Cientista política diz que na democracia não se governa
apenas para os seus: “Vivemos um dos momentos mais tristes da nossa história”
Por Adriana Abujamra — Para o Valor, de São Paulo
29/05/2020
Já era noite em Nova York. A cientista política Ilona Szabó
lia; a filha, Yasmin, dormia; e seu marido, o também cientista político
canadense Robert Muggah, estava ao computador. Lá pelas tantas, ele deu um
salto e anunciou num fôlego só: “Empacote tudo, vou buscar o carro, a gente vai
para o Canadá”.
Muggah acabara de descobrir que as fronteiras entre os dois
países seriam fechadas. Ilona o convenceu a partirem no dia seguinte, bem cedo.
Só na estrada o casal teve tempo de explicar para a filha o motivo da correria
e buscar, por telefone, um lugar para se hospedar em uma cidadezinha próxima a
Toronto, onde vivem os pais do cientista político.
Àquela altura, meados de março, os Estados Unidos eram o
epicentro da pandemia de covid-19. Quase ninguém queria recebê-los. Apenas um
locatário se prontificou, mas o contrato acabaria no fim deste mês. “Foi
traumático. Nossa vida estava toda acertada em Nova York. Estamos aqui de
quarentena, sabe-se lá até quando. Não faço ideia do que vamos fazer depois”,
diz Ilona, rosto lavado, camisa preta, sentada de costas para a porta do
escritório improvisado em um dos dormitórios. A maior parte de seus pertences
ainda está em caixas e malas.
Ilona e Yasmin, em casa, no Canadá: “Carregava comigo o
‘soft power’ brasileiro, criava empatia.
Mas agora há decepção com o Brasil”,
diz a cientista política
— Foto: Reprodução
Um de seus maiores desafios tem sido conciliar o trabalho
com a agenda escolar da filha. Com 6 anos, Yasmin não tem autonomia nem
paciência para aguentar horas a fio de aulas on-line. Já o cuidado com a casa
não é novidade. Prescindir de ajudantes é praxe em muitos países fora do
Brasil. Ilona já morou em seis antes do Canadá - Letônia, Suécia, Suíça,
Noruega, Colômbia e Estados Unidos. Bastava dizer de onde vinha para fazer
sorrir o ser mais sisudo. Não mais.
Os comentários que ouve hoje são de espanto: pela maneira
com que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) tem lidado com a crise
sanitária, com os direitos humanos e o meio ambiente. “Carregava comigo o ‘soft
power’ brasileiro, criava empatia. Mas agora há uma decepção com o Brasil. Essa
perda imaterial é brutal.” Ilona saiu do Brasil no ano passado, de forma menos
brusca do que a fuga para o Canadá, mas nem por isso menos traumática.
A cientista política tem 42 anos, é mestre em estudos de
conflito e paz pela Universidade de Uppsala, na Suécia, e é autora de dois
livros: “Drogas, a História que Não Te Contaram” (2017) e “Segurança Pública
para Virar o Jogo” (2018), ambos publicados pela Zahar. É fundadora e
diretora-executiva, com o marido, do Instituto Igarapé, que se dedica a
políticas públicas para a redução da violência. A entidade atua no Brasil e
também em países da América Latina, dos Estados Unidos, da Europa e África.
Nos termos de Bolsonaro, porém, a cientista política é
“abortista” e “defensora da ideologia de gênero”, como disse no pronunciamento
que fez após o estrondoso pedido de demissão de Sergio Moro, em abril, e
novamente na semana passada, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou a
divulgação dos vídeos da reunião ministerial de 22 de abril. No encontro, o
presidente defendeu o armamento da população. “Por que que eu tô armando o
povo? Porque eu não quero uma ditadura! E não dá pra segurar mais! Não é? Não
dá pra segurar mais. (...) É escancarar a questão do armamento aqui. Eu quero
todo mundo armado! Que povo armado jamais será escravizado.”
