quinta-feira, 14 de maio de 2020

O BANQUETE DOS SETE SÁBIOS

Luiz Cezare Vieira*
 


Há muitos anos, por volta do ano 100 d.C. o historiador Plutarco relatou um banquete seguido de symposium na casa do tirano Periandro, reunindo nada menos que os sete sábios consagrados da Grécia: Tales, Pítaco, Bias, Sólon, Cleobulo, Míson e Quílon. Sem dúvidas, o maior evento do século VI a.C.

Desde Platão os sete sábios eram o tema da época e permaneceu por séculos. Reuni-los para uma conversa sapiencial era um sonho dourado. Para mediar o colóquio Periandro convidou outro sábio, o velho adivinho Diócles, frequentador assíduo de sua casa. Das palavras trocadas no lustroso encontro e transmitidas por Diócles, Plutarco legou à humanidade o livro Banquete dos Sete Sábios.

Quase dois mil anos depois o destino me outorgou a tarefa de perdurar a tradição de Plutarco. Teria que reunir sete sábios para iluminar a humanidade extraviada em soturnos becos virais. Tarefa difícil identificar sete sábios.

Emprestei de Diógenes a lanterna e conclui a lista. Alain Touraine (94 anos); Noan Chomsky (92 anos); Antonio Negri (87 anos); Pepe Mujica (84 anos); David Harvey (84 anos); Leonardo Boff (81 anos); Boaventura Santos (80 anos). Divergências quanto aos nomes são normais, na lista da Grécia mais de 20 revezaram o núcleo dos 7. Idade importa? Sim, mas sabedoria é construção do espírito, não o mero acúmulo dos anos. Todos acederam ao convite.

Mais por tradição do que precisão escolhi um velho adivinho para presidir o colóquio. Tirésias é seu nome. O local, um antigo castelo de Sintra, Portugal, transformado em pousada. Maio é só flores em Portugal.

Na manhã marcada para o encontro, Boaventura e Boff chegaram antes da hora e no bom português puxaram conversa sobre velhice.

- Entramos na etapa derradeira da vida, Boaventura, perdemos o vigor e nos despedimos lentamente de todas as coisas.

- Pois é, como dizia Camões: “Mais vivera se não fora, para tão grande ideal, tão curta a vida”. E pulando para São Paulo: “Na medida em que definha o homem exterior, rejuvenesce o homem interior”.

- Pleno acordo. O eu profundo. Precisamos de muitos anos de velhice para encontrar a palavra essencial que nos defina. Quem sou eu, qual é o meu lugar no desígnio do mistério?

- Verdade, Boff, a velhice é a última chance que a vida nos oferece para acabar de crescer. Eu acho que vivemos para rasgar novos horizontes e criar sentido de vida. Só é velho quem acha que o mundo decidiu tudo por nós. A velhice não pode ser mera repetição.

- Sim, devemos estar sempre em gênese. Nunca estamos prontos...

- Falemos também do envelhecimento social da humanidade. A partir da década de 80 com o “there is no alternative”, as portas do futuro foram cerradas...

Entram na sala Chomsky, Mojica, Touraine, Harvey e Negri.
Cumprimentos, saudações, sinceros elogios mútuos. A cordialidade e a fraternidade, como o ar, encheram o ambiente. Sentaram na ampla mesa decorada com candelabros e tomaram o vinho branco de aperitivo. Era perto do meio dia.

Tirésias, o vate cego ao abrir o symposium propôs a idade como critério da sequência das falas. Ninguém concordou e Mojica, florista e político, voz lenta e tranquila, falou.

- A morte vestida em forma de vírus escolhe os mais velhos para levar primeiro à sua terra de indolências e sonhos ressequidos. Desmazelos na gestão sanitária e olhos vendados à ciência gera a “devastação dos velhos”, nas emocionantes palavras do brasileiro Lima Duarte. Proponho uma homenagem aos que se foram e repúdio aos governantes que “lavam as mãos, mas o fazem numa bacia de sangue”.

Aplausos! Chomsky reforçou Mujica e com a voz gasta de centenário embate continuou.

- Se deixarmos nosso destino na mão de bufões como Trump e Bolsonaro será o fim. O Coronavírus é muito sério, mas há algo mais terrível nos levando direto para o abismo: guerra nuclear e aquecimento global. A crise civilizacional está instalada. Uma palavra sobre o isolamento. Acho que as redes sociais atomizaram e isolaram as pessoas de modo extraordinário. Nas universidades existem placas alertando “olhe para frente”, porque os jovens estão grudados em si mesmos. A crise colocou as pessoas em situação real de isolamento social. Enfim, temos que ver o lado bom do Coronavírus, se a crise pode fazer as pessoas pensarem sobre o mundo que queremos...

