clube em que ele trabalhava. Ele viveu sempre dentro do Centrão.

O presidente está colhendo o que plantou?
Eu acho que ele está pagando um preço altíssimo. Fora aqueles 25% que são seguidores incondicionais dele, está havendo uma desidratação do seu eleitorado justamente por causa desse tipo de coisa. Em primeiro lugar, ele comprou uma estrela de primeira grandeza do moralismo nacional, o Sérgio Moro. Ele era, digamos assim, um salvo conduto para vastos setores da classe média brasileira. Quem acompanhou a vida de Moro sabia que ele não estava lá pelos belos olhos do Bolsonaro.

Na entrevista de 2018, o senhor considerou “um golpe de mestre” o convite para Moro chefiar o Ministério da Justiça, mas, ao mesmo tempo, o senhor anteviu que o ex-juiz poderia se tornar um adversário do presidente, em razão do prestígio adquirido
com a Lava-Jato.
O presidente perdeu esse apoio grande. Significa que aquela folha de parreira de moralidade está rachada no meio: uma parte ficou com o Sérgio Moro; e a outra, com os generais, que ainda mantêm certo padrão de decoro. E aí o presidente caiu num desespero absoluto. Eu acho que essas gritarias que ele promove, esses “bastas”, “chegou ao limite”, esses ataques frequentes, o que vai ocorrer hoje (possíveis manifestações), isso aí é prova de que ele não está controlando a si mesmo nem controlando a máquina do Executivo.

O senhor também previu tempos de “muita tensão entre os Poderes e setores da sociedade” com Bolsonaro na presidência, em razão de seu perfil autoritário. Mais uma confirmação?
Infelizmente, com toda tristeza do mundo, sim. Eu preferia que ele fosse um governante conservador, mesmo reacionário, mas que não entrasse, que não enveredasse por esse caminho. O problema não é o Bolsonaro; o problema não é o ministro Alexandre (de Moraes, do STF). Isso é um ponto em que eu divirjo muito dos meus colegas e dos seus colegas jornalistas. Quando eles terminam uma exposição de doutorado, eles dizem “as instituições estão funcionando normalmente”.

As instituições brasileiras nunca funcionaram normalmente. O imperador, para começar, já deu um golpe, já fechou a Câmara. Essa tradição é muito antiga no Brasil, você não ter instituições que se tornem sólidas, maduras. Ao contrário do que acontece nos Estados Unidos da América, com todo o pandemônio criado pelo efeito Trump, você ainda tem as instituições funcionando permanentemente e de modo correto. Assim também ocorre na França, na Alemanha, que passou pelo nazismo.

No Brasil, isso nunca houve. Cada vez que um governante tenta a aventura de se transformar na grande fonte da lei, da força e de toda a ordem econômica, etc., ele fragiliza ainda mais as instituições. Então eu acho que, infelizmente, nós caminhamos para uma fragilidade enorme, e não é questão de usar um cabo e um jipe, não; é um desgaste interno. Você vê uma espécie de implosão do Estado brasileiro. E nessa implosão não se vê muitas saídas.

Um dos componentes da crise é a insistência do presidente de, sob o argumento de preservar a economia, acabar com o isolamento social adotado pelos estados para frear a pandemia. E muitos seguidores do presidente têm saído às ruas, se expondo ao coronavírus, enquanto as mortes por covid-19 crescem exponencialmente no país. O que pensa disso?
Os promotores públicos já estão advertindo o governo paulista de que é preciso tomar providências contra os saques, contra as rebeliões. Não é palavra de Cassandra. Os dirigentes militares deveriam estar atentíssimos a isso. O presidente incentiva os seus seguidores a assumirem uma atitude altamente perigosa contra a imprensa, contra as outras instituições; ele é uma espécie de team leader, ele puxa o coro, ele comanda e puxa o coro. Olha, se não tivéssemos essa pandemia, nós estaríamos em um pandemônio. Imagine todos aqueles que são ofendidos, furiosos com os adeptos dele andando pelas ruas.

Alguns generais aposentados que o apoiam falam que é possível até uma guerra civil. Eu não acho que isso seja possível tão imediatamente, mas se continua esse tipo de coisa, é perfeitamente possível. O Brasil não é jejuno em guerra civil. Na história do Brasil, de 1500 até hoje, você vê que, por exemplo, o século XIX foi fértil em rebeliões, em insurreições, justamente aplacadas pelo exército nacional.

Em 1999, o deputado Jair Bolsonaro disse que, para o Brasil ter jeito, precisaria haver uma guerra civil que matasse 30 mil pessoas. Na reunião ministerial de 22 de abril, ele afirmou que está armando a população. Seria uma ideia fixa do presidente?
Primeiro, esse tipo de comentário sobre o fato de o Brasil não ter tido uma guerra e que, portanto, precisaria ter uma revolução na qual morresse muita gente para regenerar, isso é uma conversa da extrema-direita que vem do século 19. Nos anos 1960, essa ideia era bastante veiculada na sociedade e nos órgãos repressivos do Estado ditatorial. Então, se você fizer um levantamento, verá que isso já é definido como ideologia sub-reptícia. E é falso, porque o sangue aqui no Brasil já jorrou para tudo que é lado.

A história brasileira não é de um povoamento pacífico; pelo contrário, os bandeirantes eram extremamente armados,violentos. Ao longo do período colonial, houve levantamentos, guerras contra os holandeses, contra os franceses; houve guerra com os índios. Houve, no século XIX, como eu dizia, várias e várias insurreições, que buscaram a separação do Estado e outros objetivos.

A democracia brasileira está em risco?
Esse é um ponto que eu gosto sempre de sublinhar. Veja, a democracia é um regime que, desde o seu nascimento, na Grécia, está sempre em risco. Porque não existe nenhum regime político estável. Isso é um plano, um paradigma, uma procura. Como a sociedade humana é uma sociedade inquieta, cheia de interesses contraditórios, violenta, muitas vezes, cheia de preconceitos, desde a Grécia você tinha uma instabilidade tremenda.

Vem daí a preocupação dos filósofos, dos puristas gregos de fazer propostas de constituições para a Grécia que, digamos, remediassem os problemas da democracia. E são muitos os problemas da democracia grega. Então, a democracia sempre estará em xeque, em perigo. A diferença é que quando você percebe que ela está em perigo, você faz uma espécie de radiografia para ver em que pontos ela está piorando, em que ponto ela está sendo doentia e não saudável.

O presidente Bolsonaro sairá maior ou menor da pandemia?
Ele vai sair menor. Nem ele nem seus assessores estão contando com isso, mas acontece que, por menor que seja o papel do Brasil na cena internacional, hoje o país é visto com olhos muito críticos por todos os Estados do mundo. Você vai ter problemas de ordem de autoridade interna e externa. Ilude-se a pessoa que imagina que, chegando ao ápice do Estado nacional, não terá de enfrentar outros Estados e o juízo de outros Estados. E a performance de Bolsonaro tem sido tremendamente pobre.

