domingo, 10 de maio de 2020

RICUPERO: ‘Eleição nos EUA terá mais impacto que pandemia’


 
 Ricupero: "A pandemia acentuará tendências já presentes desde a crise de 2008, 
do menor crescimento do comércio mundial ao debate da desigualdade"

Para Ricupero, covid-19 acentuará mudanças já em curso, mas não vai virar o mundo do avesso

Por Maria Cristina Fernandes — De São Paulo

04/05/2020

O embaixador Rubens Ricupero resiste à tese de que a pandemia do coronavírus vai virar o mundo do avesso. Avoca a peste negra, que chegou a exterminar um terço da população europeia, mas não foi capaz de transformar a ordem vigente em meados do século XIV.

Diz que a pandemia deve acelerar tendências já existentes, como a discussão da desigualdade e da reindustrialização em setores sensíveis para a segurança nacional, além do impulso à dissolução da União Europeia. Não acredita, no entanto, que a China venha a liderar um novo “Plano Marshall”. Acredita, por outro lado, que uma eventual derrota de Donald Trump provocaria um impacto maior sobre o planeta do que a pandemia.

Aos 83 anos, a vida de Ricupero, que foi embaixador do Brasil nos Estados Unidos e secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), além de ministro do Meio Ambiente (1993) e da Fazenda (1994), também pouco mudou com a pandemia.

Casado há 59 anos com Marisa, pouco saem do apartamento em Higienópolis. Hoje nem à padaria ou à frutaria vão. Pedem por telefone. O único dos quatro filhos que mora em São Paulo, Bernardo, é quem traz as compras. A cada 15 dias, recebem a faxineira. 

A reclusão o levou a retomar a leitura da “Divina Comédia”, de Dante Alighieri. Neto de imigrantes da Puglia, pena com o italiano medieval. Já tinha lido o “Inferno”. Ao longo da quarentena, deu cabo do “Purgatório”. E agora está no “Paraíso”. Não tem dúvida de que a conjuntura o remete à primeira de suas leituras de Dante. Pela pandemia, e não pelos ataques do chanceler Ernesto Araújo no Twitter, que prefere ignorar. A seguir, os principais trechos da entrevista, concedida por telefone. Na quinta-feira, Ricupero participou da “Live do Valor ”.

Valor: A discussão sobre o pós-pandemia tem sido permeada de duas referências, a emergência do fascismo e do nazismo depois da 1ª Guerra e da gripe espanhola e o Plano Marshall que tirou o mundo do atoleiro depois da 2ª Guerra. Estamos próximos de um ou do outro?

Rubens Ricupero: De nenhum deles. O fascismo e o nazismo foram consequências, sobretudo, da 1ª Guerra. A gripe espanhola foi um reforço do sofrimento e da destruição; o apoio do poder financeiro e empresarial à ascensão do nazifascismo foi fruto do medo da propagação do bolchevismo. Nenhuma dessas condições ocorre hoje. No fim da 2ª Guerra, os EUA eram a única economia intacta, com 50% do PIB mundial. O governo era o mesmo do New Deal, que usava o poder do Estado para reconstruir a economia e tinha interesse em fortalecer a Europa para barrar o comunismo. Hoje, os americanos têm apenas 15% do PIB mundial e a economia deles sairá da pandemia devastada. Trump é avesso a qualquer ajuda externa e nenhum outro país tem condições ou desejo de ocupar esse vazio.

“A China não parece preparada nem interessada em replicar os EUA do pós-guerra, basta ver o rumo do 'Belt&Road;'"

Valor: A China não lideraria esse “Plano Marshall”?

Ricupero: Não há nenhuma indicação de que a China deseje assumir esse papel. A rigor, antes da pandemia, já tinha lançado e estava levando avante “seu” próprio “Plano Marshall”: a iniciativa “Belt & Road”, a nova Rota da Seda, com o objetivo de se tornar o centro de uma rede integrada de transporte e comércio. A iniciativa tem limitações. Os empréstimos tendiam a endividar excessivamente os países. Além disso, atendia nitidamente aos interesses geopolíticos chineses. A China também segue fiel à estratégia de não ampliar demais seu engajamento externo, para não repetir erros americanos. A contribuição chinesa à OMS é somente 10% da americana. A China não parece preparada nem interessada em replicar os EUA do pós-guerra. A “diplomacia das máscaras” é uma operação limitada de propaganda, de resposta às acusações de que o vírus é de origem chinesa. Não é um prelúdio a um programa de ajuda externa. Quem sai engrandecida é sua nêmesis, Taiwan, que teve uma resposta fulminante ao vírus. Ajudou que o vice-presidente seja epidemiologista e a experiência acumulada em outras epidemias. Outro país que se destacou também é uma democracia: a Coreia do Sul. O “soft power” da China é limitado.