“Tudo indica que ele [Bolsonaro] está armando sua base e
incitando a paranoia, para recorrer ao apoio dela no caso de [...] tentativa
legítima de afastá-lo"
Para Ilona, não deixa de ser irônico. “Desde o retorno da
democracia, nunca vimos um líder mais ditatorial do que o próprio Bolsonaro”,
afirma ela. “Seu conceito niilista de liberdade, que prega o vale-tudo, foge a
qualquer civilidade. Tudo indica que ele está armando sua base e incitando a
paranoia, para recorrer ao apoio dela no caso de qualquer tentativa legítima de
afastá-lo do poder. Entre os seus apoiadores mais radicais, já se fala em
guerra civil. Bolsonaro promove o caos para então instaurar medidas de
exceção.”
A insistência do presidente em se referir a ela como
“abortista”, diz Ilona, é uma tentativa de personalizar todas as causas
anticonservadoras em uma pessoa só e, assim, usá-la para agitar três segmentos
do seu eleitorado: os religiosos, homens de uma geração que se sente ameaçada
pelo avanço das mulheres na sociedade e os armamentistas.
No ano passado, ao participar de um evento no Fórum
Econômico Mundial em Davos, na Suíça, Ilona teve a chance de conversar com Sergio
Moro, como sempre fez com todos os ministros da Justiça desde Márcio Thomaz
Bastos (1935-2014), no primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da
Silva. “Moro ficou conhecido pelo combate à corrupção e à lavagem de dinheiro.
Achei que eu poderia contribuir tecnicamente, já que segurança pública não era
seu forte.”
Ilona e Sergio Moro no Fórum Econômico Mundial, em Davos —
Foto: Reprodução
Pouco depois do evento na Suíça, Ilona recebeu um e-mail
formal do então ministro. Era um convite para integrar uma vaga de suplente no
Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Dias depois, Ilona foi
a Brasília para uma conversa. A diretora do Igarapé é conhecida por posições
contrárias à flexibilização do porte de armas e redução da maioridade penal e é
defensora da legalização das drogas. Ou seja, uma agenda progressista, oposta à
de Bolsonaro.
Mesmo ciente de que não seria fácil, ela aceitou.
Considerava vital garantir espaço de diálogo com o governo. A caminho da
reunião, sua nomeação foi publicada no “Diário Oficial”. Logo um expoente do
lobby das armas tuitou, qualificando a escolha como “absurda”. Em minutos a
notícia viralizou. Quando sentou-se à mesa com Moro, a “hashtag” “#Ilona Não”
estava entre os assuntos mais comentados do Twitter. “Foi uma reunião tensa,
estranha, tomada por essa história”, diz, antes de dar um gole em uma
garrafinha de água que tem ao lado da cadeira.
Naquele momento, sua premência era discutir o excludente de
ilicitude - que isenta agentes de crimes cometidos em determinadas situações,
como em legítima defesa - e suas implicações práticas. Em um país onde a
polícia já mata muito, aumentar esse poder discricionário lhe parecia um
desastre. No meio de sua explanação, o então ministro recebeu um recado de
Bolsonaro pedindo que fosse ao seu gabinete. Moro interrompeu a reunião antes
do previsto, desculpou-se e saiu da sala. No dia seguinte, por telefone,
explicou a dificuldade em sustentar sua indicação e a desconvidou.
Ilona em seminário sobre segurança promovido pelo Futura e
“Extra”
— Foto: Publius Vergilius/Fundação Roberto Marinho
“A intolerância naquele momento ficou muito clara. Dali em
diante foi só ladeira abaixo.” Integrante do Conselho de Segurança Pública e
Defesa Social, Ilona foi informada, por WhatsApp, de que o colegiado não
estaria mais aberto à participação civil. O presidente baixou uma série de
decretos para afrouxar controles sobre armas e munições, seis deles em um único
dia. Ignorou o que a maioria dos especialistas mostra: o aumento do número de
armas em circulação leva a mais crimes.
Em resposta às críticas, Bolsonaro chamou-a de “abortista”,
como tornou-se praxe. “Tem gente que me diz: ‘Você trabalha com temas
polêmicos’. A agenda que defendo de controle de armas, e falo com a maior tranquilidade,
é a mesma que o Exército defende. Pergunta se os generais estão felizes com o
que está acontecendo.”
Mesmo quem concorda com seus argumentos, observa, evita se
pronunciar com receio de sofrer represália. “Não posso nem nomear com quem
converso, não quero colocar ninguém em apuros”, diz, rindo. O general Carlos
Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro-chefe da Secretaria de Governo, antes de
ser demitido por Bolsonaro foi atacado tanto pela ala ideológica quanto por
apoiadores mais radicais do governo por recebê-la.
