O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso Foto: Leo Martins/Estadão
Ex-presidente também disse que Sérgio Moro não deveria ter deixado a magistratura e assumido a pasta da Justiça no governo Bolsonaro
Entrevista com
Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente
EFE, O Estado de S.Paulo
12 de maio de 2020
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso mostra preocupação com a possibilidade de que as Forças Armadas
possam se apegar ao poder em um governo com cada vez mais militares e
enxerga no país um cenário político com o Legislativo e Judiciário
tentando preencher vazios deixados por um Executivo que, de acordo com
ele, está “cambaleante” e “sem rumo definido”.
“Há muitos (militares no poder) e cada vez mais. E isso é uma fragilidade política do governo”, afirmou FHC, de 88 anos, em entrevista à Agência Efe
por videoconferência em sua residência, em São Paulo. “Não podemos
permitir agressões contra a Suprema Corte, contra o Congresso, que vão
contra a democracia”, acrescentou.
Na
entrevista à Efe, o ex-presidente também opinou que Sergio Moro não
deveria ter deixado a magistratura e assumido a pasta da Justiça no
governo de Jair Bolsonaro. “Creio que ele se equivocou
ao aceitar ser ministro. Não por ser ministro do Bolsonaro, mas porque
trocou o âmbito da Justiça, no qual atuou a vida toda, pelo Executivo, e
ficou em uma situação delicada, porque não era um homem predisposto a
estas funções (políticas)”, comentou. Leia abaixo a entrevista.
O senhor chegou a pedir nas redes sociais a renúncia de Bolsonaro. Mantém essa posição?
Na
política interna, sou duro com ele. Não porque não gosto dele ou porque
não é do meu estilo, mas porque ele exagera. Não podemos permitir
agressões contra a Suprema Corte, contra o Congresso, que vão contra a
democracia. E ter casos em que o presidente participe dessas agressões é
grave. Os que têm força política têm que se expressar em defesa da
democracia. Neste momento, quando se nota que o Executivo está
cambaleante e não tem um rumo definido, o que acontece? Os demais órgãos
constitucionais, a Suprema Corte, os Parlamentos, começam a ocupar o
vazio de poder, e isso é perigoso.
Bolsonaro está mal assesorado, recebe influência negativa dos filhos? Qual é o problema com o governo?
Não
estou lá, nem o conheço. Bolsonaro era deputado, eu era senador,
ministro, presidente. Nunca o vi. Ele queria me matar uma vez, (disse que) queria atirar em mim (em referência a uma declaração de Bolsonaro no final dos anos 90),
porque me acusou de ser neoliberal. Eu não o conheço, nem conheço seus
familiares. Para os presidentes, há sempre o risco de que a família
comece a opinar demais. O povo escolheu o presidente, não sua família.
Que a família fique em silêncio. No caso dele (Bolsonaro), é mais complicado, porque os três filhos mais velhos têm mandato político próprio (Flávio é senador, Carlos é vereador no Rio de Janeiro, e Eduardo, deputado federal).
É importante observar o que está acontecendo nos Estados Unidos. Trump incentiva a posição “America First” (“EUA primeiro”),
e isso leva a uma atitude isolacionista. Se o Brasil tem uma grande
vantagem neste mundo confuso, é por estar longe da China e dos EUA.
Podemos exportar para ambos. A China é o cliente número 1, e os EUA são o
número 2, e não há por que o Brasil se alinhar a um dos dois polos, se é
que são polos.
Sobre a ideologia que é propagada por (o ex-estrategista de campanha de Trump, Steve) Bannon nos EUA, aqui (no Brasil) há um senhor de quem nunca ouvi falar (o filósofo Olavo de Carvalho)
e que está sendo muito propagado, e não é importante culturalmente
falando, mas politicamente sim, porque inspira ações da família
presidencial. Então há um movimento nessa direção, o que eu acho
perigoso.
Alguém mencionou que o Brasil se pareceria com a Itália
entre guerras de Mussolini. Mas Mussolini era uma pessoa muito culta se
comparada ao atual aqui (Bolsonaro). Não tem nada a ver com
Mussolini, o que acontece aqui é que não há uma visão ideológica
organizada, aqui há um impulso instintivo que considera algumas coisas
como mundo ‘globalista’, que há um ‘marxismo globalista’. Não tenho
idéia do que seja, e as pessoas entendem como verdade. A situação é
verdadeiramente preocupante, mas ele tem legitimidade, porque foi eleito
pelo voto popular.
Qual leitura o senhor faz da ala militar do governo?
