Frei Betto*
Dezenas de covas são abertas no Cemitério da Vila Formosa, em SP André Penner/AP
Todos os povos ritualizam a despedida de seus mortos; agora, o
coronavírus nos rouba tudo
Todo dia vemos no noticiário o solo
esburacado de cemitérios, as covas em série qual macabra dentadura de
Tânatos à espera de devorar os mortos. A pandemia
cria situações inusitadas, entre elas a de mortes sem funerais. Como é possível
ficarmos alheios a um rito de passagem tão ancestral, exclusivamente humano? Na
natureza, nenhum outro ser chora os seus mortos e os reverencia no
sepultamento.
Todos os povos ritualizam a despedida de seus
mortos. Os rituais têm valor simbólico, expressam em liturgias o que não
conseguimos dizer em palavras.
Agora, o vírus nos rouba tudo isso que
traduz nossos laços de parentesco e amizade: visitar o enfermo, consolá-lo e
animá-lo, preparar o corpo para o funeral, promover o velório, cumprir os
rituais de enterro ou cremação, ver o caixão descer ao túmulo, orar em conjunto
pelo falecido, e manifestar condolências e abraçar os mais afetados pela perda.
Banalizada por força da pandemia, a morte
descartável agride a nossa dignidade humana. São tétricas as cenas de corpos
coletados por caminhões frigoríficos e coveiros vestidos como
astronautas. Nem cães e gatos domésticos merecem igual tratamento.
Cinco séculos antes de Cristo, Sófocles tratou do
tema em sua célebre peça de teatro, Antígona. Creonte, rei de Tebas, proibiu
que Antígona sepultasse seu irmão Polinices. O governante queria que o corpo
permanecesse exposto à voracidade de aves e cães. O horror visava a inibir os
pretendentes ao trono, como mais tarde fariam os romanos com suas vítimas
crucificadas no tempo de Jesus.
Antígona, levada à prisão, pôs fim à vida antes de
saber que o sábio Tirésias convencera Creonte a libertá-la e permitir o
sepultamento do corpo de Polinices. Tal como, cinco séculos depois, José de
Arimateia convenceria Pilatos a consentir que ele desse túmulo ao corpo de
Jesus descido da cruz.
Ao escárnio de ver seu irmão insepulto,
Antígona preferiu morrer. Agora, ao nos obrigar a tratar os mortos como mero
refugo, a pandemia mata em nós um dos mais fortes atributos da condição humana.
A ponto de os povos indígenas insistirem em jamais abandonar a terra na qual
sepultaram seus antepassados.
As imagens são lúgubres: corpos previamente
encaixotados atirados em covas sem identificação, enquanto os entes queridos do
falecido miram à distância, impedidos de se aproximar para o adeus definitivo,
imobilizados pela força necrófila de Hades, o deus do reino dos mortos.
Na guerra, morre-se distante da família e muitos
corpos são enterrados em locais ignorados. Porém, ao menos, em tempos de paz,
as vítimas merecem um mausoléu do soldado desconhecido. Haverá um monumento em
memória das vítimas da Covid-19? Ou serão relegadas ao esquecimento,
transformadas em frios números nas estatísticas oficiais, como mortos
desaparecidos? No Dia de Finados, onde depositar as flores em memória do ente
querido falecido?
Sabemos que o nosso recuo diante das vítimas da
pandemia não é por menosprezá-los, e sim para salvar vidas, a nossa e as dos
demais. Preservamos um princípio ético maior. Deixamos de fazer um bem, o
ritual fúnebre, para preservar um bem maior, a vida.
Em seu admirável romance, Incidente em Antares,
Érico Veríssimo relata a greve dos coveiros que induziu os mortos, cujos corpos
foram abandonados em frente ao cemitério, a saírem de seus caixões. Do coreto
da praça principal, com a população em volta, eles desnudam os moradores ao
denunciar corrupções, abusos e crimes.
Tomara que as vítimas da COVID-19 abram os nossos
olhos diante de falácias como privatização dos serviços de saúde, trabalho
escravo de médicos cubanos, planos privados de saúde que, na propaganda,
oferecem atendimento exemplar. Insepulta é também a atual política de saúde do
Brasil. Até quando suportaremos um governo indiferente ao risco de genocídio
causado pela pandemia?
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*Frei
Betto é escritor, autor de “O diabo na corte – leitura crítica do Brasil atual”
(Cortez), entre outros livros
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