Leonardo Boff*
Causa séria preocupação o ataque sistêmico que a
natureza mediante um pequeníssimo e invisível vírus está movendo contra a
humanidade, levando milhares à morte. Entretanto, fundamental é também a nossa
reação frente à pandemia. Que lição ela nos passa? Que visão de mundo e que
espécie de valores ela nos leva a desenvolver? Seguramente devemos aprender tudo
o que devíamos ter aprendido e não aprendemos. Devíamos ter aprendido que somos
parte dela e não os seus “senhores e donos” (Descartes). Vigora uma conexão
umbilical entre ser humano e natureza. Viemos do mesmo pó cósmico como todos os
demais seres e somos o elo consciente da corrente da vida.
A erosão da imagem do “pequeno deus na terra”
O mito dos modernos de que nós somos “o pequeno
deus” na Terra e que podemos dispor dela ao nosso bel-prazer pois ela é inerte
e sem propósito foi desfeito. Um dos pais do método científico moderno Francis
Bacon dizia que devemos tratar a natureza como os esbirros da inquisição tratam
suas vítimas, torturando-as até que ela entreguem todos os seus
segredos
.
Pela tecnociência levamos este método até o extremo
alcançando o coração da matéria e da vida. Isso se implementou com um furor
inaudito ao ponto de termos destruído a sustentabilidade da natureza e assim do
planeta e da vida. Desta forma, rompemos o pacto natural que existe com
a Terra viva: ela nos dá tudo o que precisamos para viver e em contrapartida
nós devíamos cuidá-la, preservar seus bens e serviços e dar-lhe descanso para
repor tudo o que lhe tiramos para a nossa vida e progresso. Nada disso fizemos.
Por não termos observado o preceito bíblico de
“guardar e cuidar do Jardim do Éden(da Terra: Gn 2,15) e ameaçado as bases
ecológicas que sustentam toda vida, ela nos contra-atacou com uma arma
poderosa,o coronavírus 19. Para enfrentá-lo retornamos ao método da Idade Média
que superou suas pandemias mediante o isolamento social rigoroso. Para fazer o
povo, amedrontado, sair à rua, na prefeitura de Munique (Marienpltatz)
se construiu um engenhoso relógio com dançarinos e cucos para todos acorrerem
para apreciá-lo o que é feito até os dias atuais.
A pandemia que é mais que uma crise mas uma
exigência de mudança de visão de mundo e de incorporação de novos valores nos
coloca esta questão: queremos verdadeiramente evitar que a natureza nos envie
vírus ainda mais letais que até podem dizimar a espécie humana? Esta seria uma
entre as dez que desaparecem definitivamente a cada dia. Queremos correr esse
risco?
Já em 1962 a bióloga e escritora norte-americana
Rachel Carson, autora de “Primavera Silenciosa”(Silient Spring)
advertiu:” É pouco provável que as gerações futuras tolerem nossa falta de
preocupação prudente pela integridade do mundo natural que sustenta toda a
vida…A questão consiste em saber se alguma civilização pode levar adiante uma
guerra sem tréguas contra a vida, sem se destruir a si mesma e sem perder o
direito de ser chamada de civilização”.
Parece uma profecia da situação que estamos vivendo
a nível planetário. Temos a impressão de que a maioria da humanidade e mesmo os
líderes políticos não demonstram uma consciência suficiente dos perigos que
estamos correndo com o aquecimento global, com a demasiada proximidade de
nossas cidades e principalmente do agronegócio massivo da natureza virgem e das
florestas sendo desmatadas. Festa forma destruímos os habitats dos milhões de
vírus e bactérias que acabam se transferindo para os seres humanos.
É imperioso que abandonemos o velho paradigma da
vontade de poder e de dominação sobre tudo (o punho cerrado) na direção de um
paradigma do cuidado de tudo o que existe e vive (a mão estendida) e da
corresponsabilidade coletiva. Escreveu Eric Hobsbown na última frase de seu
livro A era dos extremos (1995):
”Uma coisa é clara. Se a humanidade quer ter um
futuro reconhecível, não pode ser pelo prolongamento do passado ou do presente.
