Lya Luft*
Muito se fala, se pensa, se argumenta sobre isso: depois de passada ou aquietada essa pandemia do coronavírus, teremos um mundo novo, um mundo diferente, uma humanidade transformada, um pouco recauchutada, pior ou melhor?
Em geral sou otimista, o que me permitiu viver bastante
bem uma vida já longa, cheia de ganhos e perdas, como a de todo mundo.
Pessoalmente, não creio que a gente saia muito melhorada, exceto alguns
cuidados de higiene, não atropelar uns aos outros... sei lá. Cuidar mais
da saúde, do povo, cuidar mais dos miseráveis e pobres, que são os mais
vulneráveis. Mas vejo tanta raiva, tanto horror ao estrangeiro e ao
diferente, tanta acusação, tanta irritação que, sem ter um objeto fixo,
se lança sobre qualquer um - que não creio muito numa grande melhora na
hostilidade geral.
Ao contrário, talvez a gente seja ainda mais egoísta e
bairrista, curtindo uma horrorosa xenofobia. Você é de outro edifício,
outra rua? Se desinfete por favor, o álcool gel está na porta. Outro
bairro? Outra cidade, Estado, região? Outro país? Caia fora, não venha
me trazer doença. Talvez no futuro a gente nem lembre mais do corona,
mas tenha medo de qualquer pessoa não próxima: seremos tribos isoladas,
rangendo os dentes e brandindo paus para quem se aproximar vindo de
fora. E não será nem por medo de que roube nossos territórios ou nossos
tesouros, mas nossa saúde... ah, aquele vírus.
Estudar, comer, dançar (os furiosos que seremos ainda
vão saber dançar?), ir ao cinema, sentar no sofá da sala - tudo com fita
métrica na mão: dois metros de distância, ou pouco menos. Vidinha sem
graça. Licença para abraçar, transar só para perpetuação da espécie. O
resto, muito suspeito, e os vírus, e os vírus?
Seremos mais religiosos, ou transcendentais, ou
caridosos, fraternos? Também não sei. Para muitos, a contenção de
festas, passeios, despesas, rua, pode significar uma real interiorização
também na alma, nos amores. Há quem me diga: descubro cada dia novas
qualidades nos meus filhos, novo encanto na minha mulher, nova qualidade
no meu marido. Outros, porém, convivem como animais selvagens numa
gaiola estreita. Talvez não se ataquem concretamente, mas quanto desejo
mau, quanto rancor secreto, quanta palavra maldosa contida na boca que
se fecha amargurada.
Enfim, não sabemos, e de momento sou dos que duvidam:
sim? Não? Vamos melhorar ou piorar, ou desaparecer do mapa?
Possivelmente vamos continuar, cheios de conflito, medo, esperança,
alguns milímetros mais humanos... Seja o que for que isso vá significar.
Ou ainda achando que tudo aquilo foi histeria e exagero? Ou bem
piorados, sussurra o diabinho que às vezes pousa no meu ombro. Vai ser
apenas este nosso velho mundinho, mais torto, mais medroso, e um pouco
mais raivoso, cheio de ódio e acusações.
Mas vamos ser otimistas: quem sabe será um mundo novo
com gente mais amena, mais criativa, mais trabalhadora, mais artística,
mais espiritualizada porque passou esse grande susto... Mais amiga e
mais bonita porque mais feliz...
Ah, nossos bebês vão começar a nascer mascarados?
Isso nem os deuses sabem.
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* Escritora.
Fonte: https://flipzh.clicrbs.com.br/jornal-digital/pub/gruporbs/acessivel/materia.jsp?cd=7ad838e878d7e24ae6593593520fae0f 23/05/2020
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