LEANDRO KARNAL*
No fim deste ano, se viva estivesse,
Clarice Lispector completaria cem anos. Cem anos e estamos sem Clarice.
Parei para pensar sobre como ela me atingiu.
No Ensino Médio, tive acesso ao texto A Hora da
Estrela. O último romance da escritora foi o meu primeiro contato com
ela. Acompanhei Macabéa com o brilho de uma boa descoberta. Porém,
confesso, talvez Clarice tenha razão quando pede, em um livro, que os
leitores sejam almas já formadas. Gostei da jovem alagoana, compadeci-me
de suas privações com a tia fanática, com o namoro ambíguo e a
esperança inútil na cartomante. Fui seduzido pela narrativa e, no
entanto, volto a dizer, Clarice talvez não seja a autora ideal para
alguém de 15 anos.
Anos mais tarde, o estilo introspectivo da
ucraniana-brasileira chegou a mim pelo primeiro romance dela: Perto do
Coração Selvagem. Clarice mais jovem e eu mais velho foi uma paixão que
se adensou. Foi amor de verdade. A memória era de um livro que me fazia
perder o sono e eu não parava de ler enquanto comia, para crítica acerba
da minha mãe. Joana marcou minha vida como personagem e iluminou cantos
da minha alma. Virei um convertido lispectoriano chato que queria
emprestar a obra para todo mundo.
Eu não imaginava que o salto seguinte seria o mais
espetacular. Já professor, ganhei A Paixão Segundo G.H. Macabéa
empalideceu, Joana diminuiu: aquele era, agora, o texto da minha vida
toda. Nunca imaginei uma inteligência literária daquele porte. Eu tinha
amado muitos autores brasileiros, todavia Clarice ocupava outra
prateleira. Não era a beleza da semântica de José de Alencar, a ironia
brilhante de Machado de Assis, a brasilidade iconoclasta dos Andrades
(Oswald e Mário) ou a identidade regional que eu venerava em Erico
Verissimo. Eu tinha tido uma paixão aguda pelos volumes de Eça de
Queiroz na biblioteca do meu pai. Todos eram espetaculares e eu os
carrego comigo até hoje. O volume d?A Paixão Segundo G.H. eu guardo
rabiscado há 30 anos.
O mais dramático é que eu posso dizer com clareza total
o motivo de eu achar Vidas Secas de Graciliano Ramos um marco. Também
sei o motivo de cultivar sistematicamente a leitura da grande Lygia
Fagundes Telles. Hamlet, de W. Shakespeare, foi o livro que li mais
vezes na vida. Lembro-me até hoje da primeira vez que conheci o Quixote
de Cervantes. Foi uma revolução. Custou-me um pouco mais banhar-me das
margens dos rios de Guimarães Rosa, porém, uma vez que mergulhei, saí
transformado.
Conservador e católico, fui positivamente chocado por
Nelson Rodrigues na juventude. Preciso confessar: nada lido antes se
comparou ao furacão provocado pelas reflexões da enigmática G.H. O
motivo? Até hoje não tenho certeza, provavelmente apenas eu possa
repetir as ideias: "Estou procurando, estou procurando. Estou tentando
entender". Ou: "Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa
desorganização profunda". Era o que sempre senti e que só agora, pela
pena da autora, podia expressar. Era o que sempre temera encarar: como
redefinir a vida sem respostas de sistemas externos e acabados,
religiosos e filosóficos. Clarice foi fundo no abismo do desespero
humano e emergiu com mais densidade do que qualquer outra pessoa no
século 20 na língua portuguesa.
Li a biografia dela bem depois. Benjamin Moser fez um
trabalho ótimo. Também devorei os contos que ele organizou. Nos pequenos
relatos vi, de novo, o brilho genial da mestra da língua. G.H. foi mais
adiante: além de brilhante como escrita, é impactante como percepção.
Geralmente acho tediosos os fluxos de consciência porque eles despertam
uma subjetividade tamanha que só vale para o autor. Clarice parecia uma
mulher atormentada. Porém, de forma fascinante, tornou a dor uma
alavanca criativa.
Em 10 de dezembro de 2020, ela faria cem anos. Sua vida
acompanhou as tragédias do nosso tempo. Antissemitismo, emigração, a
memória das guerras, as oscilações políticas no Brasil entre ditaduras e
espasmos democráticos. Vi Beth Goulart encarnando a autora no Rio de
Janeiro. A semelhança física se tornava notável e o talento da atriz
iluminou o gênio da escritora.
Existem bons pintores e existe Diego Velázquez. Existem
bons autores e existe Kafka. Existem ótimos autores e existe Clarice
Lispector. De onde saem esses meteoros fulgurantes e escassos? Creio que
nunca saberemos.
Volto a dizer. Clarice é autora madura para mentes
maduras. Ela não atende problemas comezinhos ou seres ainda muito presos
ao aqui e agora. Talvez, o maior indicativo para saber se é hora de
acessar Clarice seja um pouco da experiência de G.H. no apartamento: o
enfrentamento denso e produtivo da solidão. Se você precisa estar sempre
com muitas pessoas, se não consegue jantar sozinho ou ir ao cinema só
com sua pessoa, creia-me, ainda não é hora de ler Clarice Lispector.
Clarice implica vida interior mais elaborada, não exatamente erudição,
porém capacidade de enfrentar bem uma noite de sábado tendo a si por
espelho e companhia. Não consegue? Não se preocupe, ela esperou um
século, pode esperar uns dez anos a mais. Ela aguarda. É preciso ter
esperança e é necessária paciência pela hora da sua estrela ficar
autônoma para ler G.H.
------------
* Escritor. Historiador brasileiro, professor da Universidade Estadual de Campinas, especializado em história da América.
Fonte: https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=60ec86078066a15c2cca12b24adb908b 23/05/2020
Imagem da Internet
Nenhum comentário:
Postar um comentário