Se tentarmos construir o terceiro milênio nesta base, vamos fracassar. O preço
do fracasso, ou seja, a alternativa para a mudança da sociedade é a escuridão”
(p.506).
Isto significa que não podemos voltar simplesmente
à situação anterior ao coronavírus.Nem pensar numa volta ao passado
pré-iluminismo como quer o atual governo brasileiro e outros de
extrema-direita.
Não são poucos os analistas que prognosticam que o
pós-pandemia poderá significar uma radicalização extrema da situação anterior,
uma volta ao sistema do capital e ao neoliberalismo, procurando dominar o mundo
com o uso da vigilância digital (big data) sobre cada pessoa do planeta, coisa
aliás que já está em curso na China e nos USA. Aí entraríamos na era das
trevas, com o risco, aventado por Raquel Carson da nossa autodestruição. Daí a
exigência de uma radical conversão ecológica, cuja centralidade deverá ser
ocupada pela Terra, pela vida e pela civilização humana: uma biocivilização.
Caso quisermos sobreviver.
Sigmund Freud respondendo a uma carta de Albert
Einstein de 1932 que perguntava se era possível superar a violência e a guerra,
deixava aberta a questão. Respondeu ponderando que não podia afirmar qual
instinto iria prevalecer: se o instinto de morte (thánatos) ou se o instinto de
vida (éros). Eles estão sempre se tensionando sem termos a certeza de quem no
final triunfará. Termina resignado:”Esfaimados pensamos no moinho que tão
lentamente mói que poderemos morrer de fome antes de receber a farinha”.
Há uma opinião nada otimista de um dos maiores
intelectuais norte-americanos e crítico severo do sistema imperialista, Noham Chomsky.
Diz ele:” «O coronavírus é algo sério o suficiente, mas vale lembrar que há
algo muito mais terrível se aproximando, estamos correndo para o desastre, algo
muito pior que qualquer coisa que já aconteceu na história da humanidade e
Trump e seus lacaios estão à frente disso, na corrida para o abismo. Há duas
ameaças imensas que estamos encarando. Uma é a crescente ameaça de guerra
nuclear, exacerbada pela tensão dos regimes militares e a outra, é claro, pelo
aquecimento global. Ambas podem ser resolvidas, mas não há muito tempo e o
coronavírus é terrível e pode ter péssimas consequências, mas será superado,
enquanto as outras não serão. Se nós não resolvermos isso, estaremos
condenados”.
Chomsky tem asseverado que o presidente Trump é
suficientemente insano para deflagar uma guerra nuclear, sem se importar com o
que pode acontecer para toda a humanidade.
Não obstante esta visão dramática do prestigiado
linguista e pensador, nossa esperança é que se a humanidade for posta sob grave
risco de realmente se autodestruir, o instinto de vida irá prevalecer. Mas à
condição de termos construído uma forma diferente de habitar a Casa Comum sobre
outras bases que não sejam nem do passado nem do presente.
Reinventar a humanidade e remodelar a Terra
O coronavírus nos obrigará a nos reinventar como
humanidade e remodelar de forma sustentável e includente a única Casa Comum que
temos. Se prevalecer o que dominava antes, ainda exacerbado ao extremo, aí sim
poderemos nos preparar para o pior. Entretanto, cabe recordar que o
sistema-vida passou por várias grandes dizimações (estamos dentro da sexta) mas
sempre sobreviveu.
Ela pareceria – me permito uma metáfora singular –
uma “praga” que ninguém até hoje conseguiu exterminar. Porque é uma
“praga”bendita, ligada ao mistério do cosmogênese e daquela Energia de Fundo,
misteriosa e amorosa que preside a todos os processos cósmicos e também os
nossos.