Evento promovido pelo Instituto
Igarapé, em que é diretora — Foto: Reprodução
No ano passado Ilona passou a
sofrer ataques e ameaças, que extrapolaram as redes sociais, como e-mails com
fotos de corpos. A sede do Igarapé funcionava em uma casa numa rua tranquila do
bairro de Botafogo, no Rio. Com uma equipe majoritariamente feminina, sair à
noite depois do expediente passou a ser temerário. “Discurso de ódio incita a a
violência. Você nunca sabe. Tem o caso da [vereadora] Marielle [Franco,
assassinada em março de 2018], tem as milícias.”
Para minimizar os riscos,
trocaram a casa do instituto por uma sala em um prédio, e Ilona passou a evitar
dar entrevistas ou falar publicamente sobre temas polêmicos. “Naquele momento
ficou muito difícil. É tanta intimidação, tanta loucura. A gente faz um
trabalho independente, não há nenhuma instituição na retaguarda para nos
proteger.” Quando recebeu uma bolsa de estudos da Universidade Columbia, em
Nova York, não teve dúvida: fez as malas e se mudou para lá com o marido e a
filha.
Difícil entender, afirma, como
muitas pessoas - da sua família inclusive -, mesmo vendo “por tudo que tem
passado”, seguem na defesa do presidente. “É como se estivessem intoxicadas,
contaminadas por ódio, doentes da alma. Tenho pensado muito nisso, em como
resgatar a humanidade das pessoas.”
Cientista política participa do seminário Reage, Rio!, em
2018
— Foto: Marcos de Paula/Agência O Globo
“Olha quem está aqui!”, interrompe a conversa para
aconchegar Yasmin, que acaba de entrar. Embora se considere “péssima
cozinheira”, Ilona tem dado uns palpites na cozinha aos fins de semana. A filha
diz que outro dia fez com a mãe um bolo de cenoura com “muita, muita cobertura
de chocolate” e outras receitas mais saudáveis, como um inusitado brownie de
abacate. Tivesse a tela cheiro, seria possível sentir o aroma do almoço sendo
preparado pelo marido, o titular do fogão. Depois de mais um pouco de conversa,
a menina se despede. “Fecha a porta para a mamãe, amor”, diz Ilona. “Minha
filha veio para me salvar, sabe? A gente vai endurecendo, perdendo a leveza, e
ela me traz de volta o lúdico”.
Desde que saiu do Brasil, outras pessoas de sua equipe
passaram a cuidar mais de perto da agenda da segurança pública, e Ilona começou
a se aprofundar em novos temas, como espaço cívico e mudanças climáticas. Sua
avaliação é que o espaço cívico - esfera entre o Estado, empresas e família em
que cidadãos e entidades da sociedade civil se organizam, debatem e agem- está
se fechando no Brasil. Ela tem colhido depoimentos de pessoas que passaram por
situações semelhantes à sua para fazer uma espécie de tipologia das situações
encontradas no país.
“Não há dúvidas de que cruzamos a
linha democrática. Em uma democracia você não governa apenas para os seus, não
cala seus críticos, não ameaça a saúde e bem-estar de sua população, isso é
inaceitável. Vivemos um dos momentos mais tristes da nossa história.”
Do ponto de vista prático,
prossegue, gesticulando de forma mais enfática, pode-se argumentar que as
instituições continuam funcionando, já que o STF barrou várias medidas tomadas
pelo presidente. O problema, diz, é que até as ações serem julgadas, as medidas
permanecem válidas, gerando insegurança jurídica.
No dia seguinte à reunião de 22
de abril, em que Bolsonaro defende o armamento da população e com uma grave
crise sanitária no Brasil, o governo editou portaria autorizando cada cidadão a
comprar mais de 6 mil munições por ano (300 unidades por mês, a depender do
calibre do armamento). O limite era de 200 cartuchos. Como o decreto é recente,
não há números exatos, mas Ilona diz acreditar que a norma abriu brecha para
provocar um pico de compras de armas e balas, interrompida apenas quando o
Supremo barrou a medida. Quando ela perdeu a validade, parte do estrago já pode
ter sido feito.
