Luis Fernando Veríssimo*
Dizem que quando os dois estavam chegando a Nova York, na amurada do navio, Freud virou-se para Jung e perguntou:
- Será que eles sabem que nós estamos trazendo a peste?
Não sei se a história, que li num texto do Stephen
Greenblatt publicado recentemente na revista The NewYorker, é
verdadeira. Nem sei se Freud e Jung estiveram juntos em Nova York algum
dia. Mas o que Freud pretenderia dizer com "a peste" é fácil de
entender. Era tudo que os dois estavam explorando em matéria de
subconsciente, inconsciente coletivo, sexualidade precoce - enfim, a
revolução no pensamento humano que na Europa já se alastrava e era
combatida como uma epidemia. Os agentes alfandegários não teriam
identificado o perigo que os dois recém-chegados representavam para as
mentes da América, deixando-os passar para contagiá-las.
Todo desafio ao pensamento convencional e a crenças
arraigadas é uma espécie de praga solapadora, uma ameaça à normalidade e
à saúde públicas.
Santo Agostinho dizia que a curiosidade era uma doença.
Os que procuravam explicações para o universo e a vida além dos dogmas
da Igreja ou da ciência tradicional eram portadores do vírus da
discórdia, a serem espantados como se espanta qualquer praga, com
barulho e fogo. As ideias de Freud e de Jung divergiram - Jung acabou
derivando para um quase misticismo, literariamente mais rico, mas menos
consequente do que o que pensava Freud -, mas as descobertas dos dois
significaram uma reviravolta no autoconceito da humanidade comparável ao
que significou o heliocentrismo de Copérnico e as sacadas do Galileu. O
homem não só não era o centro do universo conhecido como carregava
dentro de si um universo desconhecido que mal controlava.
Agostinho tinha razão, a curiosidade debilitava o
homem. A partir de Copérnico, a curiosidade só levara o homem a ir
desvendando, pouco a pouco, sua própria precariedade, cada vez mais
longe de Deus.
Marx, outro pestilento, tinha proposto o determinismo
histórico e a luta de classes como eventuais formadores do Novo Homem,
livre da superstição religiosa e de outras tiranias. Suas ideias, e a
reação às suas ideias, convulsionaram o mundo. Esta peste se disseminou
com violência e foi combatida com sangrias e rezas e no fim - como
também é próprio das pestes - amainou. Todas as pestes chegam ao seu
máximo e recuam. A Terra há séculos não é o centro do universo, o que
não impede o prestígio crescente da astrologia. O iluminismo do século
18 parecia ser o preâmbulo de um futuro racional e prevaleceu o
irracionalismo. O Novo Homem de Marx foi visto pela última vez pulando o
muro para Berlim Ocidental. E as teses de Freud e Jung que
revolucionariam as relações humanas nunca foram aplicadas nas relações
que interessam, a do homem com seus instintos e a dos seus instintos com
uma sociedade sadia.Foram, como as outras, uma novidade, ou uma
curiosidade, que expirou.
Mas também é próprio das pestes serem reincidentes.
Cedo ou tarde, virá outra perturbar a paz da ignorância de Santo
Agostinho. E passar.
Crônica publicada no dia 1º de setembro de 2011
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* Jornalista. Escritor.
Fonte: https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=3b67b4ed67df50e7635bd96fca28bb54
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