23 de maio de 2020
Peste,
guerra, fome e morte. Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse podem ter
significados variados a depender da crença de cada um, mas para o
historiador austríaco e professor da Universidade de Stanford Walter
Scheidel essas condições significam uma coisa ao longo dos séculos:
redução das desigualdades econômicas.
Em seu mais recente livro, Violência e a História da Desigualdade - Da Idade da Pedra ao Século 21 (ed.
Zahar), Scheidel defende que o nivelamento das rendas só se deu, em
toda a história humana, por meio dessas grandes catástrofes, que ele
chama de Quatro Grandes Niveladores — uma dos poucas exceções, de acordo
com o pesquisador, foi a América Latina nos anos 2000, que reduziu
disparidades por métodos pacíficos e democráticos, mas esse processo não
se provou duradouro.
Scheidel
utiliza-se de farta documentação histórica para demonstrar como as
guerras, epidemias, crises e revoluções foram eventos niveladores. Após a
Peste Negra, por exemplo, o contingente de trabalhadores ficou tão
reduzido que a mão-de-obra tornou-se valiosa ao ponto de reduzir as
injustiças sociais durante vários séculos. Mas esse tipo de nivelamento
não deve acontecer, segundo ele, após a atual pandemia de covid-19.
Leia abaixo a entrevista que o historiador Walter Scheidel concedeu por videochamada ao Estadão:
Há
alguma perspectiva de que a atual pandemia provocada pelo novo
coronavírus traga efeitos similares de redução de desigualdades ao das
grandes epidemias do passado?
Estou muito cético quanto a
isso por várias razões. O maior motivo é que a atual pandemia será
muito menos severa em termos de mortalidade do que as grandes pestes do
passado. Mesmo no pior cenário, a mortalidade será muito menor, em
termos de porcentagem da população, e deve afetar ainda menos a força de
trabalho, porque a maioria das vítimas são pessoas mais velhas.
Salários não devem subir como resultado dessa pandemia, porque a
mão-de-obra não se tornará escassa. Então esse efeito não deve aparecer
desta vez. Há uma grande quantidade de motivos para crer que a pandemia
deve aumentar em vez de reduzir a desigualdade, pelo menos a curto
prazo, o que já estamos testemunhando. Há certos grupos de pessoas que
estão relativamente protegidas, seus empregos estão seguros, eles podem
continuar a trabalhar, e outras pessoas que estão muito mais expostas em
determinados setores ou perdendo seus empregos. Então o desemprego está
mal-distribuído pela população, como resultado disso a disparidade deve
aumentar. Você a vê entre crianças e estudantes, alguns capazes de
estudar online e outros sem acesso a esses recursos, e isso deve
aumentar as injustiças educacionais também. Na crise de 2008, os ricos
perderam inicialmente porque o valor de seus investimentos decaiu, mas
eles os recuperaram em um período razoavelmente curto de tempo. Já se vê
tendências semelhantes nas bolsas de valores, que não estão indo tão
mal, então há uma boa chance que, mais uma vez, os ricos se recuperem
mais rapidamente que a maioria da população. Isso deve aumentar a
desigualdade. Então ainda que haja algum potencial de nivelamento, isso
depende de como políticos, legisladores e eleitores responderão a essa
crise e seus efeitos. Qualquer tipo de ruptura tem o potencial de
balançar as coisas, e um resultado possível disso é que mais pessoas
abracem políticas progressistas de redistribuição de renda, oferecendo
mais proteção social e acesso à saúde aos trabalhadores ou aumentando
impostos para os ricos. Isso é uma possibilidade, e certamente haverá
partidos políticos que tentarão converter a crise em uma motivação para
esses programas, mas também haverá uma resistência conservadora
considerável, e, no longo prazo, dependerá de quem tem a vantagem. Não é
algo que será decidido este ano, mas deve se arrastar por vários anos.
O
mundo contemporâneo parece estar repleto de guerras, revoluções, crises
e epidemias, mas por que não vemos esse efeito acontecer novamente hoje
em dia?