Nos primeiros momentos dessa pandemia, ele se limitou a imitar Donald Trump, e de uma forma caricatural. E Donald Trump não é propriamente um exemplo de grande estadista, de grande amigo da ciência. Ele próprio está tendo problemas para se explicar sobre o avanço da pandemia nos Estados Unidos. Nós não sabemos, aí eu rezo para Deus para que o coronavírus não seja tão mortal, mas nós não sabemos quantos mil morrerão no Brasil. E, certamente, as frases do presidente, como “isso é uma gripezinha” , serão cobradas nacional e internacionalmente. Eu vejo, também, que naquela base de 25% que o apoiam tem tido muita desidratação.

Bolsonaro tem contra si mais de 30 pedidos de impeachment protocolados na Câmara. Ele completará o mandato?
Eu diria para você que não sei o que vai acontecer com todas as instituições brasileiras daqui a 30 dias. Olha, eu tenho 74 anos, passei pela ditadura, passei pelos regimes supostamente civis, enfim, vi muita coisa e conheço muita coisa da história do Brasil. Eu digo a você que nunca vi maior fragilidade geral do Estado brasileiro como estou vendo neste momento.

Se ele termina o mandato ou não; se o STF consegue impor a sua autoridade ou não; se a Câmara dos Deputados e o Senado conseguem encontrar um modus operandi que tenha, pelo menos, a aparência de democracia ou não; se o Exército vai atender ao apelo da legalidade e da Constituição ou não; tudo isso para mim é uma incógnita. Respostas muito rápidas que podem ser dadas, a meu ver, demandam muita reflexão. Volto àquela questão de que as instituições estariam funcionando normalmente. Elas não estão. Neste momento, estão com a sua fragilidade agravada, inclusive o Executivo.
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Fonte:  http://www.ihu.unisinos.br/599501-nunca-vi-maior-fragilidade-geral-do-estado-brasileiro-como-estou-vendo-neste-momento-entrevista-com-roberto-romano 01/06/2020

domingo, 31 de maio de 2020

INTOLERÂNCIA

Umberto Eco

O escritor italiano Umberto Eco Foto: Andrea Barbiroli/Estadão

Pensador italiano previu a onda de migração em massa em direção à Europa

Elias Thomé Saliba*, O Estado de S.Paulo 
 
27 de maio de 2020

Todos conhecem a divertida passagem de O Ingênuo, de Voltaire, na qual o índio Hurão, que havia deixado a América para visitar a Inglaterra, é quase forçado a passar pelo rito da confisssão com um frade, após este impingir-lhe a epístola de S.Jacques: “Confessai-vos uns aos outros”. Terminada a confissão, o hurão obriga o frade a trocar de lugar com ele, e colocando-o de joelhos anuncia que o religioso também não sairia dali até que confessasse todos os seus pecados. Esta passagem é um chamariz para Experiências de Antropologia Recíproca, um dos quatro ensaios, sendo dois deles inéditos, de Umberto Eco, reunidos em Migração e Tolerância.

Como são ensaios derivados de intervenções e conferências, realizadas entre 1997 e e 2012, vemos um Eco muito mais à vontade, sem perder a verve, fluência e a erudição que caracterizam sua obra. Suas referências históricas surpreendem: para exemplificar como diferentes civilizações criam seus próprios calendários e respectivas teogonias - e que a cristã é apenas uma entre muitas - retira lá do século 17, o obscuro herege Isaac de la Peyrère, que revelou que cronologias chinesas eram muito mais antigas que as hebraicas, aventando a hipótese de que o pecado original envolvesse apenas a posteridade de Adão, mas não de outros povos, surgidos muito tempo antes. 

Num dos ensaios mais incisivos, Eco procura mostrar que a intolerância quase sempre vem antes de qualquer doutrina, ou seja, a intolerância já existe difusamente na vida cotidiana e alcança até alguma popularidade, antes de se constituir em seitas fundamentalistas, como o integrismo ou o racismo pseudocientífico. A intolerância – argumenta – chega mesmo a ter raízes biológicas, manifesta-se entre os animais como territorialidade, baseia-se em relações emocionais, muitas delas completamente superficiais, mas renitentes: não suportamos os que são diferentes de nós porque têm a pele de cor diferente, falam uma língua que não compreendemos, ou porque comem rãs, cães, macacos, porcos, alho, ou são tatuados. Assim, não são as doutrinas da diferença que produzem a intolerância selvagem, ao contrário, estas desfrutam de um fundo preexistente de difusa intolerância. Foi assim que o antissemitismo pseudocientífico surgiu no decorrer do século 19 e acabou transformando-se em antropologia totalitária e na mais perversa prática industrial do genocídio no século 20. Porém, não poderia ter nascido se já não existisse um antissemitismo popular, já fortemente disseminado – e dissimulado - nos séculos anteriores. Com exemplos curiosos colhidos do universo medieval e mesmo do mundo renascentista, Eco demonstra que todas as teorias e doutrinas da intolerância apenas nasceram e exploraram um ódio pelo diferente que já existia. Escrevendo em 2012, Eco observa, de forma presciente, que o novo fenômeno do antissemitismo não é uma doença marginal que afeta apenas uma minoria lunática, mas o fantasma de uma obsessão milenar. 

Eco não menciona diretamente o conto de Voltaire, mas o episódio serve como inspiração para definir o que ele chama de antropologia recíproca: não mais uns (ativos) observando outros (passivos), mas uns e outros como representantes de culturas diversas analisando-se face a face e mostrando como podemos reagir de maneiras diferentes, aprendendo com a diversidade. Hoje, como ontem, é tarefa difícil lutar contra a intolerância selvagem, porque diante da animalidade pura o pensamento esmaece. Pior ainda quando a intolerância se faz doutrina: aí já é muito tarde para vencê-la, e aqueles que deveriam fazê-lo tornam-se suas primeiras vítimas. Muito desta onda de intolerância acaba se deslocando para as migrações em massa, as quais, sobretudo em relação à Europa, tornam-se fenômenos incontroláveis que Eco, escrevendo em 1997, conclui com um notável prognóstico: “no próximo milênio( e como não sou profeta não posso especificar a data), a Europa será um continente multirracial ou, se preferirem, ‘colorido’. Se lhes agrada, assim será; se não, assim será da mesma forma.” 

