Ricupero: "A pandemia acentuará
tendências já presentes desde a crise de 2008,
do menor crescimento do comércio
mundial ao debate da desigualdade"
Para
Ricupero, covid-19 acentuará mudanças já em curso, mas não vai virar o mundo do
avesso
Por Maria Cristina Fernandes — De São Paulo
04/05/2020
O embaixador Rubens Ricupero resiste à tese de que a
pandemia do coronavírus vai virar o mundo do avesso. Avoca a peste negra, que
chegou a exterminar um terço da população europeia, mas não foi capaz de
transformar a ordem vigente em meados do século XIV.
Diz que a pandemia deve acelerar tendências já existentes,
como a discussão da desigualdade e da reindustrialização em setores sensíveis
para a segurança nacional, além do impulso à dissolução da União Europeia. Não
acredita, no entanto, que a China venha a liderar um novo “Plano Marshall”.
Acredita, por outro lado, que uma eventual derrota de Donald Trump provocaria
um impacto maior sobre o planeta do que a pandemia.
Aos 83 anos, a vida de Ricupero, que foi embaixador do
Brasil nos Estados Unidos e secretário-geral da Conferência das Nações Unidas
sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), além de ministro do Meio Ambiente
(1993) e da Fazenda (1994), também pouco mudou com a pandemia.
Casado há 59 anos com Marisa, pouco saem do apartamento em
Higienópolis. Hoje nem à padaria ou à frutaria vão. Pedem por telefone. O único
dos quatro filhos que mora em São Paulo, Bernardo, é quem traz as compras. A
cada 15 dias, recebem a faxineira.
A reclusão o levou a retomar a
leitura da “Divina Comédia”, de Dante Alighieri. Neto de imigrantes da Puglia,
pena com o italiano medieval. Já tinha lido o “Inferno”. Ao longo da
quarentena, deu cabo do “Purgatório”. E agora está no “Paraíso”. Não tem dúvida
de que a conjuntura o remete à primeira de suas leituras de Dante. Pela
pandemia, e não pelos ataques do chanceler Ernesto Araújo no Twitter, que
prefere ignorar. A seguir, os principais trechos da entrevista, concedida por
telefone. Na quinta-feira, Ricupero participou da “Live do Valor ”.
Valor: A discussão sobre o pós-pandemia tem sido permeada de duas
referências, a emergência do fascismo e do nazismo depois da 1ª Guerra e da gripe
espanhola e o Plano Marshall que tirou o mundo do atoleiro depois da 2ª Guerra.
Estamos próximos de um ou do outro?
Rubens Ricupero: De nenhum deles. O fascismo e o nazismo foram
consequências, sobretudo, da 1ª Guerra. A gripe espanhola foi um reforço do
sofrimento e da destruição; o apoio do poder financeiro e empresarial à
ascensão do nazifascismo foi fruto do medo da propagação do bolchevismo.
Nenhuma dessas condições ocorre hoje. No fim da 2ª Guerra, os EUA eram a única
economia intacta, com 50% do PIB mundial. O governo era o mesmo do New Deal,
que usava o poder do Estado para reconstruir a economia e tinha interesse em
fortalecer a Europa para barrar o comunismo. Hoje, os americanos têm apenas 15%
do PIB mundial e a economia deles sairá da pandemia devastada. Trump é avesso a
qualquer ajuda externa e nenhum outro país tem condições ou desejo de ocupar
esse vazio.
“A China não parece preparada nem interessada em replicar os
EUA do pós-guerra, basta ver o rumo do 'Belt&Road;'"
Valor: A China não lideraria esse “Plano Marshall”?
Ricupero: Não há nenhuma indicação de que a China deseje assumir
esse papel. A rigor, antes da pandemia, já tinha lançado e estava levando
avante “seu” próprio “Plano Marshall”: a iniciativa “Belt & Road”, a nova
Rota da Seda, com o objetivo de se tornar o centro de uma rede integrada de
transporte e comércio. A iniciativa tem limitações. Os empréstimos tendiam a
endividar excessivamente os países. Além disso, atendia nitidamente aos
interesses geopolíticos chineses. A China também segue fiel à estratégia de não
ampliar demais seu engajamento externo, para não repetir erros americanos. A
contribuição chinesa à OMS é somente 10% da americana. A China não parece
preparada nem interessada em replicar os EUA do pós-guerra. A “diplomacia das
máscaras” é uma operação limitada de propaganda, de resposta às acusações de
que o vírus é de origem chinesa. Não é um prelúdio a um programa de ajuda
externa. Quem sai engrandecida é sua nêmesis, Taiwan, que teve uma resposta
fulminante ao vírus. Ajudou que o vice-presidente seja epidemiologista e a
experiência acumulada em outras epidemias. Outro país que se destacou também é
uma democracia: a Coreia do Sul. O “soft power” da China é limitado.
