Para Ivann Carlos Lago, ditadores sempre projetam inimigos e estão em guerra permanente contra eles, tal qual a política de Bolsonaro
Para
o professor Ivann Carlos Lago, mestre e doutor na Universidade Federal
Fronteira Sul (RS), a política do ódio, da arbitrariedade, da busca por
um inimigo real ou imaginário praticada por Jair Bolsonaro, é típica dos
ditadores. Mas faz um alerta. “Isso pode se tornar uma armadilha”. Em
entrevista a CartaCapital, Lago analisou ainda o comportamento do que chamou de “brasileiro médio”, o eleitor que votou e ainda apoia o ex-capitão.
Como o senhor analisa o presidente Jair Bolsonaro?
Ivann Carlos Lago: Bolsonaro é exatamente o que
disse que seria, do jeito que disse que seria. Seu modo de governar não
surpreende, minimamente, quem acompanhou sua trajetória como
parlamentar. Na campanha eleitoral, tentou se mostrar como o antídoto do
que chamou de “velha política”. Mas, na prática, ele representa o que
há de pior nela. Bolsonaro é a materialização do lado mais nefasto, mais
autoritário e mais inescrupuloso do sistema político brasileiro.
Esperava um governo tão conturbado?
IL: Creio que o termo não é “esperava”, mas todas as
análises apontavam para isso. Ele foi eleito presidente intensificando
suas características mais marcantes, como a agressividade, o ódio, a
necessidade de ter inimigos e combatê-los, a negação ao diálogo e a
tolerância. Não seria a eleição e o fato de, agora, ser o homem mais
poderoso do país, que o fariam mudar.
Em um de seus textos, o senhor afirma que Bolsonaro “é uma
expressão fiel do brasileiro médio”. Afinal, quem é e o que pensa o
“brasileiro médio”?
IL: O “brasileiro médio” caracteriza o tipo comum,
que representa o jeito de ser e pensar de boa parte da população. É o
tiozão do grupo de WhatsApp da família, que defende a pena de morte, que
orgulha sonegar impostos e ainda ensina os parentes a fazer o mesmo.
Aquele que fura fila e conta com orgulho. Defende o extermínio de todos
os esquerdistas porque inventaram a corrupção, e sabe disso porque
assiste telejornal na TV a cabo pirata. Odeia quem recebe Bolsa Família,
acha todo pobre vagabundo.
Não critica homossexualidade em público, mas tem pavor de pensar que
seu filho possa ser gay. Não se considera machista nem racista, mas tem
um estoque de piadas que ridicularizam mulheres e negros. Tem discurso
pronto para criticar políticas assistenciais e defende o “enxugamento”
do Estado, mas não perde uma oportunidade de acessar algum benefício ou
política pública para o qual seu perfil socioeconômico dá acesso.
Esse eleitor enxergou em Bolsonaro seu alter ego?
IL: Sim. E se sublimou nele. Sente-se representado
por ele. Bolsonaro é tudo o que ele gostaria de ser e não pode. Sente-se
realizado quando o presidente ofende jornalistas e lideranças de
esquerda, quando usa termos vulgares para atacar adversários, quando se
comporta nos salões de Brasília como se estivesse no churrasco de
domingo. É nesse sentido que afirmo que Bolsonaro não é uma aberração
política, mas uma expressão fiel desse “brasileiro médio”.
O que o fez se tornar essa pessoa? São raízes históricas?
IL: São múltiplos fatores. Passa pela cultura da
esperteza, de levar vantagem em tudo, de ser criativo não para criar
coisas novas, mas para achar modos novos de fazer as coisas com menos
esforço. Passa pela noção de “malandro” tão brilhantemente analisada por
Roberto Da Matta. Pela ideia de que trabalho é algo degradante, e que
sujeito esperto é quem encontra um modo de ganhar dinheiro sem
trabalhar. Explorar todos os fatores de suas origens históricas e
culturais demandaria um tratado sobre o assunto.
Por que essa parcela da sociedade ainda não havia se manifestado de forma tão explícita?