Afinal, o migrante, seja ele quem for e de onde vier, sofre na pele o trauma do dezenraizamento, mas também ensina lições novas e aquela singular diversidade que cresce e se fertiliza, ao eliminar fronteiras entre o estranho e o conhecido. O que faz lembrar da frase de Hugues de Saint Victor, a qual noutra obra, Eco traduziu direto do latim: “Quem acha sua pátria doce é ainda um tenro aprendiz; quem acha que todo solo é como o nativo, já é forte; mas, perfeito é aquele para quem o mundo inteiro é um lugar estranho”. 
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* Elias Thomé Saliba é historiador, professor titular da USP e coordenador do site: humorhistoria.wordpress.com
FONTE:  https://alias.estadao.com.br/noticias/geral,ensaios-ineditos-de-umberto-eco-tratam-da-intolerancia,70003310551

Pandemia faz emergir "o porco e o santo" em cada um de nós, define professor da PUCRS


Camila Cunha / PUCRS,Divulgação
 Marques de Jesus: "Durante a epidemia, temos visto emergir o que há de melhor e pior no ser humano"Camila Cunha / PUCRS,Divulgação

Docente na Escola de Humanidades e coordenador do curso de Filosofia da universidade, Luciano Marques de Jesus avalia isolamento social: "Nem todos aprenderão com a atual experiência"

27/05/2020 - 15h29minAtualizada em 27/05/2020 - 15h33min

Daniel Feix

Situações extremas, como a pandemia de coronavírus, podem nos despertar para uma consciência até então adormecida, acreditam alguns filósofos que têm feito reflexões sobre o momento atual. Mas, ao mesmo tempo, também podem ressaltar o lado mais sombrio das pessoas, pontuam outros. É a “emergência do porco e do santo”, resume o professor Luciano Marques de Jesus, da Escola de Humanidades da PUCRS, referindo-se ao que há de nobre e abjeto no ser humano. Na entrevista a seguir, o professor, que coordena o curso de Filosofia na universidade, faz cogitações sobre como tendemos a sair da crise, que tem origem sanitária e que pode nos afetar como indivíduos e também seres sociais.

A morte parece mais próxima em uma pandemia. Como essa experiência pode nos influenciar?
Nossa sociedade nega a morte. Por um lado, a morte é tabu. Por outro, é banalizada e espetacularizada. Se há uma pessoa doente na família, a palavra morte é proibida, nos programas policiais vespertinos é vulgarizada e, não raro, comemorada. Na área da saúde a palavra não existe. As pessoas não morrem, evoluem a óbito. Tudo isso talvez porque, para muitos, a morte represente a derrota última. Mas a pandemia nos confronta com a morte! Deveríamos aprender com Rubem Alves que a consciência da morte nos torna mais libertos, preocupados com aquilo que efetivamente importa, que vale a pena dar valor. Se morrêssemos hoje, qual o significado de toda a preocupação de ontem? Vale a pena dar a importância a tantas inquietações? Talvez pouca coisa nos seja necessária, talvez uma só! Curioso ser humano! O único animal que sabe que vai morrer e vive como se nunca fosse morrer. Tomara que saiamos dessa experiência dando maior valor à vida. Essa é uma oportunidade que temos. Infelizmente, nem todos vão aproveitá-la.

O senhor é um estudioso da logoterapia, que preconiza que a chave interpretativa do ser humano é a vontade de sentido, e não de prazer ou poder. A logoterapia surgiu quando seu fundador, Viktor Frankl (1905-1992), refletiu sobre sua experiência nos campos de concentração nazistas. O quanto experiências dramáticas (como uma pandemia) podem nos mostrar o sentido da vida?
A logoterapia propõe que o motor da vida humana, a verdade que sempre volta é a vontade de sentido. A questão do sentido persegue o fundador da logoterapia desde sua juventude, quando, numa aula de história natural, o professor ensinava que a vida pode ser reduzida a dois processos, oxidação e combustão. O jovem Frankl questiona: se é assim, que sentido tem a vida? O campo de concentração foi o terrível laboratório que validou as intuições de Frankl, mostrou que as chaves interpretativas de Freud (prazer) e Adler (poder) são insuficientes para mostrar o motivo por que as pessoas continuariam a dizer sim à vida, não obstante todo o horror que as circunvizinhava. A teimosa vontade de fazer que a vida faça sentido, essa é a chave interpretativa do ser humano segundo a logoterapia. Freud tinha a ideia que, se todos fossem submetidos aos seus instintos, por exemplo, se todos passassem fome, seriam iguais. O campo de concentração e outras situações de extrema crise, como essa pandemia, mostram o contrário: trazem a lume a emergência do que há de mais elevado, nobre e sublime no ser humano e, também, o que há de mais baixo, asqueroso e abjeto; ou, na dura expressão de Frankl, a emergência do porco e do santo.

Curioso ser humano! O único animal que sabe que vai morrer e vive como se nunca fosse morrer. Tomara que saiamos dessa experiência dando maior valor à vida. Essa é uma oportunidade que temos. Infelizmente, nem todos vão aproveitá-la.
Muito se tem dito que todos sairemos da pandemia transformados em algum sentido. Há quem diga que seremos menos individualistas. O senhor concorda com essa ideia?
Mais do que concordar, eu torço para que isso aconteça! No entanto, não podemos nos iludir, já durante a epidemia temos visto emergir o que há de melhor e de pior no ser humano. Muita solidariedade e voluntariado, mas também oportunismo, golpes e manifestações de interesses egoístas. Penso que a vida pós-coronavírus tem tudo para ser melhor, mas nem todos aprenderão com a experiência. Mario Sergio Cortella afirma que a ocasião não faz o ladrão, ela apenas o revela! Vamos aguardar para ver quais revelações o futuro nos revelará.

Temos visto alguma virulência no debate público, e não só no campo político. O negacionismo à pandemia se alinha a isso à medida que sugere interpretações rasas e pré-concebidas do mundo. O quanto essa situação de conflito pode ser afetada por este momento de crise e isolamento das pessoas?
O cientista e professor Marcelo Gleiser, perguntado por um aluno da Especialização em Filosofia e Autoconhecimento da PUCRS sobre o que ele pensava a respeito da volta do terraplanismo, respondeu com uma palavra: triste! É uma tristeza ver menosprezo pela ciência, negacionismo, movimento contra as vacinas. De um lado, essas visões equivocadas – não gosto do adjetivo “medievais”, ele é ofensivo, mas para a Idade Média! – podem prejudicar o combate ao vírus, mas também torço para que sejam desmascaradas. É impressionante a capacidade brasileira de politizar e ideologizar uma pandemia! Sobre a defesa do uso de medicações específicas por pessoas que passam longe da área da saúde, só resta o meu estarrecimento. De uma velha canção portuguesa, citada pelo saudoso senador Jefferson Peres: “Tudo isto existe; tudo isto é triste; tudo isto é fado!”.
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Esperanças


Lya Luft*
 Reconstruir a esperança « Paróquia Porciúncula de Sant'ana
(Aqui respondo ao pedido especial de alguém que ainda não conseguiu meu livro As Coisas Humanas, que aguarda livrarias abertas, portanto sendo comprado online.)
Não vou falar de cidade, Estado, continente, nem mesmo planeta.