Valor: Então com que cenário pós-pandemia o senhor trabalha?

Ricupero: Nenhuma epidemia foi capaz de alterar em profundidade a estrutura da política mundial ou da economia capitalista. Nem a peste negra [1348] foi tão longe. Estima-se que tenha provocado na Europa e na Ásia a morte de 70 milhões a 200 milhões de pessoas. Exterminou um terço da população europeia. O que uma pandemia pode fazer é acelerar tendências existentes e inibir outras. Há dois exemplos. O primeiro é o aquecimento global, que não é conjuntural, mas uma tendência secular inelutável e de longuíssimo prazo. Quando a pandemia passar a ser uma má lembrança, o derretimento dos gelos polares, a elevação do nível dos oceanos, a frequência das catástrofes climáticas continuarão. Outro exemplo é a mudança gradual do eixo demográfico e econômico do Atlântico Norte, entre EUA e Europa Ocidental, em direção ao Pacífico, que concentrará a maior parte das grandes cidades, da classe média, da economia do mundo.

Valor: De que maneira o stress do Brasil com a China pode prejudicar a recomposição da política externa brasileira no pós-pandemia?

Ricupero: Sem mudança radical da política externa, o potencial do relacionamento com a China estará comprometido. Não se trata apenas dos ataques gratuitos dos filhos do presidente ou do ministro da Educação. O dano principal provém da decisão de se alinhar com a agenda do governo [Donald] Trump, culminando com a assinatura de acordo de cooperação militar. Aliar-se aos EUA significa, entre outras coisas, “comprar” toda a agenda de Washington, assumindo como próprias as brigas americanas e seus inimigos. Passada a pandemia, um dos traços do panorama internacional será a acentuada competição EUA-China em todos os domínios, do estratégico-militar ao econômico-tecnológico. Diante disso, o Brasil, país que não sofre de ameaças externas à sua segurança, não tinha nenhuma razão nacional, a não ser a cegueira ideológica, para brigar com seus mercados. Por isso, o melhor que o Brasil pode esperar é manter suas exportações naqueles produtos como a soja, em que não há, hoje, alternativa fácil. Mas fica extremamente vulnerável, eliminando a possibilidade de expandir significativamente o volume ou a qualidade da parceria, ou mesmo de atrair investimento expressivo. Dificilmente a China repetiria a participação no fracassado leilão de áreas de petróleo, em que duas estatais chinesas foram as únicas estrangeiras presentes. Foi uma decisão política. A China também não pensará duas vezes antes de sacrificar interesses do agronegócio brasileiro na hora de implementar o acordo com Washington. Eles têm esse realismo frio e empedernido. O Brasil dá motivos. O acordo militar foi feito para nos amarrar. Podemos ficar impedidos de escolher o 5G chinês porque isso violaria a cooperação militar. A Huawei já representa 50% da infraestrutura do 5G no Brasil. O país, refletindo os EUA, estaria pensando em limitar a Huawei em 35%.

Valor: A reeleição de Trump comprometeria de uma vez por todas a chance de os EUA terem um papel de liderança nessa crise?

Ricupero: A derrota do Trump seria mais definidora da ordem mundial do que a pandemia. Sua reeleição seria um cenário de desespero, o pesadelo da atração do abismo. Já a derrota recriaria condições para reconstruir um clima mínimo de decência e civilidade nas relações internacionais. Uma possível vitória de [Joe] Biden não eliminaria características centrais do sistema mundial, mas permite a volta a uma relativa normalidade no relacionamento com a China, no acordo com o Irã, no fim das sanções e no Oriente Médio. Reabriria caminho para soluções negociadas, pacíficas, de compromisso. É um homem de transição.

É inconcebível que o Brasil volte a abraçar a agenda ultraliberal, como insistia até o começo da pandemia"

Valor: De que maneira a pandemia vai afetar o multilateralismo? Questões como o confisco de medicamentos em aeroportos podem ser dirimidas pelas instituições vigentes? É possível um novo protocolo para segurança sanitária?

Ricupero: Vai depender da qualidade das lideranças mundiais. O panorama até agora tem sido mais de sombras que de luzes. Os exemplos de cooperação eficaz, de solidariedade, têm sido raros comparados à reação puramente nacional, estreita, inspirada pelo que um estadista italiano do passado chamou de “il sacro egoismo”. Como também a célebre frase do coronel Tamarindo em Canudos: “Em tempo de murici, cada um cuide de si”. Houve a decisão do G-20 para suspender temporariamente o pagamento da dívida de países pobres, mas é fato que o sistema multilateral sai muito enfraquecido. Basta ver a demora do Conselho de Segurança da ONU em decretar estado de emergência mundial devido à insistência americana de incluir a origem chinesa do vírus. É por isso que saber quem governará os EUA é vital. O melhor que se poderia almejar seria um sistema eficaz para combater o surgimento de outros vírus mortais. A OMS não tem essa atribuição nem recursos. Seu papel é monitorar e coordenar informações e práticas para combatê-las.