De todos os modos, o coronavírus nos mostrou de que
não somos “pequenos deuses” que pretendem poder tudo; somos frágeis e
limitados; que a acumulação de bens materiais não salva a vida; que a
globalização financeira sozinha, nos moldes competitivos do capitalismo, impede
de criar, como propõem os chineses “uma comunidade de destino comum para
toda a humanidade”; que temos que criar um centro global e plural para
gestionar os problemas globais; que a cooperação e a solidariedade de todos com
todos e não o individualismo, constituem os valores centrais de uma
geosociedade; que se deve reconhecer e respeitar os limites do sistema-Terra
que não tolera um projeto de crescimento ilimitado; que devemos cuidar da
natureza, como cuidamos de nós mesmos, pois somos parte dela e é ela que nos
fornece todos os bens e serviços necessários para a vida; que devemos buscar
uma economia circular que realiza os famosos três erres (R): reduzir,
reutilizar e reciclar tudo que entrou no processo produtivo; que a economia
seja de subsistência digna e universal e não da acumulação de alguns à custa de
todos os outros e da natureza; que este tipo de economia da subsistência
diminui as necessidades para dar lugar à sobriedade e assim reduzir enormemente
as desigualdades sociais; que a nova ordem econômica não se regeria pelo lucro
mas por uma racionalidade econômica com sentido social e ecológico;que seria
altamente racional e humanitário criar uma renda universal mínima; que a
assistência a saúde é um direito humano universal (One World-One Health);
que não podemos dispensar, antes favorecer, a ciência e a técnica feitas com
consciência e destinadas a servir à vida e não ao mercado; que é importante
garantir um Estado regulador do mercado, impulsionador do desenvolvimento
necessário e apetrechado para atender demandas coletivas, seja sanitárias seja
de calamidades naturais; que devemos incentivar o capital humano-espiritual,
sempre ilimitado, fundado no amor, na solidariedade, na busca da justa medida,
na fraternidade, na compaixão, no encantamento do mundo e na busca incansável
da paz.
Estas são algumas lições, entre outras, que o
coronavírus nos permite tirar. Citando a Carta da Terra, um dos
documentos oficiais (UNESCO) mais inspiradores para a transformação do nosso
modo de ser no planeta Terra,”são necessárias mudanças fundamentais nos nossos
valores, instituições e modos de vida…Nossos desafios ambientais, econômicos,
políticos,sociais e espirituais estão interligados e juntos podemos forjar
soluções includentes”(Preâmbulo c).
Que visão de
mundo e que valores incorporar?
Saber e tomar conhecimento dos dados da realidade
não é ainda fazer. O que nos move a agir? Que visão de mundo e que valores
devemos incorporar? Orienta-nos um importante texto da parte conclusiva da
Carta da Terra,de cuja redação também participei.
”Como nunca antes na história, o destino comum nos
conclama a buscar um novo começo. Isto requer uma mudança na mente e no
coração; demanda um novo sentido de interdependência global e de
responsabilidade universal. Devemos desenvolver e aplicar com imaginação a
visão de um modo de vida sustentável aos níveis local, nacional, regional e
global”(O caminho adiante)
Observemos: não se trata de apenas melhorar o
caminho andado. Esse nos levará às crises cíclicas que já conhecemos e
eventualmente ao desastre. Mas se trata de “buscar um novo começo”. Vale
dizer, somos desafiados a remontar a “Terra, nosso lar, que está viva com uma
comunidade de vida única”(CT, Preâmbulo a). Enganoso seria cobrir as feridas da
Terra com band-aids, pensando assim curá-la. Temos que revitalizá-la e
refaze-la para ser a Casa Comum.
“Isto requer uma mudança de mente”. A
mudança de mente significa um novo olhar sobre a Terra assim como a nova
cosmologia e biologia a apresentam. Ela é um momento do processo evolucionário
que já possui 13,7 bilhões e anos e a Terra, 4,3 bilhões de anos. Depois do big
bang, todos os elementos físico-químicos se forjaram ao longo de uns três
bilhões de anos no coração das grandes estrelas vermelhas. Ao explodirem,
jogarem para todas as direções estes elementos que formaram as galáxia, as
estrela como o Sol, os planetas e a Terra.
Ela é viva com uma vida que irrompeu há 3,8 bilhões
de anos, um super-organismo sistêmico que se auto-organiza e continuamente se
auto-cria. Num momento avançado de sua complexidade, cerca de 8-10 milhões de
anos atrás, uma porção dela começou a sentir, pensar, amar e venerar. Surgiu o
ser humano, homem e mulher. Ele é Terra consciente e inteligente, por isso se
chama homo, feito de húmus.