IL: Porque não haviam tido a chance de votar em um
candidato que representasse essa dimensão mais profunda e mais obscura
de si mesmo. Essa dimensão ainda é, em grande medida, reprimida, porque
vai contra os consensos humanitários internacionais, ou por que
simplesmente é crime. Ele não pode ser machista, homofóbico, atacar os
direitos humanos em público. Mas se regozija vendo seu representante
fazê-lo impunemente.
Bolsonaro, desde o início de seu governo, foi truculento,
incentivou à violência e contra as minorias. O país corre o risco de ter
uma escalada como o fascismo ou o nazismo na Europa?
IL: O fascismo, o nazismo, estão vivos não só no
Brasil, mas em diversas partes do mundo. Mas o mundo de hoje é diferente
do mundo do século passado. Nesse sentido, ele é outro, é diferente.
Mas nem por isso menos perigoso. Ele se projeta em parte da população,
especialmente a mais jovem, o que é, a um só tempo, intrigante e
assustador. Ele se naturaliza no cotidiano do “brasileiro médio” a que
me referi, nos discursos e práticas “banais” que passam despercebidas e
impunes. Mas daí prever que uma onda fascista tome o governo do país é
coisa distinta. Mesmo que aos trancos, nossas instituições ainda
funcionam e têm conseguido evitar o pior.
Esse modus operandi do discurso do ódio e do inimigo oculto, foi uma estratégia política?
IL: Foi e é uma estratégia política. Porque fazer
política com base na guerra permanente demanda a existência de um
inimigo permanente. Esse inimigo pode mudar, pode ser real ou
imaginário, pode ser um adversário tradicional ou um desafeto de última
hora, mas não pode deixar de existir. Se não tiver contra quem guerrear,
não faz sentido manter a retórica da guerra. Mas isso pode se tornar
uma armadilha. Ditadores em geral sempre se utilizam desse expediente.
Sempre projetam inimigos e sempre estão em guerra contra eles. Mas a
história mostra que a tendência é de ver inimigos cada vez mais
próximos, nos círculos mais íntimos, até que, no fim, acaba por sobrar
apenas o próprio ditador.
Apesar do caos, parcela significa da sociedade apoia o
ex-capitão. De onde vem esse apoio? Da elite ou do cercadinho na
portaria do Palácio da Alvorada?
IL: Grande parte da elite econômica brasileira
sempre foi ética e intelectualmente deplorável. Mesquinha, egoísta e
interesseira. Nunca teve ideologia política. Seu compromisso não é com
uma visão de mundo ou um projeto de sociedade, mas com os próprios
ganhos. Até recentemente, essa elite estava ganhando dinheiro e, por
isso, para ela, estava tudo ótimo. O quanto a pandemia que enfrentamos
mudará isso, o tempo vai dizer, embora alguns sinais já comecem a
aparecer. Mas não é só essa elite que apoia o governo. Como as pesquisas
têm mostrado, cerca de um terço dos brasileiros o faz, e de forma
consistente. Aí estão os tiozões do WhatsApp, de que falamos antes.
O que esperar dos próximos 31 meses do governo Bolsonaro?
IL: Mais do mesmo, ou seja, que Bolsonaro continue
sendo Bolsonaro. Ele não vai mudar, porque não sabe fazer política de
outro modo. Os inimigos é que vão mudar. A essência continuará a mesma,
com tendência de redimensionamento dos espaços ocupados no governo em
favor da “ala ideológica”. Para manter o apoio dos 30% que o defendem a
todo custo, vai precisar manter um diálogo de radicalismo, de forma
direta e permanente com esse eleitorado.
Isso se torna um movimento cíclico e sem volta, que é realimentar a
prática de enxergar inimigos cada vez mais perto. Em termos gerais,
deveremos ter um governo cada vez mais radical, apoiado pela ala
ideológica, substituindo inimigos da esquerda por antigos apoiadores que
passarão a ser retratados como traidores. Aliás, como fazem todos os
ditadores.
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Reportagem Por René Ruschel
Fonte: https://www.cartacapital.com.br/politica/bolsonaro-e-o-lado-mais-nefasto-da-politica-brasileira-diz-sociologo/
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