Pois esses, eu sei, são terra de seus habitantes, por sorte e azar deles. Falo desta terra interior, e da vida, que pouco se controla. Que nos surpreende tão lindamente às vezes, e em outras com uma patada mortal, o trator existencial passando por cima da gente - e fim de uma alegria, uma felicidade, uma luz, uma pessoa amada. (Ou uma trágica pandemia destruindo boa parte do mundo que conhecíamos.)

Mas gosto de pensar neles, de curtir esses presentes positivos que o destino nos traz. Como quando abro a janela e diante de mim, um luxo que não me pertence e que só curto do meu apartamento: um parque bem cuidado com vários jacarandás. Em outras épocas, paineiras em flor parecem um sorvete de morango se derramando sobre as outras árvores mais baixas (sim, gulosa desde criança).Ou alguém me diz, inesperadamente, encantadoramente: "Tu és uma vó muito divertida!", e isso me ilumina um dia inteiro. Ou cai da agenda um poema que alguém me escreveu há décadas, e ainda vale. Valeu mesmo que essa pessoa tenha sumido, morrido, ou esteja logo ali e tenha esquecido o poema.

Ou num aeroporto estrangeiro, uma brasileira toque meu ombro para perguntar se eu sou eu, sorrir, abraçar e dizer uma porção de coisas boas sobre meus livros. Espantando assim meu desconforto com aviões e aeroportos. Fazendo eu me sentir em casa, mesmo quase do outro lado do mundo.

Mas não somos terra de ninguém na medida em que coisas boas nos habitam: projetos ou sonhos, realizações ou desejos, pessoas, memórias, experiências inesquecíveis, livros, filmes, não faz mal. Somos terra povoada por muita coisa: que seja boa, que seja bela, que nos ajude.

Pois viver pode ser interessante, instigante, mas em algumas fases cansa, e como. Cansa abrir os olhos interiores antes de descerrar as pálpebras e dar-se conta: mais um dia. Ter um artigo para escrever, contas a pagar (até isso é a vida!) e livros para ler, muitos e bons. E a casinha da serra nos esperando, com flores, bugios, singulares borboletas de um azul muito pálido e vizinhas e amigas -, e quando quero, quietude maravilhosa olhando as árvores, que digo minhas porque a vida me presenteou com elas e acho que me protegem.

Enfim, o jeito é bancar o guerreiro e não entregar os pontos, pensando que não há só desgraça e discórdia, e quem sabe vamos todos nos abraçar, e rir, e relevar todos os mal-entendidos e brigas que, acreditem, não valem a pena. (Grande ilusão da minha infância.)

Pois o bom é poder ser território de amores, amizades, desejos, trabalhos, conquistas e mesmo fracassos, mas estando aqui, estando vivos - ah, e, apesar de tudo, curtindo as esperanças.
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* Escritora.
Fonte: https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=8b430fa12793a41499cd660bfbeb48b8
Imagem da Internet 

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Nobel da Paz: trazer à tona os rios subterrâneos da solidariedade

Adolfo Pérez Esquivel, Prêmio Novel da Paz

"Minha esperança está nos jovens que devem descobrir a si mesmos e descobrir os caminhos da vida, da espiritualidade, dos valores. Devem tornar-se protagonistas de suas vidas e construtores de sua própria história". 
 Palavras do Prêmio Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel, em entrevista ao L' Osservatore Romano
 
Piero di Domenicantonio

Mesmo em casa, em Buenos Aires, onde a pandemia o obrigou a permanecer em isolamento, Adolfo Peréz Esquivel - oitenta e oito anos, Prêmio Nobel da Paz em 1980 - não parou por um momento, continuando a se dedicar à causa de sua vida: estar ao lado daqueles que não têm voz para reclamar pão, paz e justiça. "Mesmo nestes dias estamos trabalhando muito”. “Tentamos ajudar as pessoas que o Papa Francisco chama de "descartadas". Em Tartagal, na província de Salta, a mais de 200 quilômetros de Buenos Aires, estamos apoiando as comunidades indígenas dos Wichís. Eles precisam de água potável e nós queremos ajudá-los a construir um poço, mas não sabíamos por onde começar. Então, por acaso, chegou um telefonema de Alfredo, um ex-aluno meu que há anos não nos falávamos. ‘Eu sei como fazer poços de água", disse ele, "se quiser posso ensiná-los’.

Que sorte, hem?
Não, eu não acredito na casualidade

Adolfo Peréz Esquivel conheceu muitas crises durante sua vida. E ele sempre as enfrentou "pegando na massa" e pagando pessoalmente quando a vida e a dignidade dos mais fracos estão em jogo. Porém, também para ele a pandemia da Covid-19 representa um evento inédito que ele tenta ler à luz de seu apaixonado compromisso civil e de sua fé "franciscana".
Como está sendo enfrentada a pandemia na América Latina?
Esquivel: A Covid-19 se espalhou por todos os países da América Latina com sérias consequências. Os ambientes sociais mais afetados são os mais pobres, onde há falta de água, higiene e alimentação. Refiro-me às villas misérias, favelas, callampas, tugurios: a pobreza muda de nome em todos os países, mas em todos os lugares ela tem o mesmo rosto. O governo argentino está tentando dar ajuda e tem tomado medidas especiais de saúde nos bairros mais pobres. Mas, apesar da grande solidariedade social, os esforços nunca são suficientes. O presidente disse: "uma economia pode ser recuperada, uma vida não pode". A vida do povo tem prioridade". Isto tem ajudado a conter e diminuir o andamento da propagação do vírus através de medidas de higiene, controle sanitário e isolamento. Mas essas mesmas medidas têm tido sérias repercussões nas atividades comerciais, culturais, educacionais e religiosas, onde a alta concentração de pessoas gera medo de contágio. A "Comisión Provincial por la Memoria", à qual presido, monitora a situação nas prisões e delegacias através do "Comité contra la Tortura". Prisões superlotadas são como depósitos humanos e em tais condições ninguém pode sair bem delas. O fato de estarem cumprindo uma pena e sendo privados de sua liberdade não deve significar que os prisioneiros percam seus direitos como cidadãos. Tem havido tumultos em várias instituições penais, justamente por causa da falta de atendimento à saúde e da repressão exercida pelos guardas prisionais em face dessas demandas.