Esta visão muda a nossa concepção da Terra. A ONU
em 22 de abril de 2009 oficialmente a reconheceu como Mãe Terra, pois
tudo gera e nos dá. Por isso a Carta da Terra afirma:”Respeitar a Terra e a
vida em toda a sua diversidade e cuidar da comunidade de vida com compreensão,
compaixão e amor”(CT 1 e 2). Terra como solo podemos comprar e vender, cavar e
fazer tantas coisas. Mãe, no entanto, nós não compramos nem vendemos; nós a
amamos e veneramos. Tais atitudes devem ser transferidas para a Terra, nossa
Mãe. Essa é a nova mente que importa incorporar.
“Requer uma mudança no coração”. O coração é
a dimensão do sentimento profundo, da sensibilidade, do amor, da compaixão e
dos valores que orientam nossa vida. Especialmente no coração reside o cuidado
que é uma forma amigável e afetuosa de se relacionar com a natureza e os seus
seres. Temos a ver com a razão sensível ou cordial, com o cérebro límbico, que
emergiu há 220 milhões de anos quando irromperam na evolução os mamíferos.
Todos eles, como o ser humano, têm sentimentos, amor e cuidado para com sua
cria. Esse é o pathos, a capacidade de afetar e ser afetado, a dimensão
mais profunda do ser humano.
A razão (o logos), a mente da qual nos
referimos anteriormente, surgiu há apenas 8-10 milhões de anos com o cérebro
neocortical e na forma avançada como homo sapiens (o homem
atual) há cerca de cem mil anos. Ele, na modernidade, foi desenvolvido de
forma exponencial, dominando nossas sociedades e criando a tecnociência, os
grandes instrumentos de dominação e de transformação da face da Terra,
inclusive criando uma máquina de morte com armas nucleares e outras que podem
pôr fim à vida humana e da natureza.
O excesso da razão, o racionalismo, criou uma
espécie de lobotomia: o ser humano tem dificuldade de sentir o outro e o seu
sofrimento. Precisamos completar a inteligência racional, necessária para dar
conta das necessidades de sobrevivência da nossa vida mas há que completá-la
com a inteligência emocional e sensível para sermos mais completos e assumirmos
com paixão a defesa da Terra e da vida.
Valem-nos as palavras do Papa Francisco em sua
encíclica de ecologia integral “Sobre o cuidado da Casa Comum”: “Devemos
alimentar uma paixão pelo cuidado do mundo. Não é possível empenhar-se em
coisas grandes apenas com doutrinas, sem uma mística que nos anima, sem uma
moção interior que impele, motiva, encoraja e dá sentido à ação pessoal e
comunitária”(n.216) E acrescenta:”Implica ainda a consciência amorosa de
não estarmos separados das outras criaturas, mas de formarmos com os outros
seres do universo uma esplêndida comunhão universal”(n.220).
Portanto, é o coração que nos leva a ouvir
simultaneamente o grito da Terra e o grito do pobre e nos leva a socorrê-los,
mudando a forma como nos relacionamos com eles, como produzimos e como
consumimos, com esse ideal formulado pelo primeiro ministro chinês XI Jinping:
“criar uma sociedade moderadamente abastecida” ou como nós dizemos: uma
sociedade com um consumo sóbrio e solidário.
Segue ainda o texto da Carta da Terra: “Requer-se
um novo sentido de interdependência global”. A relação de todos com todos e
por isso a interdependência global representa uma constante cosmológica. Tudo
no universo é relação. Nada e ninguém estão fora da realação. O cosmos é
constituído pelo conjunto das redes de relação mais do que do número inumerável
dos corpos celestes. É também um axioma da física quântica segundo o qual todos
os seres são inter-retro-relacionados. Nós mesmos, seres humanos, somos um
rizoma (bulbo com raízes) de relações voltado para todas as relações. Isso
implica entender que todos os problemas ecológicos, econômicos, políticos e
espirituais têm a ver uns com os outros. Tocando num tocamos na rede toda das
relações. A ação que fizermos afeta toda a rede de ações.