O presidente também participou de
manifestações contra as instituições. A população está se armando. O
acampamento do grupo de apoiadores de Bolsonaro, os “300 do Brasil”, foi
chamado de “milícia armada” pelos procuradores.
Ilona lembra que em meados do ano
passado escreveu um artigo em que apontava um paralelo entre o Brasil e a
Venezuela. O país vizinho não desarmou seus cidadãos. Na verdade, o presidente
Hugo Chávez (1954-2013) iniciou a criação de milícias civis, de cerca de 1
milhão de pessoas, para “proteger” seu governo. O fechamento do espaço cívico,
diz a cientista política, é prioridade para governos autoritários aumentarem
seus poderes, como ocorreu nas Filipinas, Hungria, Polônia e Rússia.
“Acredito que o Brasil é hoje uma
democracia eleitoral, e não liberal, no sentido dos direitos plenos. Estamos em
um ponto de inflexão. Ou as instituições reagem agora, ou voltar atrás depois
será complicado.”
Ilona tem projetos para lançar um podcast, escrever um livro
e produzir um documentário, misto de experiência pessoal e pesquisa. Seu
intuito é falar para além da bolha dos que pensam como ela e despertar nas
pessoas o desejo de atuar. Diz que sua atuação cívica veio aplacar o incômodo
de viver numa sociedade desigual.
Filha de um engenheiro naval e uma jornalista, recebeu o
nome Ilona Szabó em homenagem à avó materna, que veio da Hungria para o Brasil
após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Seus avós gerenciavam um hotel que
recebia gente de toda parte, esportistas, atores, diretores, ícones da música
nacional e internacional. Circular entre aquelas pessoas de todo canto, além de
ter uma mãe que havia morado no exterior e falava várias línguas, despertou na
menina o desejo de conhecer o mundo.
Com 17 anos, conseguiu uma vaga de intercâmbio para estudar
nos EUA. Como já falava inglês e conhecia a cultura americana, decidiu escolher
outro país. Girou o globo e, para surpresa do pai, que derrubou os talheres no
chão, apontou para a Letônia, no Leste Europeu. De Nova Friburgo (RJ), cidade
pacata, diz, aterrissou na capital da música. “Entendi o que era gótico, funk,
fiz amigos gays. Abri a cabeça.” Na casa onde viveu, a calefação não funcionava
direito e a comida era racionada. Além do frio, Ilona enfrentou um país em
transição devido o colapso do bloco soviético. Nas ruas, havia dois idiomas:
russo e letão, que aprendeu em quatro meses.
De volta ao Brasil foi morar no Rio para estudar. Achava
estranho sua turma viver rodeada por favelas sem nunca ter ido até lá. Quando
convenceu uma amiga, funcionária de uma secretaria do governo, a levá-la
àquelas comunidades, teve a chance de conviver com meninos da Fundação Casa, centro
de atendimento a jovens infratores. Eles tinham sonhos parecidos com os seus,
mas não as mesmas oportunidades de concretizá-los. A experiência, diz, foi
fundamental para entender onde queria atuar.
Ilona dava aulas de inglês para pagar as contas e conseguiu
com uma de suas alunas uma vaga em um banco de investimento. Os colegas se referiam
a ela como “aquela menina estranha que morou na Letônia e gosta de favela”,
diz, rindo. Um dia leu um artigo do antropólogo inglês Luke Dowdney, fundador
da ONG Luta Pela Paz, em que comparava crianças soldados a crianças do tráfico.
Estava decidida a conhecê-lo. Mesmo já tendo conseguido uma bolsa de mestrado
em estudos de conflito e paz na Universidade de Uppsala, na Suécia, falou com
muitas pessoas e o encontrou em uma festa na casa de uma conhecida.
Após a conclusão do mestrado e de um curso de pós-graduação
que emendou na Noruega, os dois foram finalmente trabalhar juntos no Viva Rio.
Em 2005, Ilona foi alçada para coordenar uma das maiores campanhas de
desarmamento da história do Brasil, para a qual foram criados centenas de
postos de coletas de armas civis.
Ilona e o então deputado federal Jair Bolsonaro foram
convidados para um debate. Ela mal conseguiu falar. Diz que foi interrompida a
todo instante pelo parlamentar. Quando veio o referendo sobre portes de armas
no Brasil, em 1993, a Associação Nacional de Rifles da América foi agressiva no
uso de propaganda no Brasi.