Além da emergência sanitária há a social.
Esquivel: Em todo o continente latino-americano, como no resto do mundo, as consequências da pandemia para a saúde representam um forte condicionante para o desenvolvimento econômico e social: milhões de mortes e um alto índice de desemprego e pobreza. A situação é agravada pela forte pressão exercida sobre o povo por causa da "dívida externa". É uma situação que pode levar o mundo a uma "pandemia de fome". Este perigo deve ser enfrentado e deve-se preparar em tempo. Estamos no fim de uma era da humanidade. É preciso, portanto, reconsiderar os caminhos a seguir, levando em conta o que as consequências da pandemia. Precisamos saber o que fazer no "dia seguinte" e começar a construir novos paradigmas de desenvolvimento humano.

O que está acontecendo com os povos indígenas da Amazônia?
Esquivel: As comunidades indígenas da Amazônia lançaram um apelo urgente por causa da violência que estão sofrendo e pela destruição do meio ambiente causado pelos incêndios da floresta assim como a devastação da fauna e da biodiversidade. Eles têm denunciado a perseguição que sofrem dos latifundiários, muitos dos quais contratam quadrilhas armadas para tomar a terra e expulsar os povos indígenas, condenando-os à fome e à extinção.

O Papa Francisco disse várias vezes que ninguém se salva sozinho.
Esquivel: O Papa apela à consciência e ao coração dos poderosos e diz que "ninguém se salva sozinho". Para construir uma sociedade onde o direito e a igualdade sejam válidos para todos, é necessário difundir a cultura da solidariedade.

Solidariedade entre os homens, mas também com a natureza. É este o sentido da iniciativa da Constituinte para a Terra que o senhor promove?
Esquivel: A Constituinte para a Terra, criada por iniciativa de Raniero La Valle, responde à necessidade da humanidade de gerar novos caminhos para refundar o "contrato social", baseando-o em um novo constitucionalismo mundial que garanta o respeito aos direitos fundamentais, como a saúde, a educação, a paz e o meio ambiente. O Papa Francisco explica isso bem na Encíclica Laudato si’, ao lembrar a responsabilidade de cada um como guardião da casa comum, enfatizando a urgência de restaurar o equilíbrio entre a Terra Mãe e os bens destinados ao desenvolvimento do ser humano. Devemos ter em mente que o homem não é o patrão da natureza: somos parte dela e devemos respeitá-la, cuidar dela para o bem de toda a humanidade. A comunidade internacional, no final da Segunda Guerra Mundial, estabeleceu através da ONU códigos de conduta, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, pactos e protocolos, a fim de estabelecer regras de convivência entre as pessoas e os povos. Infelizmente, há países que não os respeitam. Basta pensar na grave situação vivida por pessoas sujeitas à violência, refugiados fugindo de seus países, vítimas de conflitos armados, fome e mudanças climáticas. Muitos homens, mulheres e crianças perdem suas vidas no mar, que se tornou a vala comum de milhares de refugiados que deixam suas terras em busca de novos horizontes de vida e esperança. O Estatuto de Roma de 1998 criou o Tribunal Penal Internacional, responsável por julgar aqueles que cometem crimes contra a humanidade. É hora de reformar esta instituição para que ela também possa processar crimes contra a natureza, uma vez que atualmente não existe um quadro jurídico que regule os crimes ambientais. É urgente proteger bens como a água, rios e mares, florestas, fauna e biodiversidade, que são a grande riqueza que a Mãe Terra nos oferece e que hoje mais do que nunca estão em perigo.

Para proteger nossa saúde, todos esses meses experimentamos o que significa ser privados de certas liberdades. O que essa experiência pode nos ensinar?
A pandemia da Covid-19 nos apresentou situações sem precedentes em nível planetário. Atualmente não existem vacinas ou antídotos para derrotar a Covid-19. Países com grandes recursos econômicos e científicos também são vítimas da pandemia. As únicas formas identificadas até agora para conter a propagação da pandemia têm sido a distância e a tomada de medidas higiênicas em casa e em outros lugares que frequentamos. Tudo isso não deve ser visto como uma perda de liberdade, mas como algo necessário para nos proteger e proteger os outros.

A Covid-19 tem exposto as limitações e fragilidades dos nossos modelos de desenvolvimento. Como podemos evitar cometer os mesmos erros?
Esquivel: Diante de sociedades marcadas pelo individualismo e pelo consumismo, diante de megalópoles com altíssima densidade populacional e problemas estruturais entre ricos e excluídos, os pobres, é preciso promover uma cultura de solidariedade e de partilha de bens com os mais necessitados. Não devemos esquecer que o problema dos outros é um problema para todos.

Qual é a sua oração neste período conturbado?
Esquivel: Precisamos da oração para caminhar pela vida. É por isso que eu invoco o nosso Pai para me conceder a força do espírito. As outras preces que me acompanham são a de São Francisco: "Senhor, fazei de mim um instrumento de paz", e a dos irmãos da fraternidade de Charles de Foucault: "Meu Pai, eu me coloco em tuas mãos".

Há esperança para o futuro?
Esquivel: Um poema de Antonio Machado diz: "viajante, não há caminho, o caminho se faz caminhando". Minha esperança está nos jovens que devem descobrir a si mesmos e descobrir os caminhos da vida, da espiritualidade, dos valores. Eles devem saber que entre as luzes e sombras da existência há sempre a esperança de construir um outro mundo mais justo e fraternal. É necessário trazer à tona os rios subterrâneos, aqueles que não fluem para a superfície, mas que existem e que em certos momentos da história dos povos adquirem força e emergem, arrastando no seu fluxo tudo o que encontram. Portanto, os jovens, homens e mulheres, devem deixar de ser espectadores. Eles devem tornar-se protagonistas de suas vidas e construtores de sua própria história. O Papa Francisco os desafiou dizendo: "hagan lío", "façam-se ouvir". Os jovens devem ser como os rios subterrâneos que emergem com a força da vida e da esperança.
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Fonte:  https://www.vaticannews.va/pt/mundo/news/2020-05/entrevista-esquivel-nobel-paz.html

CRUZAMOS A LINHA DA DEMOCRACIA


 — Foto: Lula

Cientista política diz que na democracia não se governa apenas para os seus: “Vivemos um dos momentos mais tristes da nossa história”


Por Adriana Abujamra — Para o Valor, de São Paulo

29/05/2020


Já era noite em Nova York. A cientista política Ilona Szabó lia; a filha, Yasmin, dormia; e seu marido, o também cientista político canadense Robert Muggah, estava ao computador. Lá pelas tantas, ele deu um salto e anunciou num fôlego só: “Empacote tudo, vou buscar o carro, a gente vai para o Canadá”.