Esta compreensão holística supera a atomização dos
saberes e fragmentação das atividades humanas. Só salvaremos a vida se nos
alinharmos à esta lógica universal que é lógica da natureza com sua esplêndida
diversidade. Todos os seres se entre-ajudam, até os mais débeis, pois também
estes possuem um valor em si mesmo e comunicam alguma mensagem do universo.
Segue o texto da Carta Terra:” requer-se uma responsabilidade
universal”. Responsabilidade significa dar-se conta das consequências de
nossas ações, se são benéficas ou maléficas para o conjunto dos seres. Hans
Jonas escreveu um livro clássico sobre o “Princípio Responsabilidade”.
Ele inclui o princípio de prevenção e o de precaução. Na prevenção podemos
calcular os efeitos quando interviermos na natureza. O princípio de
precaução não nos permite medir as consequência e por isso não devemos arriscar
com certas ações e intervenções porque podem produzir efeitos altamente danosos
para a vida.
A responsabilidade deve ser universal, de todos.
Não é assim que um grupo ou uma empresa assumam sua responsabilidade
socioecológica, protegem o ar e garante a pureza das águas, enquanto outras não
cuidam destes efeitos danosos e os consideram simplesmente como exterioridades
(coisas que não entram na contabilidade dos negócios). Ou todos assumem uma
atitude responsável, por isso universal, e assim praticamos comportamentos
ecologicamente benéficos ou então seguiremos acumulando problemas para a vida e
o futuro de nossa existência.
Mais ainda diz a Carta da Terra: “desenvolver e
aplicar com invenção a visão (de um modo sustentável de vida). Nada de
grande neste mundo sem fez sem a invenção do imaginário que projeta novos
mundos e novos modos de ser. É aqui o lugar das utopias viáveis. Toda utopia
alarga o horizonte e nos torna inventivos. O próprio ser humano emerge como um
ser utópico, pois é um projeto infinito e um ser habitado pelo desejo, cuja
natureza, segundo os antigos e Freud, é ilimitado. A utopia nos leva de
horizonte a horizonte, fazendo-nos sempre caminhar na feliz expressão de
Eduardo Galeano.
Para superar o modo costumeiro de habitar a Casa
Comum, sem sequer tê-la descoberto (isso ocorreu somente a partir das viagens
espaciais), explorando seus ecossistemas, descuidando das florestas, das águas,
do ar puro e da fertilidade dos solos e de relações justas e fraternas nas
sociedades, precisamos da invenção que nasce de uma utopia ou de um sonho. Toda
utopia é, por natureza, irrealizável. Mas existem as utopias viáveis, aquelas
que podemos juntos trazer para a realidade. Assim que precisamos sonhar com o
planeta como “A Terra da Boa Esperança”(Ignace Sachs) antes de pôr as mãos no
seu fazimento. Essa utopia é realizável pela humanidade, quando despertar de
seu sono de um mundo de mão a mão e abri-se ao grande sonho possível de outro
mundo possível e necessário.
Mais ainda afirma a Carta da Terra:”uma visão de
um modo sustentável de vida. Estamos acostumados à expressão que está em
todos os documentos oficiais e na boca da ecologia dominante “desenvolvimento
sustentável”. Todas as análises sérias têm mostrado que o nosso modo de
produzir, distribuir e consumir é insustentável. Vale dizer não consegue manter
o equilíbrio entre o que tiramos da natureza e que lhe deixamos para sempre
poder se reproduzir e co-evoluir. Nossa voracidade tornou o planeta
insustentável, pois se os países ricos quisessem universalizar seu bem-estar à
toda a humanidade, precisaríamos, pelo menos, de três Terras iguais a esta, o
que é absolutamente impossível.
O atual desenvolvimento que significa crescimento
econômico medido pelo Produto Interno Bruto (PIB) revela espantosas
desigualdades a ponto de a grande ONG Oxfam no seu informe de 2019 nos revelar
que 1% da humanidade possui a metade da riqueza do mundo e que 20% controla 95%
desta riqueza (do 1%) enquanto os restantes 80% têm que contentar-se com apenas
5% da riqueza. Tais dados revelam a completa insustentabilidade do mundo em que
vivemos.