“Não tenho problema em conversar com quem pensa de forma
diferente. Gosto de um bom debate, feito de dados e argumentos, mas o que passei
lá [em 2005], e o que a gente vê hoje, é escracho. Entendi o que era propaganda
e vi a opinião pública sendo manipulada.” Até seu professor de ioga bradou que
queria garantir seu direito de carregar uma pistola na cintura. “Na hora pensei,
lascou-se”.
Em 2011 Ilona e Muggah fundaram o Igarapé. Como o canadense
veio para o Brasil? “Importei o Bob”, brinca. Antes do casamento, impôs uma
condição: que ele se matriculasse em aula de dança. “Sou forrozeira, pé de
serra, adoro samba de raiz.” Inclusive, diz, esse é um de seus segredos para
manter a sanidade na quarentena.
A porta se abre e sua filha avisa que o almoço está servido.
“Já vou, paixão.” Depois que a menina se afasta, lembra que o Igarapé
completará dez anos em 2021. Fazendo retrospectiva de seu percurso, avalia que
a experiência em banco antes de entrar para o setor social foi essencial. “Sou
idealista, mas extremamente pragmática, entendo como gira o mundo. Os projetos
de construção de política pública do Igarapé são feitos com todos os
‘stakeholders’ à mesa.”
Para conter a degradação da Amazônia, não será diferente.
“Em um momento em que o governo federal está jogando contra, oferecendo prêmio
aos grileiros - que roubam terras públicas, em geral associados a crimes como
corrupção, lavagem de dinheiro e até assassinatos -, é vital que bancos e
fundos assumam seu papel.”
Ela avalia que a meta de zerar o desmatamento ilegal é chave
para a imagem do Brasil no exterior, para a retomada de investimentos
estrangeiros e acordos comerciais.
Na ruidosa reunião ministerial de 22 de abril, o ministro do
Meio Ambiente, Ricardo Salles, sugeriu aproveitar a pandemia para afrouxar
normas ambientais e “ir passando a boiada”. A fala de Salles repercutiu também
na imprensa internacional. “Se, com as queimadas do ano passado, nossa imagem e
o impacto para os negócios já foram ruins, neste ano, provavelmente, veremos
embargos de grande dimensão. O país sofrerá muito mais, num momento em que a
economia está muito fragilizada. Ou lideramos a luta contra as mudanças
climáticas, com total apoio do setor empresarial e financeiro, ou o Brasil será
um país intocável para investidores estrangeiros e acordos comerciais.”
O objetivo de seu trabalho, diz, é mapear os crimes
ambientais, a dinâmica com o crime organizado e apontar ferramentas
tecnológicas e informações necessárias para que o setor econômico possa ter
certeza de que não está financiando desmatamento ilegal. “Falar sobre modelos
econômicos sustentáveis não é papo de ‘bicho-grilo’. Economia predatória não é
mais aceitável”.
Estudos recentes, prossegue, mostram a relação entre o
avanço do desmatamento e a transmissão de doenças infecciosas. Mapearam centena
de vírus na Amazônia. O desequilíbrio florestal pode desencadear novas
pandemias. Se tem algo positivo na crise sanitária atual, diz, é que a questão
do clima pode ser trazida a valor presente. “As pessoas não davam muita bola,
mas agora estão entendendo o que é perder o controle da vida e viver sob fortes
restrições. As privações de agora são fichinha perto do que pode vir com um
planeta superaquecido, e o relógio está correndo. Tenho uma filha pequena, não
vou morrer dizendo para ela que não fiz o que era possível fazer.”
O desejável, prossegue, é que, quando a pandemia passar, as
pessoas possam questionar seus hábitos. “Trabalho no setor social, não ganho
mal, mas tenho que fazer escolhas. Sempre dei prioridade para consumir
experiências, não coisas. Da vida a gente carrega o que viveu”, diz, já de pé,
com o laptop na mão, e convida a reportagem para um passeio pela casa. Pelo
trajeto apresenta Muggah, e logo chega à cozinha. Tão perto, tão longe, exibe o
menu do dia: ravióli al burro e sálvia.
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