Valor: De que maneira a falta de solidariedade na comunidade europeia será capaz de minar sua unidade. Quem poderia liderá-la?

Ricupero: Numa sessão do parlamento, a presidente da Comissão Europeia pediu desculpas publicamente à Itália. Outro fato inédito a indicar a gravidade da situação foi o ex-presidente da comissão Jacques Delors, com mais de 90 anos, que raramente rompe o silêncio, se sentir no dever de advertir os europeus de que a pandemia arrisca a unificação. Até agora, as medidas concretas para aliviar os países mais atingidos têm sido tardias e frustrantes. Agravou-se o fosso com o Sul menos próspero. No auge da discussão sobre a emissão de um “coronabônus” garantido pelos Tesouros de todos os países, o ministro de Finanças da Holanda reproduziu a fábula da cigarra e das formigas, ao indagar porque os meridionais não haviam acumulado provisões. O presidente de Portugal classificou a afirmação de “repugnante”, obrigando o holandês a se desculpar. Nenhum estadista emergiu. [Angela] Merkel está de saída, dá sinais de fadiga, problemas de saúde, sua liderança no país já é vista como parte da história. Por outro lado, a Alemanha tem sido mais problema que solução, como se viu na oposição à emissão do bônus. [Emmanuel] Macron não tem atrás de si um país unido e resoluto. Enfraquecido pelo Brexit, o futuro do projeto europeu aparece tão incerto como o do mundo.
Valor: O que a popularidade de Giuseppe Conte no país mais dilacerado pela pandemia ensina sobre o futuro da política?

Ricupero: A popularidade de Conte antecede a pandemia. Já se discutia como ele se havia transformado de obscuro professor universitário em figura de primeiro plano. A quase totalidade dos líderes conseguiu ampliar e reforçar o apoio da população ao se mostrar pronta a corrigir erros e assumir a responsabilidade, orientar e apontar rumos. A única exceção é o Brasil.

Valor: A insegurança sanitária trouxe de volta ecos do nacionalismo. A globalização está em risco? A política industrial vai renascer?

Ricupero: Num momento de catástrofe, o primeiro e último recurso reside no Estado-Nação, a única instância capaz de dar resposta centralizada e rápida aos desafios. Fica difícil vê-lo substituído por uniões regionais ou organizações internacionais. Mas é pouco plausível que a pandemia destrua a essência da globalização, em função da internet e das telecomunicações. Será um fator adicional para acentuar tendências presentes desde 2008, como o menor crescimento do comércio mundial, o desejo de proteger empregos industriais, a perda de dinamismo de cadeias globais e o argumento da “pegada de carbono” para favorecer fornecedores próximos. Na ausência de organismo capaz de prevenir pandemias e assegurar suprimentos, é razoável que cada país procure reduzir a dependência de equipamentos hospitalares, médicos, produtos farmacêuticos. Não só em relação à China. Um estudo da OMC mostrou que Cingapura, Taiwan e Coreia do Sul representam fatias comparáveis à chinesa.

Valor: A pandemia terá, para o liberalismo, o impacto que a queda do muro de Berlim teve para o socialismo?

Ricupero: Bem antes da epidemia, já se questionava o aumento da desigualdade, bem como a austeridade, o fiscalismo e a confiança cega no mercado. Os EUA já se haviam afastado tanto delas que caminhavam para déficits orçamentários de mais de US$ 1 trilhão. No Brasil, a heroica cruzada de André Lara Resende havia recolocado na agenda a necessidade de se recuperar o investimento do setor público. A pandemia pode, no máximo, tornar irrecusáveis verdades inconvenientes. No Brasil, é inconcebível que o país volte a abraçar a agenda ultraliberal.

Valor: O Brasil sairá mais desigual e mais dividido dessa pandemia. Como isso afetará o futuro do governo Jair Bolsonaro?

Ricupero: Por mais difícil que seja, o afastamento é uma condição. O comportamento do presidente procede da ignorância insondável. Um homem sem valores. O governo Bolsonaro é apenas a última etapa da crise que se torna mais aguda depois de 2013. O atual ciclo, que começou em 1985, já dura 35 anos. Só há dois outros ciclos que duraram tanto, a República Velha e o Segundo Império. Todos os ciclos terminam com instituições esgotadas e sem capacidade de reforma. Hoje impera a incapacidade de gerir uma sociedade moderna. O problema não se esgota com Bolsonaro.




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