A Carta da Terra não se rege pela economia mas pela
vida. Dai o grande desafio consiste em criar um modo sustentavel de vida
e todos os âmbitos, pessoal, familiar, social, nacional e internacional. Para
isso se impõem a necessidade de “um novo começo” e não apenas de melhorias,
mantendo o sistema desigual.
Por fim, este modo sustentável de vida deve
realizar-se no nível local, nacional, regional e global. Evidentemente
se trata de um projeto global que deverá se realizado com prazos, na medida em
que cresce a consciência ecológica e nos dermos conta de nossa responsabilidade
pelo futuro comum Terra e humanidade. Hoje o ponto mais avançado na busca da
sustentabilidade se realiza no nível local e regional. Fala-se então do bioregionalismo
como a forma realmente viável de concretizar a sustentabilidade. Tomando-se a
região como referência, não segundo as divisões arbitrárias ainda persistentes,
mas aquelas que a própria natureza fez com os rios, as montanhas, as florestas
e outras que configuram um ecossistema regional. Dentro deste quadro pode
realizar-se uma autêntica sustentabilidade, incluindo os bens naturais, a
cultura e tradições locais, as personalidades que marcaram aquela história, com
o favorecimento de pequenas empresas e uma agricultura orgânica, com a
participação maior possível, num espírito democrático. Desta forma se
propiciará um “bem viver e conviver”(o ideal ecológico andino) suficiente,
decente e sustentável com a diminuição das desigualdades.
Esta visão formulada pela Carta da Terra é
grandiosa e factível. O que mais precisamos é de boa-vontade, a única
virtude que para Kant não possui nenhum defeito e limitação, pois se tiver,
deixará de ser boa. Essa boa-vontade impulsionaria as comunidades e, no limite,
a inteira humanidade a realmente realizar “um novo começo”.
Esse modo sustentável de vida se traduz por
práticas virtuosas que tornam real o modo sustentável de viver. São muitas as
virtudes para um outro mundo possível. Serei breve, pois sobre isso publiquei
três volumes com esse mesmo título “Virtudes para um outro mundo possível”(Vozes
2005-2006). Enumero 10 sem detalhar-lhes o conteúdo, o que nos levaria longe.
A primeira é o cuidado essencial. Chamo de
essencial pois segundo uma tradição filosófica que nos vem dos romanos,
atravessou os séculos e ganhou sua forma maior entre vários autores
especialmente no núcleo central de Ser e Tempo de Heidegger. Ai se vê o cuidado
como da essência do ser humano. Ele é a pré-condição para o conjunto de fatores
que permitem a emergência da vida. Sem o cuidado a vida jamais irromperia e
subsistiria. Alguns cosmólogos como Brian Swimme e Stephan Hawking viram no
cuidado como a dinâmica mesma do universo. Se as quatro energias fundamentais
não tivessem o sutil cuidado de atuarem sinergeticamente, não teríamos o mundo
que temos. Todo ser vivo depende do cuidado. Se nós não tivéssemos o infinito
cuidado de nossas mães, não saberíamos como deixar o berço e buscar o nosso
alimento, dado que somos seres biologicamente carentes, sem nenhum órgão
especializado. Precisamos do cuidado de outros. Tudo o que amamos também
cuidamos, tudo o que cuidamos também amamos. Face à natureza significa uma
relação amigável, não agressiva e respeitosa de seus limites.
A segunda virtude é o sentimento de pertença
à natureza, à Terra e ao universo. Somos partes de um grande Todo que nos
desborda por todos os lados; somos a parte consciente e inteligente da
natureza, somos aquela porção da Terra que sente, pensa, ama e venera. Esse
sentimento de pertença nos enche de respeito, de encantamento e de acolhimento.
