Reunião ministerial de 22 de abril. Foto: Marcos Corrêa/PR
Mais uma vez, depois de tantas, as elites brasileiras
preferiram correr o risco de cair na ditadura (quando não a desejaram
desde o início) sempre que as classes populares manifestaram a sua
aspiração a ser incluídas na nação, a nação que as elites sempre
conceberam como sua propriedade privada. A leitura do transcrito da
reunião do conselho de ministros do Brasil no dia 22 de abril é uma
experiência dolorosa, assustadora e revoltante. O fato de ter sido dado
conhecimento público desse vídeo e transcrito é um sinal eloquente de
que a democracia ainda sobrevive. Ocorreu no seguimento da denúncia do
ex-Ministro Sérgio Moro de que o Presidente tentara interferir com as
investigações em curso na Polícia Federal do Rio de Janeiro contra um
dos seus filhos por suspeita de graves condutas criminosas. Ao ordenar a
divulgação do vídeo, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de
Mello, inscreveu o seu nome no livro de ouro da breve e tormentosa
história da democracia brasileira. Esperemos que o sinal de esperança
que ele nos deu seja potenciador do despertar das forças democráticas de
esquerda e de direita, o despertar de um sono profundo e inquietante,
feito de ignorância histórica e de vaidade míope, um sono que lhes
permite sonhar com cálculos eleitorais sem se dar conta da frivolidade
de tais intentos quando a própria democracia está por um fio.
Os fascistas nem sequer escondem os seus intentos. O Presidente faz
um apelo direto e inequívoco à luta armada. Mais do que um apelo,
informa que está disposto a dirigir o armamento de civis à margem das
forças armadas. E faz isso ladeado por generais! Está a confessar um
crime de responsabilidade e um crime contra a segurança nacional. E nada
a acontece. Ao lado do vice-presidente, está sentado impávida e
parvamente o então Ministro da Justiça Sérgio Moro, o grande responsável
pela destruição da institucionalidade democrática, para o que sempre
contou com a cumplicidade das elites e dos seus media. O anúncio do
Presidente não só é recebido com sorrisos complacentes de quem o ouve,
como vários ministros se esmeram em soltar por conta própria as cloacas
do ódio e do preconceito. Para além de outras aleivosias avulsas.
O que se lê é de tal modo torpe que é melhor ler para crer:
Presidente: “É putaria o tempo todo para me atingir, mexendo com a
minha família. Já tentei trocar gente da segurança nossa, oficialmente, e
não consegui. Isso acabou. Eu não vou esperar f. minha família toda de
sacanagem, ou amigos meus, porque não posso trocar alguém da segurança
na ponta da linha — que pertence à estrutura nossa. Vai trocar! Se não
puder trocar, troca o chefe dele; não pode o chefe dele? Troca o
ministro. E ponto final… Eu quero, ministro da Justiça e ministro da
Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da
puta aparecer pra impor uma ditadura aqui! Que é fácil impor uma
ditadura! Facílimo! Um bosta de um prefeito faz um bosta de um decreto,
algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra
rua. E se eu fosse ditador, né? Eu queria desarmar a população, como
todos fizeram no passado quando queriam, antes de impor a sua respectiva
ditadura. Aí, que é a demonstração nossa, eu peço ao Fernando e ao Moro
que, por favor, assine essa portaria hoje que eu quero dar um puta de
um recado pra esses bosta! Por que que eu tô armando o povo? Porque eu
não quero uma ditadura! E não dá pra segurar mais! Não é? Não dá pra
segurar mais”.
Ministro da Educação (extrema-direita) : “Eu, por mim, botava esses
vagabundos todos na cadeia. Começando no STF. E é isso que me choca… A
gente tá conversando com quem a gente tinha que lutar. A gente não tá
sendo duro o bastante contra os privilégios, com o tamanho do Estado e é
o … eu realmente tô aqui aberto, como cês sabem disso, levo tiro …
odeia … odeio o prutido (sic) comunista. Ele tá querendo transformar a
gente numa colônia. Esse país não é … odeio o termo “povos indígenas”,
odeio esse termo. Odeio. O “povo cigano”. Só tem um povo nesse país.
Quer, quer. Não quer, sai de ré. É povo brasileiro, só tem um povo”.
Ministro do Meio Ambiente (momento maquiavélico): “porque tudo que
agente faz é pau no judiciário, no dia seguinte. Então pra isso precisa
ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de
tranquilidade no aspeto de cobertura de imprensa, porque só fala de
COVID e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando
normas…Agora é hora de unir esforços pra dar de baciada a
simplificação.”
Ministra da Mulher da Família e dos Direitos Humanos (evangelismo
reacionário): “Neste momento de pandemia a gente tá vendo aí a palhaçada
do STF trazer o aborto de novo para a pauta, e lá tava a questão de …
as mulheres que são vítima do zika vírus vão abortar, e agora vem do
coronavírus? Será que vão querer liberar que todos que tiveram
coronavírus poderão abortar no Brasil? Vão liberar geral? (dirigindo-se
ao Ministro da Saúde) O seu ministério, ministro, tá lotado de feminista
que tem uma pauta única que é a liberação de aborto… Porque nós
recebemos a notícia que haveria contaminação criminosa em Roraima e
Amazônia, de propósito, em índios, pra dizimar aldeias e povos inteiro
pra colocar nas costas do presidente”.
Ministro da Economia (feira de vaidades): “Eu conheço profundamente,
no detalhe, não é de ouvir falar. É de ler oito livros sobre cada
reconstrução dessa (Alemanha, Chile). Então, eu li Keynes, é … três
vezes no original antes de eu chegar a Chicago. Então pra mim não tem
música, não tem dogma, não tem blá-blá-blá”.
Nada disto é novo. Sobre o que disse o Presidente, basta referir que,
depois das eleições de 1932, foi assim que se expressou Hitler,
invocando a necessidade da ditadura para se defender da ditadura…da
democracia. A reunião teve lugar no dia em que o Brasil ultrapassava a
casa de 3.000 mortos pelo coronavírus. Este, no entanto, foi um tema
ausente. Ou, ainda mais perversamente, pretendeu-se usar a preocupação
mediática com a pandemia para fazer avançar a perda de direitos, os
casinos, a privatização, o desmatamento da Amazônia e a eliminação das
restrições ambientais. O sistema democrático brasileiro está em tamanho
desequilíbrio que vive um momento de bifurcação, uma qualquer ação ou
omissão política tanto o pode resgatar como afundar de vez.
------------- (*) Sociólogo, diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Publicado originalmente no jornal Público, de Portugal.
Fonte: https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2020/05/requiem-pela-democracia-por-boaventura-de-sousa-santos/
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