domingo, 31 de maio de 2020

Pandemia faz emergir "o porco e o santo" em cada um de nós, define professor da PUCRS


Camila Cunha / PUCRS,Divulgação
 Marques de Jesus: "Durante a epidemia, temos visto emergir o que há de melhor e pior no ser humano"Camila Cunha / PUCRS,Divulgação

Docente na Escola de Humanidades e coordenador do curso de Filosofia da universidade, Luciano Marques de Jesus avalia isolamento social: "Nem todos aprenderão com a atual experiência"

27/05/2020 - 15h29minAtualizada em 27/05/2020 - 15h33min

Daniel Feix

Situações extremas, como a pandemia de coronavírus, podem nos despertar para uma consciência até então adormecida, acreditam alguns filósofos que têm feito reflexões sobre o momento atual. Mas, ao mesmo tempo, também podem ressaltar o lado mais sombrio das pessoas, pontuam outros. É a “emergência do porco e do santo”, resume o professor Luciano Marques de Jesus, da Escola de Humanidades da PUCRS, referindo-se ao que há de nobre e abjeto no ser humano. Na entrevista a seguir, o professor, que coordena o curso de Filosofia na universidade, faz cogitações sobre como tendemos a sair da crise, que tem origem sanitária e que pode nos afetar como indivíduos e também seres sociais.

A morte parece mais próxima em uma pandemia. Como essa experiência pode nos influenciar?
Nossa sociedade nega a morte. Por um lado, a morte é tabu. Por outro, é banalizada e espetacularizada. Se há uma pessoa doente na família, a palavra morte é proibida, nos programas policiais vespertinos é vulgarizada e, não raro, comemorada. Na área da saúde a palavra não existe. As pessoas não morrem, evoluem a óbito. Tudo isso talvez porque, para muitos, a morte represente a derrota última. Mas a pandemia nos confronta com a morte! Deveríamos aprender com Rubem Alves que a consciência da morte nos torna mais libertos, preocupados com aquilo que efetivamente importa, que vale a pena dar valor. Se morrêssemos hoje, qual o significado de toda a preocupação de ontem? Vale a pena dar a importância a tantas inquietações? Talvez pouca coisa nos seja necessária, talvez uma só! Curioso ser humano! O único animal que sabe que vai morrer e vive como se nunca fosse morrer. Tomara que saiamos dessa experiência dando maior valor à vida. Essa é uma oportunidade que temos. Infelizmente, nem todos vão aproveitá-la.

O senhor é um estudioso da logoterapia, que preconiza que a chave interpretativa do ser humano é a vontade de sentido, e não de prazer ou poder. A logoterapia surgiu quando seu fundador, Viktor Frankl (1905-1992), refletiu sobre sua experiência nos campos de concentração nazistas. O quanto experiências dramáticas (como uma pandemia) podem nos mostrar o sentido da vida?
A logoterapia propõe que o motor da vida humana, a verdade que sempre volta é a vontade de sentido. A questão do sentido persegue o fundador da logoterapia desde sua juventude, quando, numa aula de história natural, o professor ensinava que a vida pode ser reduzida a dois processos, oxidação e combustão. O jovem Frankl questiona: se é assim, que sentido tem a vida? O campo de concentração foi o terrível laboratório que validou as intuições de Frankl, mostrou que as chaves interpretativas de Freud (prazer) e Adler (poder) são insuficientes para mostrar o motivo por que as pessoas continuariam a dizer sim à vida, não obstante todo o horror que as circunvizinhava. A teimosa vontade de fazer que a vida faça sentido, essa é a chave interpretativa do ser humano segundo a logoterapia. Freud tinha a ideia que, se todos fossem submetidos aos seus instintos, por exemplo, se todos passassem fome, seriam iguais. O campo de concentração e outras situações de extrema crise, como essa pandemia, mostram o contrário: trazem a lume a emergência do que há de mais elevado, nobre e sublime no ser humano e, também, o que há de mais baixo, asqueroso e abjeto; ou, na dura expressão de Frankl, a emergência do porco e do santo.

Curioso ser humano! O único animal que sabe que vai morrer e vive como se nunca fosse morrer. Tomara que saiamos dessa experiência dando maior valor à vida. Essa é uma oportunidade que temos. Infelizmente, nem todos vão aproveitá-la.
Muito se tem dito que todos sairemos da pandemia transformados em algum sentido. Há quem diga que seremos menos individualistas. O senhor concorda com essa ideia?
Mais do que concordar, eu torço para que isso aconteça! No entanto, não podemos nos iludir, já durante a epidemia temos visto emergir o que há de melhor e de pior no ser humano. Muita solidariedade e voluntariado, mas também oportunismo, golpes e manifestações de interesses egoístas. Penso que a vida pós-coronavírus tem tudo para ser melhor, mas nem todos aprenderão com a experiência. Mario Sergio Cortella afirma que a ocasião não faz o ladrão, ela apenas o revela! Vamos aguardar para ver quais revelações o futuro nos revelará.

Temos visto alguma virulência no debate público, e não só no campo político. O negacionismo à pandemia se alinha a isso à medida que sugere interpretações rasas e pré-concebidas do mundo. O quanto essa situação de conflito pode ser afetada por este momento de crise e isolamento das pessoas?
O cientista e professor Marcelo Gleiser, perguntado por um aluno da Especialização em Filosofia e Autoconhecimento da PUCRS sobre o que ele pensava a respeito da volta do terraplanismo, respondeu com uma palavra: triste! É uma tristeza ver menosprezo pela ciência, negacionismo, movimento contra as vacinas. De um lado, essas visões equivocadas – não gosto do adjetivo “medievais”, ele é ofensivo, mas para a Idade Média! – podem prejudicar o combate ao vírus, mas também torço para que sejam desmascaradas. É impressionante a capacidade brasileira de politizar e ideologizar uma pandemia! Sobre a defesa do uso de medicações específicas por pessoas que passam longe da área da saúde, só resta o meu estarrecimento. De uma velha canção portuguesa, citada pelo saudoso senador Jefferson Peres: “Tudo isto existe; tudo isto é triste; tudo isto é fado!”.
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