Touraine, pensador incansável, sem muitas ilusões sobre o futuro, interrompeu.

- Vivemos sim num mundo sem líderes e há um colapso do movimento operário. O que vemos é um mundo sem ideias, sem direção, sem estratégia, sem linguagem: é o silêncio. Se o vírus vai mudar alguma coisa? Acho que não. Haverá outras catástrofes, temo a ecológica.

- “Produção social do comum”, eu diria que estas deveriam ser as palavras de ordem – observou Negri com a convicção de um revolucionário - uma reforma anticapitalista, para que as fábricas produzam de forma diferente, coisas diferentes. Cito a luta democrática dos coletes amarelos pelo comum. Não falo em decrescimento, mas outro crescimento. Não voltaremos a viver na floresta, mas com a floresta.

A última frase foi o mote para Boff entrar na conversa, palavras escritas no coração.

- O problema é este, nós esquecemos que somos pedaços da Terra, que somos Terra pensante, e quando a atacamos, a depredamos por cobiça e para enriquecer, atacamos a nós mesmos. Seremos capazes de captar o sinal que o Coronavírus está passando ou continuaremos a fazer mais do mesmo, ferindo a terra? Acho que é uma oportunidade de criarmos uma sociedade do cuidado, da gentileza e da alegria de viver, em harmonia com a mãe Terra.

Ouviu-se badalos de um sino. Era ele, Tirésias, anunciando a hora do banquete. Os garçons serviram o tradicional bacalhau à portuguesa. Chomsky propôs um brinde “ao encontro; à Plutarco e às superações da humanidade!”.

Finda a comensalidade se recolheram à sala contígua para continuar o symposium. Boaventura, eterno militante do pensamento por um outro mundo, interveio.

- Acedo às preocupações gerais sobre o clima. Enquanto a crise da pandemia pode ser revertida, a crise ecológica é irreversível, no máximo mitigada. Gostaria de colocar outro ponto: a dificuldade, acrescida com a pandemia, dos políticos e intelectuais em mediar com a realidade. Ao contrário, medeiam entre si em pequenas divergências políticas e ideológicas. Intelectuais escrevem sobre o mundo, mas não com o mundo. A realidade tornou-se inacessível, e extraordinariamente inacessível na pandemia. Estou certo que nos próximos tempos a cruel pedagogia do vírus nos dará mais lições.

Chegou a hora de Harvey, o tempo todo muito atento, se manifestar.

- A forma espiral de acumulação infinita de capital está em colapso. Como o capitalismo, já antes em crise, poderá absorver os impactos da pandemia? Depende do tempo. Exércitos de trabalhadores precários estão sendo demitidos. Foram investidos bilhões em infraestrutura do turismo e este local de acumulação de capital está morto, incontáveis os desempregados. Ironia final: a única coisa que pode salvar o capitalismo é um consumismo em massa financiado pelo governo. Isso exigirá socializar toda a economia dos Estados Unidos, por exemplo, sem chamar isso de socialismo.

Mujica tomou um gole de vinho, pediu licença “dores nas costas” e falou de pé.

- Navegamos sem bússola e nos perdemos na globalização, impulsionados pelos ventos do mercado e da tecnologia, sem consciência política dos meios e fins. Diria, meus amigos, se eu pudesse acreditar em Deus, que a pandemia é um aviso para os sapiens. Temo notícias ruins nos curto e médio prazos. O autoritarismo terá sua primavera, assim como a especulação financeira; dramáticas tensões políticas entre Oriente e Ocidente; nacionalismos xenófobos e baixos salários surgirão. Os escalões mais baixos da classe média ameaçada questionarão os governos e serão o clamor das ruas. Eu me pergunto, como humanos atingimos o limite biológico de nossa capacidade política? Seremos capazes de nos redirecionarmos como espécie e não como classe ou país?

O symposium seguiu até às 17h. Tirésias anotou tudo. Os sete sábios se despediram com a certeza e a emoção de que não se veriam mais. O tempo ficou curto para eles, mas iriam até o fim, havia novos horizontes a serem rasgados com urgência..
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* luiz cezare vieira - blogueiro
Enviado por luiz cezare vieira em 11/05/2020
Reeditado em 14/05/2020
Código do texto: T6943950
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