Muggah acabara de descobrir que as fronteiras entre os dois países seriam fechadas. Ilona o convenceu a partirem no dia seguinte, bem cedo. Só na estrada o casal teve tempo de explicar para a filha o motivo da correria e buscar, por telefone, um lugar para se hospedar em uma cidadezinha próxima a Toronto, onde vivem os pais do cientista político.

Àquela altura, meados de março, os Estados Unidos eram o epicentro da pandemia de covid-19. Quase ninguém queria recebê-los. Apenas um locatário se prontificou, mas o contrato acabaria no fim deste mês. “Foi traumático. Nossa vida estava toda acertada em Nova York. Estamos aqui de quarentena, sabe-se lá até quando. Não faço ideia do que vamos fazer depois”, diz Ilona, rosto lavado, camisa preta, sentada de costas para a porta do escritório improvisado em um dos dormitórios. A maior parte de seus pertences ainda está em caixas e malas. 

 Ilona e Yasmin, em casa, no Canadá: “Carregava comigo o ‘soft power’ brasileiro, criava empatia. Mas agora há decepção com o Brasil”, diz a cientista política — Foto: Reprodução

Ilona e Yasmin, em casa, no Canadá: “Carregava comigo o ‘soft power’ brasileiro, criava empatia.
Mas agora há decepção com o Brasil”, diz a cientista política 
— Foto: Reprodução

Um de seus maiores desafios tem sido conciliar o trabalho com a agenda escolar da filha. Com 6 anos, Yasmin não tem autonomia nem paciência para aguentar horas a fio de aulas on-line. Já o cuidado com a casa não é novidade. Prescindir de ajudantes é praxe em muitos países fora do Brasil. Ilona já morou em seis antes do Canadá - Letônia, Suécia, Suíça, Noruega, Colômbia e Estados Unidos. Bastava dizer de onde vinha para fazer sorrir o ser mais sisudo. Não mais.

Os comentários que ouve hoje são de espanto: pela maneira com que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) tem lidado com a crise sanitária, com os direitos humanos e o meio ambiente. “Carregava comigo o ‘soft power’ brasileiro, criava empatia. Mas agora há uma decepção com o Brasil. Essa perda imaterial é brutal.” Ilona saiu do Brasil no ano passado, de forma menos brusca do que a fuga para o Canadá, mas nem por isso menos traumática.

A cientista política tem 42 anos, é mestre em estudos de conflito e paz pela Universidade de Uppsala, na Suécia, e é autora de dois livros: “Drogas, a História que Não Te Contaram” (2017) e “Segurança Pública para Virar o Jogo” (2018), ambos publicados pela Zahar. É fundadora e diretora-executiva, com o marido, do Instituto Igarapé, que se dedica a políticas públicas para a redução da violência. A entidade atua no Brasil e também em países da América Latina, dos Estados Unidos, da Europa e África.

Nos termos de Bolsonaro, porém, a cientista política é “abortista” e “defensora da ideologia de gênero”, como disse no pronunciamento que fez após o estrondoso pedido de demissão de Sergio Moro, em abril, e novamente na semana passada, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou a divulgação dos vídeos da reunião ministerial de 22 de abril. No encontro, o presidente defendeu o armamento da população. “Por que que eu tô armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura! E não dá pra segurar mais! Não é? Não dá pra segurar mais. (...) É escancarar a questão do armamento aqui. Eu quero todo mundo armado! Que povo armado jamais será escravizado.”

“Tudo indica que ele [Bolsonaro] está armando sua base e incitando a paranoia, para recorrer ao apoio dela no caso de [...] tentativa legítima de afastá-lo"

Para Ilona, não deixa de ser irônico. “Desde o retorno da democracia, nunca vimos um líder mais ditatorial do que o próprio Bolsonaro”, afirma ela. “Seu conceito niilista de liberdade, que prega o vale-tudo, foge a qualquer civilidade. Tudo indica que ele está armando sua base e incitando a paranoia, para recorrer ao apoio dela no caso de qualquer tentativa legítima de afastá-lo do poder. Entre os seus apoiadores mais radicais, já se fala em guerra civil. Bolsonaro promove o caos para então instaurar medidas de exceção.”

A insistência do presidente em se referir a ela como “abortista”, diz Ilona, é uma tentativa de personalizar todas as causas anticonservadoras em uma pessoa só e, assim, usá-la para agitar três segmentos do seu eleitorado: os religiosos, homens de uma geração que se sente ameaçada pelo avanço das mulheres na sociedade e os armamentistas.

No ano passado, ao participar de um evento no Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, Ilona teve a chance de conversar com Sergio Moro, como sempre fez com todos os ministros da Justiça desde Márcio Thomaz Bastos (1935-2014), no primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Moro ficou conhecido pelo combate à corrupção e à lavagem de dinheiro. Achei que eu poderia contribuir tecnicamente, já que segurança pública não era seu forte.”

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Ilona e Sergio Moro no Fórum Econômico Mundial, em Davos — Foto: Reprodução

Pouco depois do evento na Suíça, Ilona recebeu um e-mail formal do então ministro. Era um convite para integrar uma vaga de suplente no Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Dias depois, Ilona foi a Brasília para uma conversa. A diretora do Igarapé é conhecida por posições contrárias à flexibilização do porte de armas e redução da maioridade penal e é defensora da legalização das drogas. Ou seja, uma agenda progressista, oposta à de Bolsonaro.

Mesmo ciente de que não seria fácil, ela aceitou. Considerava vital garantir espaço de diálogo com o governo. A caminho da reunião, sua nomeação foi publicada no “Diário Oficial”. Logo um expoente do lobby das armas tuitou, qualificando a escolha como “absurda”. Em minutos a notícia viralizou. Quando sentou-se à mesa com Moro, a “hashtag” “#Ilona Não” estava entre os assuntos mais comentados do Twitter. “Foi uma reunião tensa, estranha, tomada por essa história”, diz, antes de dar um gole em uma garrafinha de água que tem ao lado da cadeira.

Naquele momento, sua premência era discutir o excludente de ilicitude - que isenta agentes de crimes cometidos em determinadas situações, como em legítima defesa - e suas implicações práticas. Em um país onde a polícia já mata muito, aumentar esse poder discricionário lhe parecia um desastre. No meio de sua explanação, o então ministro recebeu um recado de Bolsonaro pedindo que fosse ao seu gabinete. Moro interrompeu a reunião antes do previsto, desculpou-se e saiu da sala. No dia seguinte, por telefone, explicou a dificuldade em sustentar sua indicação e a desconvidou.