Valor: Então com que cenário pós-pandemia o senhor trabalha?
Ricupero: Nenhuma epidemia foi capaz de alterar em profundidade a
estrutura da política mundial ou da economia capitalista. Nem a peste negra
[1348] foi tão longe. Estima-se que tenha provocado na Europa e na Ásia a morte
de 70 milhões a 200 milhões de pessoas. Exterminou um terço da população
europeia. O que uma pandemia pode fazer é acelerar tendências existentes e
inibir outras. Há dois exemplos. O primeiro é o aquecimento global, que não é
conjuntural, mas uma tendência secular inelutável e de longuíssimo prazo.
Quando a pandemia passar a ser uma má lembrança, o derretimento dos gelos
polares, a elevação do nível dos oceanos, a frequência das catástrofes
climáticas continuarão. Outro exemplo é a mudança gradual do eixo demográfico e
econômico do Atlântico Norte, entre EUA e Europa Ocidental, em direção ao
Pacífico, que concentrará a maior parte das grandes cidades, da classe média,
da economia do mundo.
Valor: De que maneira
o stress do Brasil com a China pode prejudicar a recomposição da política
externa brasileira no pós-pandemia?
Ricupero: Sem mudança radical da política externa, o potencial do
relacionamento com a China estará comprometido. Não se trata apenas dos ataques
gratuitos dos filhos do presidente ou do ministro da Educação. O dano principal
provém da decisão de se alinhar com a agenda do governo [Donald] Trump,
culminando com a assinatura de acordo de cooperação militar. Aliar-se aos EUA
significa, entre outras coisas, “comprar” toda a agenda de Washington,
assumindo como próprias as brigas americanas e seus inimigos. Passada a
pandemia, um dos traços do panorama internacional será a acentuada competição
EUA-China em todos os domínios, do estratégico-militar ao
econômico-tecnológico. Diante disso, o Brasil, país que não sofre de ameaças
externas à sua segurança, não tinha nenhuma razão nacional, a não ser a
cegueira ideológica, para brigar com seus mercados. Por isso, o melhor que o
Brasil pode esperar é manter suas exportações naqueles produtos como a soja, em
que não há, hoje, alternativa fácil. Mas fica extremamente vulnerável,
eliminando a possibilidade de expandir significativamente o volume ou a
qualidade da parceria, ou mesmo de atrair investimento expressivo. Dificilmente
a China repetiria a participação no fracassado leilão de áreas de petróleo, em
que duas estatais chinesas foram as únicas estrangeiras presentes. Foi uma
decisão política. A China também não pensará duas vezes antes de sacrificar
interesses do agronegócio brasileiro na hora de implementar o acordo com
Washington. Eles têm esse realismo frio e empedernido. O Brasil dá motivos. O
acordo militar foi feito para nos amarrar. Podemos ficar impedidos de escolher
o 5G chinês porque isso violaria a cooperação militar. A Huawei já representa
50% da infraestrutura do 5G no Brasil. O país, refletindo os EUA, estaria
pensando em limitar a Huawei em 35%.
Valor: A reeleição de
Trump comprometeria de uma vez por todas a chance de os EUA terem um papel de
liderança nessa crise?
Ricupero: A derrota do Trump seria mais definidora da ordem mundial
do que a pandemia. Sua reeleição seria um cenário de desespero, o pesadelo da
atração do abismo. Já a derrota recriaria condições para reconstruir um clima mínimo
de decência e civilidade nas relações internacionais. Uma possível vitória de
[Joe] Biden não eliminaria características centrais do sistema mundial, mas
permite a volta a uma relativa normalidade no relacionamento com a China, no
acordo com o Irã, no fim das sanções e no Oriente Médio. Reabriria caminho para
soluções negociadas, pacíficas, de compromisso. É um homem de transição.
É
inconcebível que o Brasil volte a abraçar a agenda ultraliberal, como insistia
até o começo da pandemia"
Valor: De que maneira a pandemia vai afetar o multilateralismo?
Questões como o confisco de medicamentos em aeroportos podem ser dirimidas
pelas instituições vigentes? É possível um novo protocolo para segurança sanitária?
Ricupero: Vai depender da qualidade das lideranças mundiais. O
panorama até agora tem sido mais de sombras que de luzes. Os exemplos de
cooperação eficaz, de solidariedade, têm sido raros comparados à reação
puramente nacional, estreita, inspirada pelo que um estadista italiano do
passado chamou de “il sacro egoismo”. Como também a célebre frase do coronel Tamarindo
em Canudos: “Em tempo de murici, cada um cuide de si”. Houve a decisão do G-20
para suspender temporariamente o pagamento da dívida de países pobres, mas é
fato que o sistema multilateral sai muito enfraquecido. Basta ver a demora do
Conselho de Segurança da ONU em decretar estado de emergência mundial devido à
insistência americana de incluir a origem chinesa do vírus. É por isso que
saber quem governará os EUA é vital. O melhor que se poderia almejar seria um
sistema eficaz para combater o surgimento de outros vírus mortais. A OMS não
tem essa atribuição nem recursos. Seu papel é monitorar e coordenar informações
e práticas para combatê-las.