Há muitas guerras, revoluções e epidemias hoje,
isso é verdade em certa medida, mas se compararmos com grandes rupturas
do passado, o que estamos vivendo atualmente no mundo não chega perto
da magnitude do que já passamos. Apenas guerras muito grandes, como as
mundiais, reduziram as desigualdades na Europa, América ou Ásia. O fato
de a América Latina nunca ter passado por nada como as guerras mundiais
ajuda a explicar por que sua disparidade ainda é muito alta. Nunca houve
rupturas realmente violentas. O mesmo é verdadeiro para revoluções, não
temos nenhuma grande revolução desde a maoista e suas derivadas em
meados do século 20. Estados não entram mais em colapso. Eles
eventualmente caem em certas partes do mundo, como a África Central e o
Oriente Médio, mas em nenhum outro lugar, nem mesmo na Venezuela nesse
momento, pelo fato de os Estados serem muito mais resilientes do que
eles costumavam ser. E essa pandemia é muito menos severa do que a Gripe
Espanhola há um século ou as grandes pragas do passado. Então eu acho
que depende muito do quão grave e disruptivo um evento de crise é. Tenho
pensado muito sobre isso, porque eu falo em meus livros sobre os quatro
grandes niveladores, e eu acho que no mundo temos hoje quatro grandes
estabilizadores, que previnem deslocamentos mais traumáticos (que
poderiam ter um efeito de redução de desigualdade) de ocorrer. Um é que
boa parte do mundo é muito mais rica do que era, o que evita colapsos
sociais ou guerras civis, muito mais comuns no passado. O segundo são as
redes de seguridade social, que, claro, estão desenvolvidas
desproporcionalmente em diferentes partes do mundo, mas mesmo no Brasil
há algum grau de segurança que não havia antes, e isso é ainda mais
evidente em outros países, evitando que a pobreza chegue a níveis que
façam as pessoas se radicalizarem. Também há a habilidade de bancos
centrais criarem dinheiro para manter a economia girando, o que não era
possível na década de 1930, por exemplo, durante a Grande Depressão, o
que provocou um resultado muito diferente. E o quarto fator consiste na
ciência moderna e na tecnologia, que ajudam a estabilizar a ordem
existente, seja o fato de podermos trabalhar remotamente pela internet, o
que não poderíamos fazer há dez ou vinte anos, ou o fato de sermos
capazes de sequenciar o RNA do vírus em apenas algumas semanas e termos
mais de uma centena de medicamentos ou tratamentos em teste pelo mundo. A
ciência é hoje tão poderosa que tem o potencial de nos levar para fora
dessa crise em relativamente pouco tempo. E se ela o fizer, então a
ordem é novamente estabilizada. Então essa é uma resposta bem longa para
a questão de por que não há grandes rupturas hoje como havia no
passado. Sociedades, economias e tecnologias evoluíram de modo a manter a
ordem existente. Quanto maior a estabilidade, mais a disparidade é
favorecida, porque há menos pressão por mudanças. É isso que
essencialmente vemos desde o fim da guerra fria, cada vez mais, então
creio que a perspectiva de qualquer transformação radical por meio de
grandes rupturas está ficando cada vez menos provável.
O
sr. menciona brevemente a América Latina dos anos 2000 como um caso
bastante único de redução de desigualdades sociais sem grandes choques
ou rupturas, mas boa parte das conquistas sociais obtidas no início do
século foram se perdendo nos últimos anos. O que o caso latino-americano
pode nos dizer sobre desigualdade social no século 21?