 Ilona em seminário sobre segurança promovido pelo  Futura e “Extra” — Foto: Publius Vergilius/Fundação Roberto Marinho
Ilona em seminário sobre segurança promovido pelo Futura e “Extra” 
— Foto: Publius Vergilius/Fundação Roberto Marinho

“A intolerância naquele momento ficou muito clara. Dali em diante foi só ladeira abaixo.” Integrante do Conselho de Segurança Pública e Defesa Social, Ilona foi informada, por WhatsApp, de que o colegiado não estaria mais aberto à participação civil. O presidente baixou uma série de decretos para afrouxar controles sobre armas e munições, seis deles em um único dia. Ignorou o que a maioria dos especialistas mostra: o aumento do número de armas em circulação leva a mais crimes.

Em resposta às críticas, Bolsonaro chamou-a de “abortista”, como tornou-se praxe. “Tem gente que me diz: ‘Você trabalha com temas polêmicos’. A agenda que defendo de controle de armas, e falo com a maior tranquilidade, é a mesma que o Exército defende. Pergunta se os generais estão felizes com o que está acontecendo.”

Mesmo quem concorda com seus argumentos, observa, evita se pronunciar com receio de sofrer represália. “Não posso nem nomear com quem converso, não quero colocar ninguém em apuros”, diz, rindo. O general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro-chefe da Secretaria de Governo, antes de ser demitido por Bolsonaro foi atacado tanto pela ala ideológica quanto por apoiadores mais radicais do governo por recebê-la. 

 Evento promovido pelo Instituto Igarapé, em que é diretora — Foto: Reprodução
Evento promovido pelo Instituto Igarapé, em que é diretora — Foto: Reprodução

No ano passado Ilona passou a sofrer ataques e ameaças, que extrapolaram as redes sociais, como e-mails com fotos de corpos. A sede do Igarapé funcionava em uma casa numa rua tranquila do bairro de Botafogo, no Rio. Com uma equipe majoritariamente feminina, sair à noite depois do expediente passou a ser temerário. “Discurso de ódio incita a a violência. Você nunca sabe. Tem o caso da [vereadora] Marielle [Franco, assassinada em março de 2018], tem as milícias.”

Para minimizar os riscos, trocaram a casa do instituto por uma sala em um prédio, e Ilona passou a evitar dar entrevistas ou falar publicamente sobre temas polêmicos. “Naquele momento ficou muito difícil. É tanta intimidação, tanta loucura. A gente faz um trabalho independente, não há nenhuma instituição na retaguarda para nos proteger.” Quando recebeu uma bolsa de estudos da Universidade Columbia, em Nova York, não teve dúvida: fez as malas e se mudou para lá com o marido e a filha.

Difícil entender, afirma, como muitas pessoas - da sua família inclusive -, mesmo vendo “por tudo que tem passado”, seguem na defesa do presidente. “É como se estivessem intoxicadas, contaminadas por ódio, doentes da alma. Tenho pensado muito nisso, em como resgatar a humanidade das pessoas.”

 Cientista política participa do seminário Reage, Rio!, em 2018 — Foto: Marcos de Paula/Agência O Globo
Cientista política participa do seminário Reage, Rio!, em 2018 
— Foto: Marcos de Paula/Agência O Globo

“Olha quem está aqui!”, interrompe a conversa para aconchegar Yasmin, que acaba de entrar. Embora se considere “péssima cozinheira”, Ilona tem dado uns palpites na cozinha aos fins de semana. A filha diz que outro dia fez com a mãe um bolo de cenoura com “muita, muita cobertura de chocolate” e outras receitas mais saudáveis, como um inusitado brownie de abacate. Tivesse a tela cheiro, seria possível sentir o aroma do almoço sendo preparado pelo marido, o titular do fogão. Depois de mais um pouco de conversa, a menina se despede. “Fecha a porta para a mamãe, amor”, diz Ilona. “Minha filha veio para me salvar, sabe? A gente vai endurecendo, perdendo a leveza, e ela me traz de volta o lúdico”.

Desde que saiu do Brasil, outras pessoas de sua equipe passaram a cuidar mais de perto da agenda da segurança pública, e Ilona começou a se aprofundar em novos temas, como espaço cívico e mudanças climáticas. Sua avaliação é que o espaço cívico - esfera entre o Estado, empresas e família em que cidadãos e entidades da sociedade civil se organizam, debatem e agem- está se fechando no Brasil. Ela tem colhido depoimentos de pessoas que passaram por situações semelhantes à sua para fazer uma espécie de tipologia das situações encontradas no país.

“Não há dúvidas de que cruzamos a linha democrática. Em uma democracia você não governa apenas para os seus, não cala seus críticos, não ameaça a saúde e bem-estar de sua população, isso é inaceitável. Vivemos um dos momentos mais tristes da nossa história.”

Do ponto de vista prático, prossegue, gesticulando de forma mais enfática, pode-se argumentar que as instituições continuam funcionando, já que o STF barrou várias medidas tomadas pelo presidente. O problema, diz, é que até as ações serem julgadas, as medidas permanecem válidas, gerando insegurança jurídica.

No dia seguinte à reunião de 22 de abril, em que Bolsonaro defende o armamento da população e com uma grave crise sanitária no Brasil, o governo editou portaria autorizando cada cidadão a comprar mais de 6 mil munições por ano (300 unidades por mês, a depender do calibre do armamento). O limite era de 200 cartuchos. Como o decreto é recente, não há números exatos, mas Ilona diz acreditar que a norma abriu brecha para provocar um pico de compras de armas e balas, interrompida apenas quando o Supremo barrou a medida. Quando ela perdeu a validade, parte do estrago já pode ter sido feito.

O presidente também participou de manifestações contra as instituições. A população está se armando. O acampamento do grupo de apoiadores de Bolsonaro, os “300 do Brasil”, foi chamado de “milícia armada” pelos procuradores.

Ilona lembra que em meados do ano passado escreveu um artigo em que apontava um paralelo entre o Brasil e a Venezuela. O país vizinho não desarmou seus cidadãos. Na verdade, o presidente Hugo Chávez (1954-2013) iniciou a criação de milícias civis, de cerca de 1 milhão de pessoas, para “proteger” seu governo. O fechamento do espaço cívico, diz a cientista política, é prioridade para governos autoritários aumentarem seus poderes, como ocorreu nas Filipinas, Hungria, Polônia e Rússia. 

“Acredito que o Brasil é hoje uma democracia eleitoral, e não liberal, no sentido dos direitos plenos. Estamos em um ponto de inflexão. Ou as instituições reagem agora, ou voltar atrás depois será complicado.”

Ilona tem projetos para lançar um podcast, escrever um livro e produzir um documentário, misto de experiência pessoal e pesquisa. Seu intuito é falar para além da bolha dos que pensam como ela e despertar nas pessoas o desejo de atuar. Diz que sua atuação cívica veio aplacar o incômodo de viver numa sociedade desigual.