A terceira virtude é a solidariedade e a
cooperação. Somos seres sociais que não apenas vivem mas convivem com
outros. Sabemos pela bioantropologia que foi a solidariedade e a cooperação de
nossos ancestrais antropoides que ao buscar o alimento e traze-lo para o
consumo coletivo, lhes permitiu deixar para trás a animalidade e inaugurar o
mundo humano. Hoje, no caso do caronavírus, o que nos está salvando é a
solidariedade e a cooperação de todos com todos. Esta solidariedade deve
começar pelos últimos e invisíveis sem o que, ela deixa de ser inclusiva de
todos.
A quarta virtude é a responsabilidade coletiva.
Já temos exposto o seu sentido acima. É o momento da consciência em que cada um
e uma inteira sociedade se dão conta dos efeitos bons ou ruins de suas decisões
e atos. Seria absolutamente irresponsável o desmatamento desenfreado da
Amazônia pois desequilibraria o regime de chuvas de vastas regiões e eliminaria
a biodiversidade indispensável para o futuro da vida. Nem precisamos nos
referir a uma guerra nuclear cuja letalidade eliminaria toda a vida
especialmente a humana .
A quinta virtude é a hospitalidade como dever e
como direito. O primeiro a apresentar a hospitalidade como dever e como
direito foi Immanuel Kant no seu famoso texto “Em vista da paz perpétua”(1795).
Entendia que a Terra é de todos, pois, Deus não deu título de propriedade de
algum pedaço dela a ninguém. Ela pertence a todos os habitantes que podem andar
por todas as partes. Ao encontrarem alguém o dever de todos é oferecer a
hospitalidade, como sinal de pertença comum à Terra e todos têm o direito de
serem acolhidos, sem qualquer distinção. Para ele, junto com o respeito dos
direitos humanos constituiriam as pilastras para uma república mundial (Weltrepublik).
Esse tema é atualíssimo dado o número de refugiados e as muitas discriminações
por vários títulos. Talvez seja uma das virtudes mais urgentes no processo de
planetização embora uma das menos vividas.
A sexta virtude é a convivência de todos com
todos. A convivência é um dado primário, pois todos viemos da convivência
que nossos pais tiveram. Nós somos seres de relação que é o mesmo que dizer,
não vivemos simplesmente mas de forma diuturna convivemos. Participamos da vida
dos outros, de suas alegrias e angústias. Especialmente custa a muitos a
conviver com os diferentes, seja de etnia, de religião, de partido político. O
importante é estar aberto à troca. O diferente sempre nos traz algo novo que
nos enriquece ou desafia. O que jamais podemos fazer é transformar a diferença
numa desigualdade. Podemos ser humanos de muitas formas diferentes, na forma
brasileira, italiana, japonesa, yanomami. Mas cada forma é humana e possui a
sua dignidade. Hoje pelos meios de comunicação cibernéticos
abrimos janelas para todos os povos e culturas. Saber conviver com essa
diferença abre novos horizontes e entramos numa espécie de comunhão com todos.
Esta convivência implica também a natureza, conviver com com as paisagens, com
as florestas, com os pássaros e animais. Não apenas olhar para o céu estrelado,
mas entrar em comunhão com as estrelas, pois delas viemos e formamos um grande
Todo. Por fim, formamos uma comunidade de destino comum junto com a totalidade
da criação.
A sétima virtude é o respeito incondicional.
Cada ser, por menos que seja, possui valor em si mesmo, independentemente do
uso humano. Quem desenvolveu o tema em profundidade foi Albert Schweitzer,
grande médico suiço que foi ao Gabão na África para atender a hanseniamos. Para
ele o respeito é a base mais importante da ética, pois comporta acolhida,
solidariedade e amor. Devemos começar com o respeito a nós mesmos, ao manter
atitudes e modos dignos que suscitam o respeito dos outros. Importa respeitar
todos os seres da criação, pois valem por eles mesmos; existem ou vivem e
merecem existir ou viver. Mais que tudo, vale o respeito diante de cada pessoa
humana, pois é portadora de dignidade, de sacralidade e de direitos
inalienáveis, pouco importa sua procedência. Respeito supremo devemos ao
Sagrado e a Deus, o mistério íntimo de todas as coisas. Só diante dele podemos
cair de joelhos e reverenciar, pois só a Ele cabe esta atitude.