O
caso latino-americano é fascinante, porque, como eu disse, não houve
grandes choques na história recente, o que explica que a desigualdade,
que é historicamente alta por conta do colonialismo e outros fatores,
tenha se mantido elevada durante o século 20, enquanto reduziu em outras
partes do mundo. E depois de 2000 vemos muitos países experimentarem
uma redução pacífica de injustiças, o que foi muito interessante, porque
parece um contraexemplo à minha tese, de que rupturas violentas são
necessárias para que isso ocorra. O que houve na América Latina nesse
período foi o resultado de uma combinação incomum de circunstâncias
favoráveis. Houve alguma recuperação de crises econômicas anteriores,
uma forte desregulamentação nos anos 1990, abrindo as economias para o
mundo, mais investimento em educação, transformações políticas e a
explosão das commodities na China, então as exportações cresceram e
beneficiaram determinados setores da população. E todos esses fatores se
alinharam na medida certa para reduzir a disparidade, não
drasticamente, mas de forma significativa. E não estava claro naquela
época se esse processo era sustentável e poderia se manter por muito
tempo. E ele não pôde. Primeiro por causa da guinada econômica no início
dessa década, e também por conta da reação política de forças
conservadores para derrubar os proponentes de mudanças progressistas no
Brasil e em outros países. E, é claro, houve locais em que os próprios
progressistas se radicalizaram, como na Venezuela e no Equador, e houve
reação política contra isso. Então há muitas razões para explicar por
que esse processo não pôde ser sustentado pelos últimos anos, e agora a
situação é ainda pior, porque a atual crise deve amplificar esses
problemas. Eu não tenho esperanças de ver uma nova redução de
desigualdades na América Latina em um futuro próximo, graças às
consequências da crise do coronavírus.
É possível haver no futuro mecanismos que favoreçam cenários pacíficos de redução de desigualdades?
É possível teoricamente, mas não parece acontecer muito na prática,
então seria ao menos muito difícil. Não é que as pessoas nunca reduziram
a disparidade por meios pacíficos, não está limitado ao exemplo
latino-americano. Tem acontecido em pequenas proporções por todo o
mundo. É possível, mas nunca ocorre em grande escala. Então, se o que
você estiver procurando é uma redução maciça da desigualdade em um
período curto de tempo, você vai precisar de um choque violento. Se você
colocar suas esperanças em mudanças políticas pacíficas, a
transformação será gradual e mais lenta, e por isso enfrenta um grande
risco de ser desarmada por obstáculos como crise econômica, reação
política e outros fatores que interferem nesse processo e o tornam muito
mais difícil. Dito isso, há sociedades no mundo que são tão injustas
hoje que não é preciso muito esforço para reduzir um pouco de sua
disparidade. Se você vive na Suécia, não há muito o que se pode fazer,
porque a desigualdade já é muito baixa. Mas se você vive no Brasil, na
África do Sul ou nos Estados Unidos, há medidas que se pode tomar
pacificamente que teriam um efeito real e não seriam terrivelmente
radicais ou dramáticas. E a melhor chance que temos é que tais medidas
sejam identificadas e implementadas. Certamente temos um modelo no que
ocorreu na América Latina nos anos 2000.
Existe um ponto
de equilíbrio no nível de desigualdade de um país que, se atingido,
impede ela de voltar a crescer a níveis prejudiciais?
Pode ser que o nível de equilíbrio varie entre países. Nem todos os
países são iguais. Se você olhar para países nórdicos que são, ou
costumavam ser, muito homogêneos em termos de sua população, poderia ter
sido mais fácil há 50 anos estabelecer Estados de bem-estar social
altamente redistributivos. Se você vive em sociedades como o Brasil, a
África do Sul e os EUA, que são muito mais heterogêneos e diversos, onde
há legados de racismo e todo tipo de iniquidade estrutural, o ponto de
equilíbrio da desigualdade pode simplesmente ser mais elevado. Talvez
não seja possível baixá-lo a níveis escandinavos por causa da maneira
pela qual a sociedade está estabelecida. Não quer dizer que seja
impossível reduzir disparidades, mas talvez seja necessário ajustar as
expectativas do que é politicamente ou socialmente viável em cada
contexto. Essa é uma ótima questão que ainda não foi estudada o
suficiente, porque não basta apontar para a Dinamarca e perguntar por
que não somos como eles, isso não ajuda em nada. Deve-se levar em
consideração todas as variáveis. Então a pergunta é: “Qual é o nível
realista de desigualdade para o Brasil dadas condições que não mudarão
do dia para a noite ou em nossos tempos de vida? O que pode ser
conquistado nesse contexto?” Certamente haverá algo a ser feito, apenas
não na mesma escala de outros países.
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Fonte: https://alias.estadao.com.br/noticias/geral,peste-negra-reduziu-desigualdades-mas-o-coronavirus-vai-aumenta-las-diz-historiador-walter-scheidel,70003310465
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