Luiz Felipe Pondé*
'Professor, quem é esse americano, tal de Lockdown, que querem trazer pro país?'
Façamos hoje um exercício de sociologia da nossa
realidade na pandemia para além do que gostaríamos que fosse essa
realidade. Pensemos no binômio Brasil e lockdown como objeto de
reflexão.
Em tempos de estupidez endêmica nas redes sociais, deixemos claro que
não duvido do lockdown como medida epidemiológica em si. O que esse
breve exercício de análise sociológica faz é duvidar da viabilidade
logística do lockdown no Brasil.
Qual o dilema de fundo da gestão responsável da pandemia no
país? O dilema da gestão pública aqui é: até onde empurrar a imitação da
Europa? Não somos África o suficiente pra não saber nada e não poder
fazer nada, mas temos favelas o suficiente pra afogar a "ciência
europeia da epidemia" em nossa miséria. É trágico que existam vidas,
inclusive do corpo médico, nesse impasse.
Propor lockdown no Brasil não seria brincar de Nova Zelândia na
favela? Ameaçar a população com lockdown não seria uma forma de nos
punir por mau comportamento?
Ou propor lockdown no Brasil seria uma peça de marketing político?
Pedir lockdown aqui parece coisa de gente que está bem segura em
casa, no sítio ou na praia, cercada de livros, wi-fi de qualidade,
séries de TV, mesmo que sem sexo pois os frouxos estão saindo do
armário: tem gente com medo de beijar de língua a própria mulher. O
negócio agora é refletir sobre os ganhos imunológicos da masturbação. O
isolamento trabalha a favor da infantilização e do narcisismo endêmicos
no mundo.
Façamos um recuo metodológico. Epidemiologia é uma área da medicina
que tem três pilares. Modelos estatísticos (1), fisiopatologia do agente
infeccioso e ferramentas de imunidade (2) e ciências sociais (3). A
epidemiologia é uma ciência social.
Uma epidemia segue os contornos sócio-econômicos de um país. Comparar
o Brasil com a Nova Zelândia é como comparar a Lua com Marte.
A população da Nova Zelândia não chega nem perto da torcida do Coríntia. Talvez, da Portuguesa.
O Brasil é uma Belíndia. Uma Bélgica cercada por uma Índia. Pois bem,
os belgas do Brasil brincam de pedir lockdown porque não enxergam um
palmo adiante dos seus narizes seguros nos sítios, nas casas de praias e
mesmo em suas casas seguras em São Paulo.
Uma trabalhadora das classes mais vulneráveis me perguntou:
"Professor, quem é esse americano, tal de Lockdown, que querem trazer
pro Brasil?". Pois bem, proponho aos inteligentinhos e bonitinhos, com
suas receitas de brócolis, explicar pra nossa trabalhadora sem Netflix
quem é esse tal americano Mr. Lockdown.
Sempre soubemos que a elite brasileira é alienada, em grande parte.
E, por elite, me refiro a faixa da classe média alta para cima. Com ou
seu PhD, com ou sem russos, falando inglês ou não falando. Nessa
epidemia, a alienação aparece de forma evidente, como no caso de pedir
lockdown.
Vejamos. Que tal desviar parte do contingente de policiais (já
sobrecarregados no dia a dia), que têm que cuidar para que carregamentos
de alimentos e remédios não sejam roubados, para checar quem pode ou
não sair de casa?
Que tal desviar parte do contingente de policiais, que tem que
impedir que roubem bancos com a grana do auxílio emergencial, para
checar se você é ou não médico ou jornalista? Que tal desviar parte do
contingente de policiais, que cuidam para que o narcotráfico não expanda
ainda mais seus negócios, para checar se você precisa ou não, de fato,
levar seu pet ao veterinário?
Que tal a polícia prender todo mundo que estiver andando na rua e fazer uma aglomeração na delegacia?
Caros inteligentinhos, muitos brasileiros saem para rua porque suas
casas são uma aglomeração maior do que a rua, saem porque, se não,
morrem de fome. Saem porque não têm nenhuma razão para confiar nas suas
autoridades nem na sua elite pensante.
Um dado histórico final: na Idade Média, muitas cidades emparedavam
famílias inteiras quando um dos familiares tinha peste. As pessoas não
melhoram em epidemias. Ficam piores. Mentem mais e se acomodam a miséria
ética.
Agora, a miséria cobra sua conta, enquanto os políticos usam a epidemia para suas carreiras.
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