A oitava virtude é justiça social e igualdade
fundamental de todos. A justiça é mais que dar a cada um o que é seu ;
entre os humanos, a justiça é o amor o respeito mínimo que devemos devotar aos
outros. A justiça social é garantir os mínimos a todas as pessoas, não criar
privilégios e respeitar seus direitos em pé de igualdade, pois todos somos
humanos e merecemos ser tratados humanamente. Desigualdade social significa
injustiça social e, teologicamente, uma ofensa ao Criador e a seus filhos e
filhas. Talvez ela seja a maior perversidade hoje existente que deixa milhões
na miséria e condenados a morrer antes do tempo. Neste tempo de coronavírus se
mostrou a violência da desigualdade social e da injustiça. Enquanto uns podem
viver sua quarentena em casas ou apartamentos adequados, a grande maioria pobre
é exposta à contaminação e, não raro, à morte.
A nova virtude é a busca incansável da paz.
A paz é um dos bens mais ansiados, pois vivemos, por causa do tipo de sociedade
que construimos, em permanente concorrência, apelos ao consumo e à exaltação da
produtividade. A paz não existe em si, pois, ela é consequência de
valores que devem ser vividos anteriormente e que têm como resultado a paz. Uma
das mais pertinentes compreensões da paz nos vem da Carta da Terra, na qual se
diz: “a paz é a plenitude que resulta de relações corretas consigo mesmo,
com outras pessoas, com outras culturas, com outras vidas, com a Terra e com o
Todo maior do qual somos parte”(n.16 f). Como se depreende, a paz é
consequência de relações adequadas e é o fruto da justiça social. Sem estas
relações e a justiça só conheceremos tréguas mas nunca uma paz permanente.
A décima virtude é o cultivo do sentido
espiritual da vida. O ser humano possui uma exterioridade corporal
com a qual nos relacionamos com o mundo e as pessoas; temos uma interioridade
psíquica onde se aninham,na estrutura de desejo, nossas paixões, os grandes
sonhos e nossos anjos e demônios que devemos controlar estes últimos e cultivar
amorosamente os primeiros. Só assim gozaremos de um equilíbrio necessário para
a vida.
Mas possuímos também a profundidade, aquela
dimensão onde habitam as grandes interrogações da vida: quem somos, de onde
viemos, para onde vamos, o que podemos esperar depois desta vida terrena? Qual
é a Energia Suprema que sustenta o firmamento e conserva nossa Casa Comum ao
redor do Sol e a mantém sempre viva para nos permitir viver? É a dimensão
espiritual do ser humano feita de valores intangíveis como o amor
incondicional, a confiança na vida, a coragem de enfrentar as agruras
inevitáveis. Damo-nos conta de que o mundo está repleto de sentidos, que as
coisas são mais que coisas, pois são mensagens e possuem um outro lado
invisível. Intuímos que há uma Presença misteriosa que perpassa todas as
coisas. As tradições religiosas e espirituais chamaram a esta Presença de mil nomes,
sem contudo poder decifrá-la totalmente. É o mistério do mundo que remete ao
Mistério Abissal que faz ser tudo aquilo que é. Cultivar este espaço nos
humaniza, nos torna mais humildes e nos enraíza numa realidade transcendente,
adequada ao nosso desejo infinito.
A conclusão que tiramos destas longas reflexões a
propósito do coronavírus 19 é: devemos ser simplesmente humanos, vulneráveis,
humildes, ligados uns aos outros, parte da natureza e a porção consciente e
espiritual da Terra com a missão de cuidar da herança sagrada que recebemos, a
Mãe Terra, para nós e para as futuras gerações.
Inspiradoras são as últimas frases da Carta da
Terra:”Que o nosso tempo seja lembrado pelo despertar de uma nova reverência
face à vida, pelo compromisso firme de alcançar a sustentabilidade mediante a
intensificação da luta pela justiça e pela paz, na alegre celebração da vida”
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*Leonardo Boff é eco-teólogo e escreveu Virtudes
para um outro mundo possível (3 vol.) Vozes
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