Os
militares aprenderam com o que aconteceu no passado. Eles sabem que
devem respeitar a Constituição e, pelo que sei, essa é a posição oficial
das Forças Armadas. Agora, todo governo que começa a ser fraco, a não
ter força, nomeia militares. Lembro-me de (Salvador) Allende,
no Chile, quando começou a nomear militares. Aqui também, quando os
governos não são fortes, eles dependem das Forças Armadas, e acho que
isso é um risco para as Forças Armadas, porque elas passam a ter gosto
pelo poder.
Entretanto, isso ainda não aconteceu aqui, mas pode, porque há muitos (militares no poder)
e cada vez mais. E isso é uma fragilidade política do governo, não uma
força. Sob a condição de que a força regular permaneça em uma posição
pró-Constituição, nada acontece. Mas se as Forças Armadas,
independentemente do que possa acontecer, se colocarem na posição de
apoiar incondicionalmente o presidente, isso é grave, e a unidade
democrática morre. Não acho que estejamos nesse processo e não acho que
essa seja a opinião das pessoas ativas nas Forças Armadas.
Meu
pai era general, e meu avô, marechal. Tenho um certo conhecimento quase
empático dos militares. No passado, eles eram mais políticos, depois se
profissionalizaram. Há uma questão que qualquer militar, depois de um
certo ponto, não aceita: a desordem. Então eles tentam trazer ordem, e
isso é perigoso. Pode acontecer? A pandemia está servindo como uma
vacina para demonstrações de rua. Acredito que políticos, profissionais e
jornalistas têm a responsabilidade de alertar o país para que não
cheguemos a um ponto de desordem, porque depois chegam os militares, e
eu não quero isso. É ruim para o país e para eles, que serão
responsabilizados pelo que acontecer.
Como o senhor analisa as saídas de Sergio Moro (ex-ministro da Justiça) e Luiz Henrique Mandetta (ex-ministro da Saúde) do governo?
Vi Sergio
Moro duas vezes na minha vida. Creio que ele se equivocou ao aceitar ser
ministro. Não por ser ministro do Bolsonaro, mas porque trocou o âmbito
da Justiça, no qual atuou a vida toda, pelo Executivo, e ficou em uma
situação delicada, porque não era um homem predisposto a estas funções
(políticas).
E qual foi a consequência imediata de uma saída como a do ministro da Saúde (Mandetta)?
Na minha opinião, uma saída doida, irracional. O prestígio do
presidente está diminuindo. Muitos o apóiam, mas não são a maioria. (A saída de) Mandetta não teve tanto efeito, mas Moro era um pilar.
E o outro pilar, que é o ministro da Economia (Paulo Guedes),
muito bem visto pelos empresários, tem um projeto que não pode mais ser
aplicado. Ele tem uma visão que certamente estava certa no passado (ajuste dos gastos públicos), necessária, mas com a pandemia a visão é de gastar mais e aumentar a dívida pública.
Como o senhor avalia o combate à Covid-19 no Brasil, onde o presidente não segue à risca as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS)?
O
pior é que atingiu as áreas mais populares. Para mim, nada muda, mas
quando uma pessoa vive na periferia de São Paulo, na miséria, em uma
favela, com muitas pessoas em casa, sem conforto... as pessoas têm que
ir às ruas (...) Mesmo que haja recomendações da OMS para que fiquem em
casa, para as pessoas mais pobres é um castigo, porque é impossível.
Além disso, há uma falta de liderança. Às vezes, o presidente (Bolsonaro)
está com outras pessoas na rua sem usar máscara, como se nada tivesse
acontecido (...) É perceptível que a falta de coordenação é prejudicial,
ainda que o Brasil tenha a vantagem de um sistema de saúde gratuito e
universal.
Alguns políticos, inclusive juristas, consideram que Bolsonaro pode ser procesado na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) por não seguir as recomendações da OMS. O senhor considera plausível?
Não vejo que tenha muito o que fazer (a CIDH),
outras oportunidades foram perdidas quando houve violência, tortura... O
atual presidente tem essa visão de amigos e inimigos, o que não ajuda
para o que é necessário agora, que há mais coesão para combater um
inimigo comum (coronavírus). É um sério fracasso político, mas
não acho que será resolvido com impeachment, por enquanto. Dependerá de
como o presidente agir. Estou muito preocupado com o que virá depois da
pandemia (...) Haverá muita gente desempregada.
Por outro lado,
meu sentimento é de que não há pressão militar para a queda do
presidente. Os militares, felizmente, há muito tempo respeitam a
Constituição. Não podemos nos distanciar do quadro constitucional, pois
isso seria muito perigoso para as instituições e para a liberdade. Não
há inimigos da liberdade, a imprensa é livre, a Justiça funciona e não
existe tal sentimento como vivi em outros tempos (alusão à ditadura).
----------
Fonte: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,fhc-teme-que-forcas-armadas-possam-tomar-gosto-pelo-poder,70003300505
Nenhum comentário:
Postar um comentário