Filha de um engenheiro naval e uma jornalista, recebeu o nome Ilona Szabó em homenagem à avó materna, que veio da Hungria para o Brasil após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Seus avós gerenciavam um hotel que recebia gente de toda parte, esportistas, atores, diretores, ícones da música nacional e internacional. Circular entre aquelas pessoas de todo canto, além de ter uma mãe que havia morado no exterior e falava várias línguas, despertou na menina o desejo de conhecer o mundo.

Com 17 anos, conseguiu uma vaga de intercâmbio para estudar nos EUA. Como já falava inglês e conhecia a cultura americana, decidiu escolher outro país. Girou o globo e, para surpresa do pai, que derrubou os talheres no chão, apontou para a Letônia, no Leste Europeu. De Nova Friburgo (RJ), cidade pacata, diz, aterrissou na capital da música. “Entendi o que era gótico, funk, fiz amigos gays. Abri a cabeça.” Na casa onde viveu, a calefação não funcionava direito e a comida era racionada. Além do frio, Ilona enfrentou um país em transição devido o colapso do bloco soviético. Nas ruas, havia dois idiomas: russo e letão, que aprendeu em quatro meses.

De volta ao Brasil foi morar no Rio para estudar. Achava estranho sua turma viver rodeada por favelas sem nunca ter ido até lá. Quando convenceu uma amiga, funcionária de uma secretaria do governo, a levá-la àquelas comunidades, teve a chance de conviver com meninos da Fundação Casa, centro de atendimento a jovens infratores. Eles tinham sonhos parecidos com os seus, mas não as mesmas oportunidades de concretizá-los. A experiência, diz, foi fundamental para entender onde queria atuar.

Ilona dava aulas de inglês para pagar as contas e conseguiu com uma de suas alunas uma vaga em um banco de investimento. Os colegas se referiam a ela como “aquela menina estranha que morou na Letônia e gosta de favela”, diz, rindo. Um dia leu um artigo do antropólogo inglês Luke Dowdney, fundador da ONG Luta Pela Paz, em que comparava crianças soldados a crianças do tráfico. Estava decidida a conhecê-lo. Mesmo já tendo conseguido uma bolsa de mestrado em estudos de conflito e paz na Universidade de Uppsala, na Suécia, falou com muitas pessoas e o encontrou em uma festa na casa de uma conhecida.

Após a conclusão do mestrado e de um curso de pós-graduação que emendou na Noruega, os dois foram finalmente trabalhar juntos no Viva Rio. Em 2005, Ilona foi alçada para coordenar uma das maiores campanhas de desarmamento da história do Brasil, para a qual foram criados centenas de postos de coletas de armas civis. 

Ilona e o então deputado federal Jair Bolsonaro foram convidados para um debate. Ela mal conseguiu falar. Diz que foi interrompida a todo instante pelo parlamentar. Quando veio o referendo sobre portes de armas no Brasil, em 1993, a Associação Nacional de Rifles da América foi agressiva no uso de propaganda no Brasi.

“Não tenho problema em conversar com quem pensa de forma diferente. Gosto de um bom debate, feito de dados e argumentos, mas o que passei lá [em 2005], e o que a gente vê hoje, é escracho. Entendi o que era propaganda e vi a opinião pública sendo manipulada.” Até seu professor de ioga bradou que queria garantir seu direito de carregar uma pistola na cintura. “Na hora pensei, lascou-se”.

Em 2011 Ilona e Muggah fundaram o Igarapé. Como o canadense veio para o Brasil? “Importei o Bob”, brinca. Antes do casamento, impôs uma condição: que ele se matriculasse em aula de dança. “Sou forrozeira, pé de serra, adoro samba de raiz.” Inclusive, diz, esse é um de seus segredos para manter a sanidade na quarentena.

A porta se abre e sua filha avisa que o almoço está servido. “Já vou, paixão.” Depois que a menina se afasta, lembra que o Igarapé completará dez anos em 2021. Fazendo retrospectiva de seu percurso, avalia que a experiência em banco antes de entrar para o setor social foi essencial. “Sou idealista, mas extremamente pragmática, entendo como gira o mundo. Os projetos de construção de política pública do Igarapé são feitos com todos os ‘stakeholders’ à mesa.”

Para conter a degradação da Amazônia, não será diferente. “Em um momento em que o governo federal está jogando contra, oferecendo prêmio aos grileiros - que roubam terras públicas, em geral associados a crimes como corrupção, lavagem de dinheiro e até assassinatos -, é vital que bancos e fundos assumam seu papel.”

Ela avalia que a meta de zerar o desmatamento ilegal é chave para a imagem do Brasil no exterior, para a retomada de investimentos estrangeiros e acordos comerciais.

Na ruidosa reunião ministerial de 22 de abril, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sugeriu aproveitar a pandemia para afrouxar normas ambientais e “ir passando a boiada”. A fala de Salles repercutiu também na imprensa internacional. “Se, com as queimadas do ano passado, nossa imagem e o impacto para os negócios já foram ruins, neste ano, provavelmente, veremos embargos de grande dimensão. O país sofrerá muito mais, num momento em que a economia está muito fragilizada. Ou lideramos a luta contra as mudanças climáticas, com total apoio do setor empresarial e financeiro, ou o Brasil será um país intocável para investidores estrangeiros e acordos comerciais.”

O objetivo de seu trabalho, diz, é mapear os crimes ambientais, a dinâmica com o crime organizado e apontar ferramentas tecnológicas e informações necessárias para que o setor econômico possa ter certeza de que não está financiando desmatamento ilegal. “Falar sobre modelos econômicos sustentáveis não é papo de ‘bicho-grilo’. Economia predatória não é mais aceitável”. 

Estudos recentes, prossegue, mostram a relação entre o avanço do desmatamento e a transmissão de doenças infecciosas. Mapearam centena de vírus na Amazônia. O desequilíbrio florestal pode desencadear novas pandemias. Se tem algo positivo na crise sanitária atual, diz, é que a questão do clima pode ser trazida a valor presente. “As pessoas não davam muita bola, mas agora estão entendendo o que é perder o controle da vida e viver sob fortes restrições. As privações de agora são fichinha perto do que pode vir com um planeta superaquecido, e o relógio está correndo. Tenho uma filha pequena, não vou morrer dizendo para ela que não fiz o que era possível fazer.”

O desejável, prossegue, é que, quando a pandemia passar, as pessoas possam questionar seus hábitos. “Trabalho no setor social, não ganho mal, mas tenho que fazer escolhas. Sempre dei prioridade para consumir experiências, não coisas. Da vida a gente carrega o que viveu”, diz, já de pé, com o laptop na mão, e convida a reportagem para um passeio pela casa. Pelo trajeto apresenta Muggah, e logo chega à cozinha. Tão perto, tão longe, exibe o menu do dia: ravióli al burro e sálvia.
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