Valor: De que maneira
a falta de solidariedade na comunidade europeia será capaz de minar sua
unidade. Quem poderia liderá-la?
Ricupero: Numa sessão do parlamento, a presidente da Comissão
Europeia pediu desculpas publicamente à Itália. Outro fato inédito a indicar a
gravidade da situação foi o ex-presidente da comissão Jacques Delors, com mais
de 90 anos, que raramente rompe o silêncio, se sentir no dever de advertir os
europeus de que a pandemia arrisca a unificação. Até agora, as medidas
concretas para aliviar os países mais atingidos têm sido tardias e frustrantes.
Agravou-se o fosso com o Sul menos próspero. No auge da discussão sobre a
emissão de um “coronabônus” garantido pelos Tesouros de todos os países, o
ministro de Finanças da Holanda reproduziu a fábula da cigarra e das formigas,
ao indagar porque os meridionais não haviam acumulado provisões. O presidente de
Portugal classificou a afirmação de “repugnante”, obrigando o holandês a se
desculpar. Nenhum estadista emergiu. [Angela] Merkel está de saída, dá sinais
de fadiga, problemas de saúde, sua liderança no país já é vista como parte da
história. Por outro lado, a Alemanha tem sido mais problema que solução, como
se viu na oposição à emissão do bônus. [Emmanuel] Macron não tem atrás de si um
país unido e resoluto. Enfraquecido pelo Brexit, o futuro do projeto europeu
aparece tão incerto como o do mundo.
Valor: O que a
popularidade de Giuseppe Conte no país mais dilacerado pela pandemia ensina
sobre o futuro da política?
Ricupero: A popularidade de Conte antecede a pandemia. Já se
discutia como ele se havia transformado de obscuro professor universitário em
figura de primeiro plano. A quase totalidade dos líderes conseguiu ampliar e
reforçar o apoio da população ao se mostrar pronta a corrigir erros e assumir a
responsabilidade, orientar e apontar rumos. A única exceção é o Brasil.
Valor: A insegurança sanitária trouxe de volta ecos do nacionalismo. A
globalização está em risco? A política industrial vai renascer?
Ricupero: Num momento de catástrofe, o primeiro e último recurso
reside no Estado-Nação, a única instância capaz de dar resposta centralizada e
rápida aos desafios. Fica difícil vê-lo substituído por uniões regionais ou
organizações internacionais. Mas é pouco plausível que a pandemia destrua a
essência da globalização, em função da internet e das telecomunicações. Será um
fator adicional para acentuar tendências presentes desde 2008, como o menor
crescimento do comércio mundial, o desejo de proteger empregos industriais, a
perda de dinamismo de cadeias globais e o argumento da “pegada de carbono” para
favorecer fornecedores próximos. Na ausência de organismo capaz de prevenir
pandemias e assegurar suprimentos, é razoável que cada país procure reduzir a
dependência de equipamentos hospitalares, médicos, produtos farmacêuticos. Não
só em relação à China. Um estudo da OMC mostrou que Cingapura, Taiwan e Coreia
do Sul representam fatias comparáveis à chinesa.
Valor: A pandemia terá, para o liberalismo, o impacto que a queda do
muro de Berlim teve para o socialismo?
Ricupero: Bem antes da epidemia, já se questionava o aumento da
desigualdade, bem como a austeridade, o fiscalismo e a confiança cega no
mercado. Os EUA já se haviam afastado tanto delas que caminhavam para déficits
orçamentários de mais de US$ 1 trilhão. No Brasil, a heroica cruzada de André
Lara Resende havia recolocado na agenda a necessidade de se recuperar o
investimento do setor público. A pandemia pode, no máximo, tornar irrecusáveis
verdades inconvenientes. No Brasil, é inconcebível que o país volte a abraçar a
agenda ultraliberal.
Valor: O Brasil sairá mais desigual e mais dividido dessa pandemia.
Como isso afetará o futuro do governo Jair Bolsonaro?
Ricupero: Por mais difícil que seja, o afastamento é uma condição.
O comportamento do presidente procede da ignorância insondável. Um homem sem
valores. O governo Bolsonaro é apenas a última etapa da crise que se torna mais
aguda depois de 2013. O atual ciclo, que começou em 1985, já dura 35 anos. Só
há dois outros ciclos que duraram tanto, a República Velha e o Segundo Império.
Todos os ciclos terminam com instituições esgotadas e sem capacidade de reforma.
Hoje impera a incapacidade de gerir uma sociedade moderna. O problema não se
esgota com Bolsonaro.
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